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10 anos lei Maria da Penha

Nenhuma mulher precisa passar por violência doméstica

Milhões de mulheres no Brasil não têm acesso a educação. Elas também não possuem instruções para diferenciar quando sofrem violência doméstica. E você, sabe identificar uma pessoa que sofre com a violência doméstica? Não? Então você

Violência contra a mulher: o relato de Julia

Violência psicológica é algo que não se evidencia tão claramente quanto um tapa ou soco dado pelo parceiro. Como a cultura que naturaliza esses e outros abusos sofridos por mulheres e, mesmo crianças, algumas vítimas não percebem quando

Lei Maria da Penha 10 anos: persiste agressão à mulher

No último semestre de 2016, 1961 ocorrências de violência doméstica foram denunciadas na Delegacia de Polícia para Mulher  de Santa Maria. Delas, 950 viraram inquéritos policiais remetidos ao judiciário. Já as medidas de proteção solicitadas à vítima

Produção e foto: Gabriela Agertt

Milhões de mulheres no Brasil não têm acesso a educação. Elas também não possuem instruções para diferenciar quando sofrem violência doméstica. E você, sabe identificar uma pessoa que sofre com a violência doméstica? Não? Então você precisa acompanhar esta reportagem.

A violência doméstica é toda aquela praticada dentro de casa ou do que é considerado ambiente familiar. Ela não consiste apenas em pais batendo em filhos, ou cônjuges em suas companheiras. A violência doméstica compreende violência sexual, física, e psicológica, assim como privação ou abandono exercidos dentro do lar entre pais e filhos, marido e esposa e pessoas com qualquer outro grau de parentesco. Conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de cada três casos de violência doméstica atendidos pelos plantões do Sistema Único de Saúde (SUS), dois envolvem mulheres. Crianças e idosos também fazem parte do grande número de pessoas que sofrem maus tratos nas casas do Brasil.

Em 2016, tramitaram na Justiça do País mais de um milhão de processos referentes à violência doméstica contra a mulher, o que corresponde, em média, a 1 processo para cada 100 mulheres brasileiras. Desses, pelo menos 13,5 mil são casos de feminicídio, conforme dados apresentados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

 

Violência em números

 

Conforme o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2018, os números são alarmantes. Em 2016, 4.645 mulheres foram assassinadas no país, o que representa uma taxa de 4,5 homicídios para cada 100 mil brasileiras, um aumento de 6,4% no período de dez anos. Em 2017, mais de 60 mil mulheres foram estupradas, um crescimento equivalente a 8,4%. Além disso, 1.133 feminicídios foram registrados no Brasil. Mais de 4.500 mulheres foram mortas e mais de 221 mil casos de lesão corporal dolosa foram registrados na Lei Maria da Penha. Cerca de 606 casos por dia.

Levantamento do Ministério Público do Estado de São Paulo revelou que a maioria dos assassinatos de mulheres acontece dentro do ambiente familiar e também durante a semana, de segunda a sexta-feira (68%). Jornalista do Estadão, Nana Soares, publicou no site do Jornal, em setembro de 2017, uma reflexão sobre gênero e violência. No texto, ela compila informações de violência doméstica, sexual e faz uma análise sobre os dados. Em um trecho da matéria, Nana diz que quase nada mudou no tratamento com vítimas da violência, mas que “também não muda o tratamento destinado aos agressores, classificados como loucos e anti-sociais, quando na verdade são o contrário: homens perfeitamente inseridos em uma sociedade que não dá o menor valor às vidas das mulheres”.

 

Identificação dos abusos

Alguns passos são fundamentais para que você reconheça se está sofrendo ou presenciando  violência doméstica. Entre alguns dos sinais de alerta, está a pessoa que tem machucados estranhos e inexplicáveis pelo corpo e rosto. O isolamento é outro sintoma: a vítima se afasta de amigos (principalmente homens) pelo medo de o agressor bater mais ainda. Além disso, expressões faciais também denunciam uma violência doméstica. O agressor pode parecer irritado e com raiva. A linguagem corporal do agressor também denuncia a violência. Ele pode cerrar os punhos, travar os dentes e se contorcer pela raiva. Cuide a movimentação. Carro da polícia em frente à casa do agressor é outro sinal de violência. Se você escuta constantes gritos por socorro, procure ajuda. A vítima precisa de auxílio para conseguir sobreviver. Armas podem estar envolvidas, então tenha cuidado ao se aproximar. Não negue ajuda, chame a polícia. A agressão física é a mais aparente, mas lembre que também existe a agressão verbal. Humilhações em público ou dentro de casa, discussões constantes com ameaças, domínio e controle sobre a companheira e intimidações são algumas das violências que a mulher sofre em um relacionamento abusivo, seja ele com o namorado, noivo, marido ou homens da família. O agressor utiliza-se do medo, inflinge culpa e vergonha para manter a vítima sob controle. Além disso, ele também pode machucar ou agredir alguém da família da vítima para mostrar força.

 

A Lei Maria da Penha

Não sinta medo. Você, mulher, está protegida desde 2006, com a Lei Maria da Penha. Ela é voltada para casos de violência doméstica e contra a mulher e foi criada por Maria da Penha,  para que o crime deixasse de ser de menor poder ofensivo. Maria foi agredida pelo marido diversas vezes em 1983 e, quando estava DORMINDO, levou um tiro de arma de fogo, que a deixou paraplégica. O caso só foi resolvido em 2002, quando o Estado brasileiro foi condenado por omissão e negligência pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. A pena para quem for enquadrado na Lei Maria da Penha é de 1 a 3 anos. Além disso, o juiz pode obrigar o agressor a participar de  programas de reeducação ou recuperação, e não é mais possível trocar a pena por doação de cesta básica ou realização de serviço voluntário.

Essa lei também criou novas formas de proteção à mulher ameaçada. Ela vale, por exemplo, para pessoas que não moram juntas. Nesse caso, o agressor só é preso se for pego em flagrante, se o comportamento dele oferecer risco à mulher e se, ao final do processo, ele for condenado. A criação da Lei Maria da Penha aumentou em 86% as denúncias de violência doméstica. Para ajudar as vítimas, o número 180 está disponível para denúncias. Além disso, existe a Casa da Mulher Brasileira, para aquelas vítimas que não têm para onde ir. Mesmo assim, os números, como visto no segundo parágrafo desta matéria, continuam crescendo.

Como denunciar?

Procurar uma delegacia especializada e realizar um boletim de ocorrência, ou ligar para a Central de Atendimento através do número 180. A denúncia é anônima e o serviço funciona 24 horas. A denúncia pode ser realizada pela vítima ou por alguém próximo a ela. A vítima também pode ligar para a polícia, no 190. Além disso, o número 100 está disponível como um dique-denúncia que auxilia em casos de agressões sexuais contra crianças e adolescentes, pornografia infantil e tráfico de mulheres. A Central de Atendimento à Mulher disponibiliza informações sobre a legislação, assim como, atendimento psicológico, jurídico e social à vítima. Além de guiar as vítimas sobre o que fazer. Desde 2014, o aplicativo Clique 180 apresenta informações sobre a Lei Maria da Penha.

Fonte: “Precisamos falar sobre violência doméstica”, por Julia Machado e Helena Moura.

 

O renascer de uma mulher

E como se recomeça a vida após um episódio de violência doméstica? O recomendado na cartilha feita pela Prefeitura de Passo Fundo é zelar pela integridade física e psicológica de todos os envolvidos. Se para isso for necessário a mulher abandonar a relação, ela certamente deverá tomar essa atitude. Mas sempre com muito cuidado, buscando apoio de amigos, familiares e profissionais. Ao contrário que se pensa, porém, muitos casais conseguem reconstruir a vida em comum, mesmo após um histórico de violência, após contarem com auxílio de profissionais. O importante é que você se sinta bem e protegida onde estiver.

 

Depoimentos:

Há dez anos, Jacinara*, sofreu as consequências de uma relação abusiva. Desse namoro, nasceu uma pequena que ainda hoje não sabe o que a mãe sofreu. Jacinara conta que desde o início já reconhecia a personalidade agressiva do companheiro.

“Ele sempre foi bastante genioso e orgulhoso. Sempre prezei pela liberdade e dizia isso a ele. Mas ele começou a abusar e saia para beber com os amigos e não tinha hora para voltar. Em um dos episódios, ele chegou em casa muito agressivo, me bateu e eu mandei ele arrumar as malas. Minha filha tinha 11 meses, na época, e morávamos com meus pais”, relata ela.

Mas conforme Jacinara, essa não foi a pior das agressões. “A tortura psicológica era constante. Manipulações a todo o momento. Ele me fazia pedir desculpas por erros dele. Meus pais nunca souberam que nosso relacionamento foi abusivo. Hoje minha filha não vê ele, e eu nem faço questão, já que ele mora em uma cidade do litoral gaúcho. Ele não liga e não procura”.

Hoje, ela já não se incomoda em falar sobre o assunto e ainda argumenta:

“Precisamos falar sobre o violência doméstica, para que ainda menos mulheres sofram abusos sexuais, psicológicos e agressões físicas. Tento conscientizar o máximo de mulheres possíveis. Hoje, já não me doi falar sobre o assunto”.

 

Paola* também diz já não se envergonhar para falar sobre o que sofreu dentro de um relacionamento abusivo de pouco mais de um ano. Ela conta que, no início, não havia percebido que estava sofrendo violência doméstica e psicológica.

“Só fui perceber meses após ter terminado o namoro. Ele me agrediu por 50 minutos no meu apartamento. Socos, pontapés, chutes, puxões de cabelo. Ele me atirava contra a parede e eu só gritava para que ele fosse embora. Ele só parou após a mãe dele ter ligado dizendo para ele ir embora, antes que eu chamasse a polícia. Antes disso, o padrasto dele entrou no apartamento, tentou intervir e tirar ele de cima de mim, mas não conseguiu. Foi horrível”, recorda ela.

Paola conta que a família do ex-namorado se omitiu com o socorro, assim como os vizinhos do apartamento, já que todos ouviam os gritos. Ela decidiu por colocar o agressor na justiça e fez pedido para uma sanção penal. Após três anos esperando, ela conseguiu participar da audiência que aconteceu há dois anos. “Ele entrou com recurso e eu nunca mais olhei o que aconteceu” – desabafa.

Na época, ela achava que só o apoio dos familiares e amigos a ajudaria superar o trauma. Mas hoje, Paola faz tratamento psicológico e toma medicamentos para conseguir dormir. Além disso, ela também deixa a televisão ligada dia e noite para não se sentir sozinha quando está em casa.

As duas vítimas são unânimes ao dizer que a violência doméstica deixa marcas para o resto da vida. Em Jacinara, é a filha quem sofre as consequências. Já Paola diz não gostar de toques até hoje, mesmo cinco anos após o fim do relacionamento. “Não é qualquer pessoa que pode me abraçar e, ainda assim, me sinto incomodada com amigos me tocando ou pessoas colocando as mãos em meus ombros para pedir licença ou me tirar para dançar em festas”, diz Paola.

 

*Os nomes foram trocados pela segurança das vítimas.

 

Reportagem produzida por Natália Venturini e Milena Dias para a disciplina de Jornalismo Investigativo, do Curso de Jornalismo da UFN, durante o 2ºsemestre de 2018, sob orientação da professora Carla Torres.

Maria da penha (Série de reportagens)-01Violência psicológica é algo que não se evidencia tão claramente quanto um tapa ou soco dado pelo parceiro. Como a cultura que naturaliza esses e outros abusos sofridos por mulheres e, mesmo crianças, algumas vítimas não percebem quando estão em relacionamentos abusivos. A ACS traz uma série de testemunhos de mulheres, de diferentes idades e experiências, sobre as violências sofridas. Nos relatos feitos à repórter-aprendiz Amanda Souza, misturam-se dor, lucidez e alívio. Os nomes foram trocados por decisão da equipe de edição da ACS.

Quando lembrar dói

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A acadêmica Julia Trindade  sofreu  violência doméstica dos 15 aos 17 anos. Só hoje consegue compreender a natureza do que vivenciou.
“Comecei a namorar esse menino na oitava série, com 14 anos. Estávamos juntos todos os dias. Com 15 anos, depois de trocar de colégio, comecei a passar todos os dias na casa dele, minhas roupas estavam lá, meu material, minhas coisas, tudo. Eu via minha mãe apenas uns dois fins de semana por mês”.

Julia morou com o namorado durante dois anos. O primeiro tipo de violência sofrida foi a psicológica. Ela conta que o rapaz  a traía abertamente, não escondia ou, sequer, sentia vergonha do que fazia.

“Às vezes eu chegava em casa e ele dizia que tinha alguém com ele. Eu saía para visitar meus avós no domingo e, uma vez, quando voltei, tinha uma menina lá”.

O namorado sempre fazia questão de demonstrar que se relacionava com outras pessoas. E o principal problema surgiu quando Julia tentou desabafar com a sogra.  A mãe do rapaz a fez acreditar ser tudo normal. Ela também enfrentava a violência doméstica, pois o pai do rapaz era extremamente violento.

“Foi a forma que ela aprendeu a se relacionar. A culpa não é dela, mas foi algo naturalizado entre a família, a violência do pai e a mulher aceitando sempre”, analisa, hoje, a jovem.

Eu ouvia muitos xingamentos como ‘vagabunda’ e, era jogado na minha cara que eu não me arrumava como ‘’uma garota’’… no como eu andava sempre desarrumada”, conta. E não era o bastante. Quando os dois saíam juntos à noite e acabavam brigando, Julia era deixada para fora de casa e tinha que dormir na rua.
Eu não podia conversar com ninguém. Fiquei um ano e meio sem falar com meus amigos. Tomava tapa na cara, chute, empurrões contra móveis, paredes e, algumas vezes, chegaram a acontecer agressões de formas mais sérias, me deixando marcas e machucando muito”, narra.

O namorado também quebrou o celular dela várias vezes durante as discussões e, não raro, jogava os pratos na parede quando ela se recusava a comer alguma coisa. A violência física começou no início do Ensino Médio.

“Uma vez eu estava na minha casa com ele e começamos a brigar dentro do quarto. Meu avô ouviu, tentou abrir a porta, mas meu namorado tinha nos trancado lá dentro e me ameaçava o tempo todo. Eu voltava do colégio e ele estava dormindo. Eu cozinhava, lavava a louça para ele. Perdi a essência do que eu era, não era mais ninguém, minha alma não estava mais. Eu era só um corpo presente… a namorada do fulano”, relembra com angústia.  “A violência psicológica foi a pior. Ele dizia o tempo todo que ia me abandonar e que eu nunca iria encontrar alguém que me amasse”.

Julia passou dois anos com o rapaz que a proibia de sair, enquanto ele saía todo o final de semana. E  quando Julia saía, era humilhada em público. “Ele me puxava pelo cabelo, arrastada, por causa de ciúmes. Além disso, a agressão psicológica era sutil e regular … o pior era a naturalização disso dentro do ambiente familiar em que eu me inseria. Eu era a ‘louca’ ‘’, afirma.

Quando finalmente ela conseguiu sair do relacionamento destrutivo, estava muito machucada, com marcas pelo corpo. Uma amiga – aquela amiga que está sempre ao lado – tomou providências. Julia conta que teve muitos problemas com o término do relacionamento. Começou a tomar muitos remédios, desenvolveu crise de pânico, ansiedade. A relação com a própria mãe estava muito frágil, porque ela não aceitava ver a filha naquele estado.
“Essa minha amiga, então, me disse: ‘-nós vamos lá buscar tuas coisas, e tu vai terminar. Se tu voltar para ele, eu nunca mais falo contigo’. Nesse dia eu fui conversar com ele. Começamos a discutir. Mais uma vez ele me empurrou contra um guarda-roupa. As portas quebraram e eu entrei praticamente para dentro do cômodo com a força do empurrão. Então, peguei minhas coisas e fui embora. Depois disso eu conseguir retomar, dificilmente, minha vida. Eu não tinha mais vida, sofria violência. E o processo de voltar a minha vida, com meus amigos foi muito difícil. Eu pensei: para onde eu vou? E agora? Minha casa não era mais minha casa. Minha vida foi tomada de mim”.

Julia nunca denunciou as agressões por medo de não acreditarem nela. “Eu estava muito dentro de mim. Tão dentro que  nem eu  me encontrava. Tem momentos dos quais eu não me recordo. Minha memória, às vezes, tem falhas, problemas para me lembrar daquilo, porque é algo que me traz muita dor. E eu acho que recalquei isso, inconscientemente”. 

Por Amanda Souza

Maria da penha (Série de reportagens)-01No último semestre de 2016, 1961 ocorrências de violência doméstica foram denunciadas na Delegacia de Polícia para Mulher  de Santa Maria. Delas, 950 viraram inquéritos policiais remetidos ao judiciário. Já as medidas de proteção solicitadas à vítima foram 568. A média são vinte ocorrências por dia. Os números são preocupantes, porque indicam também que há um percentual alto de agressões não denunciadas.

A delegada Débora Dias explica que a patrulha Maria da Penha da Brigada Militar faz ronda semanal, as denúncias são analisadas e eles vão até a casa da vítima verificar a situação, principalmente nos casos já com medida protetiva. Feito o Boletim de Ocorrência, são dados os encaminhamentos necessários, testemunhas são ouvidas, instauração do inquérito e medidas protetivas. “Temos 48 horas para encaminhar o inquérito, tudo depende da autorização da mulher, o judiciário tem 48 horas para deferir ou não as medidas”, explica Débora. “É sempre dificultoso o inquérito de violência doméstica, pois as testemunhas não dão depoimento, temos que insistir para trazer as pessoas, e se elas não quiserem, principalmente da família, elas não falam mesmo. E quando não existem marcas físicas, é difícil termos provas”, salienta a delegada. E isso causa desistências.

[dropshadowbox align=”center” effect=”lifted-both” width=”500px” height=”” background_color=”#ffffff” border_width=”1″ border_color=”#dddddd” ]A Lei Maria da Penha surgiu após o Estado Brasileiro ser denunciado por negligência e omissão em relação à violência doméstica pela Comissão de Direitos Humanos, em 1998.  A história de Maria da Penha Maia Fernandes  que lançou um livro contando o que sofreu nas mãos de seu marido, Marco Antônio Heredia Viveros, chegou até a Comissão de Interamericana de Direitos Humanos. Maria da Penha ficou paraplégica depois de levar um tiro do marido que, ainda, tentou eletrocutá-la na banheira. Em 2006, o Congresso Nacional aprovou a Lei Maria da Penha, considerada pela Organização das Nações Unidas, a terceira melhor lei de prevenção contra agressão doméstica. A lei  determina que se estabeleça uma política pública que vise a coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, por meio de um conjunto articulado de ações da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e de ações não-governamentais, tendo por diretriz maior a integração operacional do Poder Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública com as áreas de segurança pública, assistência social, saúde, educação, trabalho e habitação[/dropshadowbox]

Débora Dias afirma que ninguém pode julgar vítimas em situação de violência doméstica (foto: Maria Luiza Viana/Laboratório de Fotografia e Memória)
Débora Dias afirma que ninguém pode julgar vítimas em situação de violência doméstica (foto: Maria Luiza Viana/Laboratório de Fotografia e Memória)

Há ocorrências em que a polícia sabe que a vítima corre risco de vida e, mesmo assim, ela desiste de seguir com o processo. Hoje, segundo Débora, aumentou o número de denúncias de ameaças e diminuiu o número de lesões corporais. No entanto, ainda há casos graves que, sempre de forma reiterada, as vítimas acabam indo mais de uma vez à delegacia com denúncias violentas. “Quando ocorre violência física, a vítima não pode mais retirar a queixa e  quando há provas contra o agressor, o processo segue mesmo que ela queira desistir”, afirma a delegada. Prisões preventivas são dadas quando a vítima corre risco. Então, é emitido o pedido, e o agressor fica preso até decisão do juiz.

“É muito difícil alguém nessa situação vir denunciar, pelo fato de ser alguém com quem se vive, dorme junto. E por ser tão complicado, elas acabam voltando para o marido e não se resolve nada”, afirma Débora. Além das agressões físicas, como socos, chutes, tapas, a delegada atenta para comportamentos que também são violência, como desmerecimento moral. A assistência jurídica trabalha junto à vítima quando são casos de separação, dissolução da união estável.

 

Gráfico Violência Contra Mulher-01

 

Rede de apoio

Na delegacia, ao realizar o Boletim de Ocorrência, a vítima recebe apoio psicológico  de uma equipe de estudantes de psicologia da Faculdade Integrada de Santa Maria (FISMA), que atua em parceria com a Delegacia da Mulher desde 2014. O projeto visa o acolhimento das mulheres que são vítimas de violência doméstica.

“Há então esse encaminhamento para nossa equipe. A partir daí nós trabalhamos com o empoderamento das vítimas,  geralmente, durante o Boletim”, explica a coordenadora do projeto, Patrícia Rosso. “Temos que ouvir as demandas da vítima, pois ela sofreu aquela agressão e precisa falar, desabafar sobre”, diz a psicóloga.  Nada é forçado sobre a vítima. Os estagiários conversam sobre as melhores opções, mas não é imposto. Segundo Patrícia, não adianta dizer ‘você precisa se separar’. “O trabalho da psicóloga é encaminhar, dizendo das possibilidades para sair da situação, com condições de contar com auxílios sociais e com a polícia. Tudo depende do desejo, pois não podemos obrigá-la. É um trabalho de conscientização da vítima, para que ela veja que pode sair do relacionamento”, explica a coordenadora.

Quando o casal possui filhos, a vítima e as crianças vão para o acompanhamento psicológico. Sempre vai haver um dano emocional, alerta a psicóloga. “É algo individual, claro, e pessoal do indivíduo que cresceu sob essa situação, mas há possibilidades de se reproduzir esse comportamento posterior, como algo internalizado”.

Violência psicológica

Xingamentos, desqualificações. “Ah, porque tu não consegues nem cuidar dos filhos”, “quando eu saio de casa não sei o que tu fazes”, frases que a vítima ouve do agressor, são abusos domésticos, classifica Patrícia Rosso. A mulher não trabalha porque o marido não quer, e então ela depende financeiramente dele para qualquer coisa, dado algum tempo, ele começa a desqualificá-la moralmente. “Ela é muito sutil, abstrata, e causa um terror psicológico muito grande”, explica a psicóloga.

Inclusive, manter a mulher em uma dependência física e financeira também se classifica como violência psicológica, segundo Patrícia. Por exemplo, quando o agressor alimenta a ideia de que a mulher não tem condição de sair de perto dele, de se sustentar sem ele. E ele vai mantendo essa fantasia dentro da vítima.

 

Violência psicológica é uma das agressões mais fortes, segundo a psicológica (foto: Juliano Dutra/Laboratório de Fotografia e Memória)
Violência psicológica é uma das agressões mais fortes, segundo a psicológica (foto: Juliano Dutra/Laboratório de Fotografia e Memória)

A dependência emocional

A dependência emocional é muito grande em casos de violência e é uma das mais fortes sob a vítima, afirma Patrícia. Se a vítima tem filhos com o marido isso também pesa na hora da denúncia. Segundo a psicóloga, o vínculo emocional de afeto, das expectativas que se gerou sobre o relacionamento, causa grande dependência e pode ser um dos motivos para a vítima não se separar. É preciso analisar cada caso, pode-se estar falando de uma pessoa que vem de um histórico de violência familiar, que cresceu vendo esses abusos, vendo a mãe sendo agredida pelo pai, ressalta a coordenadora. Então ela passa a ‘normalizar’ isso inconscientemente. É o que a psicologia chama de transgeracionalidade.

“É uma dependência extrema do agressor que faz ela ter medo de voltar, ou não pode voltar, pois precisa estar em casa cuidando dos filhos, porque ele não gosta que ela saia. Algumas vítimas chegavam e diziam ‘hoje consegui fugir algumas horas e vir’”.

A violência não é tida como algo normal para a vítima, porém é como se ela tivesse internalizado que o homem manda e a mulher obedece e ele usa a força para isso. Para Patrícia, é algo cultural.