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Saudades de mim

Lembra quando a gente achou que passaríamos 15 dias em casa dividindo os dias entre pães gostosos, livros que estavam há anos esperando uma chance e horas a fio com os olhos pregados em uma série

Inertes

Lembra quando éramos crianças e ouvimos pela primeira vez as histórias de guerras? No início poderia ser apenas um emaranhado de datas, países e batalhas completamente desconectados da nossa realidade. Em algum momento, você provavelmente ficou

Por que fazemos o que fazemos?

Sempre fui uma pessoa do jornalismo, apesar de ter demorado para perceber. Algo sobre o tempo no jornalismo sempre me incomodou. Adianto que o incômodo era totalmente enquanto leitora. A posteriori, como jornalista, as coisas mudaram

Imagem: pexels

Lembra quando a gente achou que passaríamos 15 dias em casa dividindo os dias entre pães gostosos, livros que estavam há anos esperando uma chance e horas a fio com os olhos pregados em uma série qualquer? Lembra quando achamos que seria incrível trabalhar de casa, sem precisar acordar tão cedo para enfrentar o trânsito e livres para usar calças de pijama durante reuniões? 

Mas aquela ilusão de duas semanas se aproxima da marca de 500 mil mortos e  500 dias de isolamento (sem previsão de acabar) e estamos longe de conhecer todos os impactos que essa história terá em nosso futuro, além da óbvia saudade dos que partiram e de quem éramos.

Isolamento social parecia uma experiência que nos levaria de volta a nós mesmos, conectados ao que realmente gostávamos de fazer quando acompanhados de apenas nós mesmo ou das pessoas que vivem conosco. Parecia que seria possível isolar o enfrentamento a pandemia, as máscaras, o álcool em gel e “todos os protocolos de segurança” do lado de fora de casa. Aqui dentro ficaríamos acompanhados das calças de pijama, café quente, pão novo feito em casa, animais de estimação, plantas e pequenos ritos de autocuidado que salvaguardam a sanidade. Não que as expectativas de enfrentar 15 dias de pandemia (ô dó) fossem leves e positivas, havia muito medo e receio do que estava por vir,  mas nós éramos nós mesmos e usamos a memória do que conhecemos como um apoio para aguentar. E agora que quase não nos reconhecemos mais? 

É curioso visitar as memórias das primeiras semanas de isolamento e não conseguir se reconhecer naquilo que esperamos (re)encontrar quando o mundo puder ver a covid-19 como uma crise superada. As rotinas mudaram, as relações não são mais as mesmas, adaptamos o jeito de trabalhar e estudar e inventamos outras formas de celebrar os dias felizes. Diariamente chegam as notificações das redes sociais, “neste dia há 2 anos”, e tanta coisa mudou que é recorrente pensar “que saudades de mim”. 

Que saudades da energia que a gente tinha. Que saudades de mim num bar, que saudades de mim batendo perna por aí, que saudades de mim quando usava maquiagem de festa, que saudades de mim abraçando tanta gente. Que saudades da gente saudável na rua, na praia, nas salas de aula, dançando nas festas e na vida. 

Arcéli Ramos é jornalista, egressa do curso de Jornalismo da UFN e colaboradora da CentralSul.

Foto de Disha Sheta no Pexels.

Lembra quando éramos crianças e ouvimos pela primeira vez as histórias de guerras? No início poderia ser apenas um emaranhado de datas, países e batalhas completamente desconectados da nossa realidade. Em algum momento, você provavelmente ficou horrorizado e perguntou: como? Como as pessoas deixaram acontecer? Precisamos viver nossas próprias tragédias para perceber o quanto a inércia é confortável. 

Inércia e negacionismo parecem conceitos tão similares, quase sinônimos. Negamos o horror mesmo com as melhores intenções, mesmo sabendo de tudo o que está acontecendo nós encontramos na apatia uma forma de sobreviver.   

Buscamos continuamente por novas alternativas, novas rotinas. Fazemos remendos em nós mesmos e no cotidiano para, de alguma forma, seguir em frente e suportar mais duas semanas até começar tudo de novo. A vida se divide em pequenos períodos de alívio, ilusão de ar nos pulmões, e longos intervalos de sufocamento. E seguimos em busca de alternativas que possam sustentar o ar, os dias. Não passou da hora de parar? Chega. 

Não dá mais para fingir que alternativas individuais vão nos levar para longe disso. Chega de intercalar crises de ansiedade e artigos sobre produtividade do LinkedIn. Chega de sustentar o insustentável, de carregar o caos no colo.

Até quando? Há mais de um ano nós esperamos a virada de chave, o acontecimento que vai mudar tudo, a repentina luz no fim do túnel, aquilo que vai fazer as pessoas se levantarem para gritar “não dá mais!”. Mais de 400 mil mortos e nós seguimos negando a dor, o horror. 

Desejo que encontremos forças e caminhos para sair da inércia, assim como as gerações anteriores encontraram. Eles descobriram formas de reivindicar a vida e se rebelar contra a barbárie. Que as aulas de história e a memória dos que partiram precocemente possam servir de impulso e inspiração para buscar a mudança necessária. 

Arcéli Ramos é jornalista, egressa do curso de Jornalismo da UFN e publicará crônicas na CentralSul a cada 21 dias, a partir de hoje.

Gino Crescoli por Pixabay

Sempre fui uma pessoa do jornalismo, apesar de ter demorado para perceber. Algo sobre o tempo no jornalismo sempre me incomodou. Adianto que o incômodo era totalmente enquanto leitora. A posteriori, como jornalista, as coisas mudaram em partes.

Fui uma leitora de revistas quinzenais que demoravam para chegar nas bancas próximas de casa. A leitura era um momento especial e aguardado na rotina. Da espera pela nova edição, a conclusão da leitura e recomeço do ciclo. Na mesma época, as publicações começaram a disponibilizar o conteúdo na internet. Muitas amigas sabiam que não havia necessidade de “gastar dinheiro” com versões impressas, pois em poucos dias o mesmo texto estaria disponível online. Porém, para mim sempre foi muito mais do que o consumo das matérias por um instante. A leitura nunca expirava ao fim dos quinze dias. Em diversos momentos me peguei folheando revistas “antigas” e “ultrapassadas”.

Nos primeiros períodos do curso de Jornalismo senti o incômodo voltando e pensava “por que faremos o que faremos?”. Claro que a tendência natural é se culpar, questionar o que há de errado em nós e duvidar das próprias escolhas. “Será que eu sirvo pra isso?”.

Só consegui entender o que sentia quando, no terceiro semestre, tive contato com o conceito da “estrela de sete pontas”, do Felipe Pena. Foi no jornalismo literário e na ideia de perenidade que me encontrei. Ali sim havia um propósito para o que eu sentia e o que me levou a escolher a profissão.

Mas o que é perenidade hoje? O que fazemos – ou deixamos de fazer -, o que contamos e o que vivemos irá permanecer? Que ações merecem o cuidado do olhar de quem vê a narrativa do hoje sendo relevante no futuro?

Houve um tempo que, com certa frequência, se ouvia dizer que os erros são mais lembrados que os acertos. Hoje, infelizmente, acredito que tão pouco lembramos dos dois. Não há mais hoje. Cada mísero momento do presente é ignorado na busca por um futuro. Uma posteridade que nunca chega, pois ela se aniquila quando muda o nome de Hoje para Agora.

Então, por que fazemos o que fazemos? Por onde andam e por quanto tempo vão permanecer as histórias que queremos contar?

Enquanto isso, em Santa Maria, pessoas pedem justiça para que a “Kiss” não se repita. Em outros lugares, 242 é só um número. Daniela Arbex escreveu sobre a nossa história. Sobre várias delas. Através do mosaico construído por Arbex, sabemos que o dia 27 de janeiro de 2013 se repete todos os dias e noites. Obrigada, Daniela.

O que faz nossa memória? O que é preciso em um acontecimento para que ele seja inesquecível? Se na esfera privada é difícil identificar, talvez no coletivo seja impossível identificar ou criar uma fórmula capaz de impedir o esquecimento. A nossa memória também é política?

Pelo mundo todo pessoas gritam “Marielle, presente!”, mas por quanto tempo serão ouvidos? Mesmo antes do assassinato da vereadora deixar de ser “factual” alguns diziam que é necessário superar. “Daqui alguns dias ninguém mais lembrará”. Lembraremos. Espero.

O que Gay Talese pensaria sobre os conceitos de “Fama e anonimato” em tempos de Instagram?

Tantos livros sobre a Segunda Guerra Mundial, tantas denúncias sobre os horrores causados pelo Nazismo. E para quê? Mesmo com todos os relatos, alguns mal informados e “maus”, tentam distorcer a realidade. Não importa o quando tentem, puxem, estiquem e virem do avesso. Essa história só se dobra para a direta.

Em 2015, a jornalista Svetlana Aleksiévitch ganhou o Prêmio Nobel de Literatura. Entre as obras de Svetlana está o livro “Vozes de Tchernóbil” que conta as histórias de quem viveu e morreu na zona afetada pelo acidente nuclear. São relatos de dor, descaso, superação, lições para o futuro e esquecimento. Muito esquecimento, afinal para quantos de nós essas vozes chegaram? Você ouviu alguma delas por aí? Algumas delas estão na série “Chernobyl”, disponível no serviço de streaming da HBO.

O mesmo parece acontecer com “Hiroshima”, de John Hersey, que na data de publicação mostra a realidade não antes revelada aos americanos sobre os danos causados pela bomba que “salvou suas vidas”. O livro mudou a perspectiva da população americana sobre o ataque nuclear. Mas hoje alguém ainda se importa? Ou estamos há anos percorrendo um caminho sombrio que parece levar para o mesmo destino? Resta saber quem contará os próximos capítulos.

Em meio ao caos instaurado ao redor do mundo, uma jovem democracia que sofre nas mãos de velhos padrões, o meio ambiente que opera no cheque especial, etc. De todas as perguntas sem respostas, há aquela que se destaca. Por que fazemos o que fazemos?

Será que vamos dar conta de tornar as narrativas do hoje perenes até o futuro? Ou vamos perder a perenidade do nosso tempo para suprir a necessidade de ser instantâneo?

 

Arcéli Ramos é jornalista egressa da UFN. Repórter da Agência Central Sul em 2015. Com pesquisas na área jornalismo literário e linguagem, hoje também estuda “Pesquisa de tendências”. É colaboradora na New Order, revista digital na plataforma Medium, e produz uma newsletter mensal