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Santa Maria, RS, Brazil

A perda dos afetos

Cleci não era minha amiga no sentido íntimo da palavra. Foi minha vizinha por mais de 30 anos. Uma boa vizinha com quem trocava conversas sobre o cotidiano, as notícias dos filhos que estavam longe, as demandas diárias e as precisões de outros vizinhos. Éramos solidárias naquilo que fosse urgente. Eu não sabia da vida dela mais do que o necessário — nunca fui vizinha de conhecer detalhes da vida alheia se tal espaço não me fosse dado e, antes de adentrar, muito bem avaliar. Imagino que ela também não deveria saber muito mais da minha.

Falávamos ao cruzar a calçada ou nas divertidas caronas até o centro da cidade — porque sim, moramos num antigo quase meio rural — , a caminho do trabalho. Foi durante as caronas que eu soube dela estar indo ao pilates e à fisioterapia, que achava a casa grande demais depois dos filhos ganharem mundo, que manter tudo limpo dava trabalho, que ela tinha alugado uma das garagens a outro vizinho e ir até a “cidade” era uma boa diversão. Soube que o João estava em colheita, que a saudade da neta era enorme, que tinha ido visitar o filho e que as gurias estavam se preparando para vir passar as festas do final de ano.

Foi também quando ela soube que eu achava lindas as árvores da calçada a fornecerem uma rica sombra no calor escaldante do verão sulista e em uma delas, depois de uma tempestade, encontrara a gatinha que fugira da Carmem (outra vizinha), que a Flor (cocker spanish da Melina, minha filha) adorava correr e rolar na sempre aparada e verde grama a circundar a casa dela, que eu sempre levava um saquinho para recolher resíduos da bichinha porque morreria se ficasse alguma caca por ali, que as suas bergamoteiras davam um colorido especial à rua quando era época de frutas e as bananeiras emolduravam a paisagem dos fundos para a minha casa.

Nesse dia me ofereceu, generosamente, a sombra das árvores para estacionar o carro nos dias de sol. Nunca usei, mas fiquei profundamente grata.

Partilhávamos a preocupação/cuidado com outra vizinha mais velha (só na idade), amiga de ambas e que mora sozinha numa casa próxima às nossas, também com os cachorros que eram abandonados na nossa rua e, por um tempo, tiveram abrigo na entrada lateral da casa dela até serem acolhidos por outra vizinha.

Cleci partiu na manhã de hoje, 22, depois de uma dura luta contra o covid. Foi encontrar o João, o irmão do João e o marido da Rose(filha) que partiram também. Foi levada antes da vacina chegar a ela e ao João. Uma tragédia que poderia ter sido evitada.

Eu responsabilizo esse (des) governo pela catástrofe diária que nos assola. Cleci, João e os seus não são números a somar estatísticas. São vidas e histórias que fazem sentido.

Sei que não terei mais a risada agradável ao chegar à esquina, nem a companhia alegre no percurso até o centro da cidade. Não terei mais os vizinhos de tantos anos e nem perceberei a energia que compunha aquela casa, naquele lugar.

Não sei como os filhos se reinventarão nesse processo tão doloroso, mas espero que tenham força para recompor a vida e fortalecer os laços afetivos. Pais sempre deixam um legado para além do material.

Gostaria que soubessem que a dor é também nossa. Eles farão uma falta enorme no nosso cantão.

Nossa impotência diante do que parece ser uma roleta russa — nunca se sabe apesar dos inúmeros e múltiplos cuidados — , só será abrandada com a vacinação em massa. Única solução plausível para essa tragédia. Por hora, fica a revolta diante da irresponsabilidade de quem deveria tomar à frente no combate à pandemia.

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Cleci não era minha amiga no sentido íntimo da palavra. Foi minha vizinha por mais de 30 anos. Uma boa vizinha com quem trocava conversas sobre o cotidiano, as notícias dos filhos que estavam longe, as demandas diárias e as precisões de outros vizinhos. Éramos solidárias naquilo que fosse urgente. Eu não sabia da vida dela mais do que o necessário — nunca fui vizinha de conhecer detalhes da vida alheia se tal espaço não me fosse dado e, antes de adentrar, muito bem avaliar. Imagino que ela também não deveria saber muito mais da minha.

Falávamos ao cruzar a calçada ou nas divertidas caronas até o centro da cidade — porque sim, moramos num antigo quase meio rural — , a caminho do trabalho. Foi durante as caronas que eu soube dela estar indo ao pilates e à fisioterapia, que achava a casa grande demais depois dos filhos ganharem mundo, que manter tudo limpo dava trabalho, que ela tinha alugado uma das garagens a outro vizinho e ir até a “cidade” era uma boa diversão. Soube que o João estava em colheita, que a saudade da neta era enorme, que tinha ido visitar o filho e que as gurias estavam se preparando para vir passar as festas do final de ano.

Foi também quando ela soube que eu achava lindas as árvores da calçada a fornecerem uma rica sombra no calor escaldante do verão sulista e em uma delas, depois de uma tempestade, encontrara a gatinha que fugira da Carmem (outra vizinha), que a Flor (cocker spanish da Melina, minha filha) adorava correr e rolar na sempre aparada e verde grama a circundar a casa dela, que eu sempre levava um saquinho para recolher resíduos da bichinha porque morreria se ficasse alguma caca por ali, que as suas bergamoteiras davam um colorido especial à rua quando era época de frutas e as bananeiras emolduravam a paisagem dos fundos para a minha casa.

Nesse dia me ofereceu, generosamente, a sombra das árvores para estacionar o carro nos dias de sol. Nunca usei, mas fiquei profundamente grata.

Partilhávamos a preocupação/cuidado com outra vizinha mais velha (só na idade), amiga de ambas e que mora sozinha numa casa próxima às nossas, também com os cachorros que eram abandonados na nossa rua e, por um tempo, tiveram abrigo na entrada lateral da casa dela até serem acolhidos por outra vizinha.

Cleci partiu na manhã de hoje, 22, depois de uma dura luta contra o covid. Foi encontrar o João, o irmão do João e o marido da Rose(filha) que partiram também. Foi levada antes da vacina chegar a ela e ao João. Uma tragédia que poderia ter sido evitada.

Eu responsabilizo esse (des) governo pela catástrofe diária que nos assola. Cleci, João e os seus não são números a somar estatísticas. São vidas e histórias que fazem sentido.

Sei que não terei mais a risada agradável ao chegar à esquina, nem a companhia alegre no percurso até o centro da cidade. Não terei mais os vizinhos de tantos anos e nem perceberei a energia que compunha aquela casa, naquele lugar.

Não sei como os filhos se reinventarão nesse processo tão doloroso, mas espero que tenham força para recompor a vida e fortalecer os laços afetivos. Pais sempre deixam um legado para além do material.

Gostaria que soubessem que a dor é também nossa. Eles farão uma falta enorme no nosso cantão.

Nossa impotência diante do que parece ser uma roleta russa — nunca se sabe apesar dos inúmeros e múltiplos cuidados — , só será abrandada com a vacinação em massa. Única solução plausível para essa tragédia. Por hora, fica a revolta diante da irresponsabilidade de quem deveria tomar à frente no combate à pandemia.