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Tráfico de animais: o grito oculto de socorro

  Confinados na escuridão, amarrados, sem comida, queimados ou dilacerados. Centenas de animais já foram vítimas de maus tratos e tráfico no País. Um grito que muitas vezes não é escutado por ninguém, mas quando a

Os macacos estão entre os alvos dos traficantes de animais. Foto: Vitória Fernandes/ UFRN/IBAMA

 

Confinados na escuridão, amarrados, sem comida, queimados ou dilacerados. Centenas de animais já foram vítimas de maus tratos e tráfico no País. Um grito que muitas vezes não é escutado por ninguém, mas quando a polícia flagra, as cenas que chocam pela crueldade.

De acordo com a Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais (Renctas), o Brasil é um dos principais alvos dos traficantes da fauna silvestre. O motivo é sua grande biodiversidade. A organização não-governamental foi fundada em 1999 e desenvolve ações pelo Brasil. De acordo com a Entidade, o tráfico pode movimentar até 20 bilhões de dólares no mundo com comércio ilegal, e só fica atrás do tráfico de drogas e armas. Temos uma participação ingrata de 15% nesse montante, conforme a Renctas. Em terras brasileiras, a movimentação chega a 900 milhões de dólares. O valor alto se justifica pela raridade do animal ou grau de ameaça de extinção. Com mais de um 1,4 milhão animais catalogados no mundo, a ONG contabiliza 10% do montante no Brasil, principalmente primatas, borboletas e anfíbios. O país já conta com 218 espécies ameaçadas de extinção.

ROTAS DO TRÁFICO

O comércio ilegal de animais não é algo do século XXI. Animais silvestres eram vendidos por exploradores europeus no tempo das caravelas. Animais exóticos ou pouco conhecidos eram levados das terras tupiniquins para o velho continente. Com o passar das décadas, a prática foi virando uma forma de lucro e o crescimento ligou um sinal de alerta tardio. Assim, foi necessária a criação de leis para proteger os animais. Contudo, a primeira iniciativa veio somente em 1967 com a Lei de Proteção à Fauna. Mais de 20 anos depois, a Lei de Crimes Ambientais considerou os animais e seus ninhos de propriedade do Estado. Assim, a compra e a criação de animais silvestres são consideradas crimes inafiançáveis.

O Brasil está entre os principais exportadores, como Peru, Paraguai, Argentina e África do Sul. Mas para ocorrer a comercialização é preciso ter compradores. Os principais consumidores são: Estados Unidos, Alemanha, Inglaterra e Bélgica.

Um estudo da Renctas aponta a maioria dos animais vítimas desse tipo de crime proveniente das regiões norte, nordeste e centro-oeste do Brasil. O caminho deles, na maioria das vezes, é a parte fronteiriça do País. As estradas brasileiras são as rotas mais procuradas, mas há quem arrisque levar por aeroportos, em pacotes ou em jatos particulares. Entre as cidades brasileiras onde os animais passam ilegalmente está uma cidade do Rio Grande do Sul. Uruguaiana, com 125 mil habitantes, segundo dados do Instituto Brasileiro de Pesquisa e Estatísticas (IBGE) de 2010, faz fronteira com Argentina e fica próxima do Uruguai, sendo um ponto atrativo para os traficantes. A BR 472 é um caminho comum usado pelos criminosos.

Mapa mostra as rotas do tráfico de animais no Rio Grande do Sul e suas ligações com Santa Catarina e outros países vizinhos. Fonte: Renctas

A última grande apreensão de animais registrada em solo gaúcho, ocorreu na própria cidade de Uruguaiana. Dois homens argentinos foram flagrados transportando 634 pássaros. Ambos vinham de São Paulo, onde participaram de uma competição. Na fiscalização, a polícia identificou que mais da metade dos animais não tinham a guia de transporte exigida. Mais de 30 pássaros morreram no transporte.

Santa Maria, na região central, é um ponto forte de ligação. No dia 4 de junho, o Comando Rodoviário da Brigada Militar apreendeu na região, em Caçapava do Sul, 37 pássaros silvestres na ERS 357. Na ocasião, duas pessoas foram presas. No coração do estado gaúcho, as BRs 158, 290 e 287 se encontram no município, o que facilita o deslocamento. Distante 138 quilômetros, a cidade de Cachoeira do Sul é apontada pela Renctas como um local de venda de animais.

Engana-se quem pensa que o tráfico tem como foco apenas animais de estimação. A fauna silvestre é alvo dos mais variados fins:

  • Animais para zoológicos e colecionadores particulares;
  • Animais para fins científicos;
  • Animais para comercialização internacional em “pet shops”.

No ano de 2013, o Conselho Regional de Medicina Veterinária do Rio Grande do Sul realizou uma campanha para combater à prática. As aves são os principais alvos. Conforme o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), esse tipo de animal corresponde a quase 80% do comércio ilegal. Curiós, canários da terra e trinca-ferros, por exemplo, são alguns dos alvos prediletos. Conforme o Relatório Nacional sobre o Tráfico de Fauna Silvestre, 60% dos animais são vendidos no mercado irregular para consumo interno e os outros 40% para o exterior.

MANTENEDOURO DE FAUNA SÃO BRAZ, UM RECANTO PARA 600 ANIMAIS

Muitos animais apreendidos no Rio Grande do Sul vêm para Santa Maria, mas não por causa da localização da cidade, e sim, pois aqui, entre o verde da zona rural está situado o Mantenedouro de Fauna São Braz. Erguido no distrito de Boca do Monte, o local conta com mais de 30 hectares. Em 1995, o coordenador do projeto, Santos de Jesus Braz, veio como uma luz para dar uma oportunidade de vida tranquila e segura aos animais apreendidos pelo tráfico e maus tratos.

“Somos uma das instituições mais antigas do Rio Grande do Sul. Comecei por um gosto próprio pela vida selvagem. Fizemos um trabalho público, sem ajuda governamental. A única ajuda que temos é o da vigilância sanitária, quando se tem alguma apreensão de alimento impróprio. O desafio maior foi ganhar a empatia da sociedade para provar que fazemos um trabalho sério e isso levou mais de 10 anos”, declara.

Manter 600 animais, de 122 espécies, em um local devidamente estruturado e com qualidade não é um custo baixo. São necessários por mês mais de quatro toneladas de alimentos, sendo mil quilos de carnes. Algumas empresas da região ajudam como podem.

“Temos doações como de uma empresa Bahia que nos doa mamão e banana. Temos uma que nos dá recorte de frango. Uma vez que tem apreensão no estado eu nunca me neguei a receber. Veio um urso para cá. O animal estava sob custódia de um circo há 10 anos”, afirma Braz.

Erra quem pensa que os animais de maior porte são os que dão mais trabalho aos cuidadores. Pequenos e arteiros, os micos-prego, uma espécie de macaco, são os que mais necessitam de atenção. Segundo Braz, eles já fugiram 43 vezes, pois desatam as telas dos viveiros. Os animais mais velhos do local são os bugios, os micos-prego e algumas araras do antigo parque Oásis de Santa Maria. De acordo com coordenador, as araras podem viver até 80 anos.

“É bom ressaltar que não recebemos animais da mão da sociedade. Tem que ser de algum órgão ambiental. Recebemos animais oriundos de apreensão, maus tratos, circo (que agora não tem mais no estado) e do tráfico de animais. O comércio ilegal é o terceiro negócio ilícito do Brasil”, revela.

Mantenedouro criou o projeto adote um animal, no qual empresários pode ajudar a manter a alimentação dos bichos. Imagem: Divulgação/São Braz

Ele ainda conta que o Mantenedouro tem animais próprios da Amazônia e estão em Santa Maria, em função do tráfico. São papagaios e periquitos sem condições de devolvê-los à natureza. O estado de crueldade em que os animais são encontrados no momento da apreensão choca. “Nesses 35 anos com animais selvagens, eu já vi retina de olhos queimados, macacos embriagados com cachaça, aves com as asas cortadas (…) são inúmeros casos. Tenho aqui caixas minúsculas apreendidas pela Polícia Federal, que iam em voos pressurizados para fora do país e armadilhas. Impressionante o que o homem faz, por isso que o nosso planeta pede socorro”, desabafa.

Nessas décadas de trabalho, Braz revela que no sul do Brasil o animal mais comercializado é o Cardeal. Depois vem Canário da Terra, Trinca Ferro e Azulão. “Eles são retirados da natureza porque existe o comprador. Jamais se coloca um animal na gaiola. Na grande maioria dos pássaros conseguimos o devolver. O animal nasceu para ser livre, mas existem aqueles humanizados, que estão reféns do homem na gaiola. Aí posso citar papagaios que cantam e falam. Isso é um crime ambiental. Tenho aqui animais que cantam o hino do Grêmio e do Inter. Esses jamais voltam para a natureza, pois não vão conseguir se defender e buscar o alimento próprio”, enfatiza o coordenador do Mantenedouro.

Braz lembra de um episódio perplexo, quando ficou sabendo que um dos tigres que está no local era alimentado com cães e gatos. “Os tigres chegaram muito debilitados. Me chocou saber de depoimentos de donos de circo que um tigre ou leão comiam cães. Isso é inaceitável”, declara.

Com um grande número de equipamentos para transporte legal e seguro dos animais, o Mantenedouro é chamado constantemente pelos órgãos de proteção para auxiliar no trabalho. O espaço tem autorização para ser um zoológico, mas Braz afirma que esse não é o foco. Ele assegura que os animais não são artistas, nem astros de cinema para serem aplaudidos. O local recebe apenas visitas ambientais educativas de escolas e empresas.

NÚMERO DE APREENSÕES E SOLTURAS IMPRESSIONAM

Conforme o IBAMA, os dados disponíveis quanto a apreensões e solturas são relacionados aos animais que foram recebidos pelos Centros de Triagem de Animais Silvestres (Cetas) do instituto. Em 2017, os Cetas receberam 30.902 animais que foram apreendidos. No mesmo período, 30.359 foram devolvidos à natureza, o que inclui animais que já estavam nos Cetas em anos anteriores. Se compararmos com os dados de 2010, houve uma redução drástica. Naquele ano, houve uma apreensão de 60 mil animais, sendo que cerca de 54 mil foram devolvidos. Já em Porto Alegre, o Cetas recebeu em 2017, 1.815 animais de apreensões e devolveu à natureza 410 animais.

Os Centros são unidades responsáveis pelo manejo dos animais silvestres recebidos de ação fiscalizatória, resgate ou entrega voluntária de particulares. Eles têm a finalidade de receber, identificar, marcar, triar, avaliar, recuperar, reabilitar e destinar esses animais. Nesses locais, os bichos desenvolvem uma reeducação alimentar, locomotora e outras habilidades próprias de cada espécie para voltar a natureza. Há muitas etapas até a soltura:

– Conhecer o lugar de origem ou a área de ocorrência;

– Classificar o animal, a que espécie pertence;

– Realizar marcação adequada de cada espécie;

– Verificar a capacidade de suporte da área a ser realizada a soltura;

– Liberar o animal em seu habitat, respeitando as suas condições ecológicas;

– Monitorar a evolução e a adaptação pós-soltura;

– Desenvolver todas as etapas, cumprindo a legislação vigente.

O transporte ilegal desses animais, sem nenhum controle sanitário também é um problema de saúde pública, pois eles podem transmitir doenças graves e até mesmo desconhecidas para determinadas localidades. O veterinário e coordenador do setor de fiscalização do Conselho de Medicina Veterinária do Rio Grande do Sul, Matheus Lange, assegura que esses animais são traficados em condições muito precárias. “Existe expectativa de quase 90% dos animais retirados dos seus locais, acabam morrendo. Isso é um problema grave, pois ao serem retirados não sabemos seu estado sanitário, que pode causar doenças a outros animais e as pessoas”, relata.

Além disso, Lange reforça que após ser retirado de um determinado local, pode haver um desequilíbrio no meio ambiente, já que o animal silvestre tem grande probabilidade de virar um predador ou uma presa. O profissional garante que animais com lesões são difíceis de se fazer a reabilitação e viram alvos fáceis.

COMO TER UMA ANIMAL LEGALIZADO

Animais silvestres, em princípio, não devem ser domesticados, mas algumas pessoas podem ter em casa caturritas, papagaios, tucanos, micos e jabutis. A forma correta é comprar animais nascidos em cativeiros, em criadouros comerciais. Mas não basta comprar em um lugar em conformidade com a legislação. O animal tem que estar com anilha ou microchip. Anilha é um anel colocado nas patas, principalmente das aves. Já o microchip é implantado sob a pele do animal comprado. Esses equipamentos possuem um número de identificação, como um RG de uma pessoa. Também é obrigatória a disponibilização da nota fiscal da venda com nome científico, data de nascimento, sexo e número de identificação. O veterinário Matheus Lange orienta as pessoas na hora da compra.

“Primeiro sempre procure locais legalizados, se informem da maneira mais adequada de manter esses animais, pois o que pode ser bom para o ser humano, não é bom para eles, como alimentação, luz, descanso […] e ter um acompanhamento com veterinário para auxiliar na saúde, eventuais vacinas e manutenção da qualidade vida deles como ambiente. O acompanhamento com veterinário é fundamental”, ressalta.

PRIMEIRO E ÚNICO RELATÓRIO DE TRÁFICO

Não existe no país um número atualizado anualmente quanto a apreensão de animais do tráfico, sem ser dos Centros de Triagem de Animais Silvestre do país, vinculado ao IBAMA. O único relatório feito com todos os órgãos de proteção do Brasil foi divulgado em 2001 pela Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais (Renctas). “Após um ano de pesquisa, a entidade chegou a ter em posse 16 mil páginas”, conforme o coordenador geral Dener Giovanini. Segundo ele, em seguida foi feito um trabalho de análise das informações, separação das fontes e alimentação do banco de dados. Depois da publicação, não houve mais atualização.

O relatório apontou as aves como animais que mais sofrem com o tráfico. Além do animal vivo, um indeterminado número de aves é morta e suas penas, couros e outras partes são comercializadas. Os ovos também entram no comércio. Já os répteis entram pelo valor monetário e suas peles. Outros animais também são cobiçados pelas peles, como crocodilos e lagartos, utilizados para uma variedade de produtos: bolsas, sapatos, cintos e até malas. O documento mostra como é comum acharmos em feiras da Europa araras brasileiras por 4 mil reais.

O IBAMA estima que entre 45 e 60 mil, o número de animais apreendidos por ano no Brasil, em operações do próprio instituto e dos demais órgãos de fiscalização, mas não há um levantamento oficial atualizado, como o de 2001 do Renctas. Apesar de não existir esse levantamento, quem trabalha há décadas com o tema percebe uma diminuição nos casos de tráfico. O chefe da unidade técnica de 2º nível do IBAMA em Santa Maria, Tarso Isaia, constatou essa redução na região. “Efetivamente a gente pode concluir com as ações do IBAMA houve uma redução bastante significativa. Já tivemos no passado um volume muito grande. Esse crime ambiental já foi mais grave, as ocorrências diminuíram bastante pela ação de fiscalização dos órgãos como IBAMA e Brigada Militar”, conta.

Para Isaia, esse cerco do poder público foi um fator importante para a queda. Ele informa que o IBAMA atua de várias maneiras, por meio de denúncias, operações de rotina ao longo do ano e investigações. O chefe regional do instituto alerta para um problema que vem surgindo com a tecnologia. A migração do tráfico para a negociação pela internet. Conforme Isaia, o IBAMA faz um levantamento em redes sociais de questões relacionadas aos animais em cativeiro. “Já existe jurisprudência de que a rede social é um comprovante de pessoas que expõem essa ação. E elas estão sujeitas a todas as sanções”, esclarece. Ele ainda elucida, que o todas as infrações ambientais podem ser apuradas em três níveis: administrativo (multas); esfera cível e denúncia de criminal. As penas variam de multas, prestação de serviços à comunidade e até prisão. O IBAMA atua com multas administrativas, em valor financeiro estabelecido por decreto presidencial.

DEZ AGENTES PARA MAIS DE 200 CIDADES

O órgão federal também sofre com a limitação de fiscais. Hoje, são dez servidores atuando na unidade Santa Maria, que abrange 237 cidades da região centro-oeste e noroeste do Rio Grande do Sul. O número alto de cidades justifica-se pelo fato da seccional de Passo Fundo ser fechada e cidade teve que incluir mais municípios no seu trabalho.

“São inúmeros os temas que a gente se envolve como: água, solo, contaminação, aplicação de venenos não autorizados, questões de mineração, fauna, flora […] trabalho é que não falta e às vezes o que não se tem é capacidade operacional. Trabalhamos com aquilo que é possível. Estamos trabalhando com a possibilidade de um concurso no ano que vem e estamos precisando, pois, o IBAMA está há cinco anos sem concurso”, finaliza o chefe da unidade de Santa Maria.

Em meio a todas essas dificuldades e situações, quem mais sofre nas mãos de pessoas mal-intencionadas são os animais, que gritam por socorro e, na maioria das vezes, podem estar passando ao seu lado em uma estrada, mas não são ouvidos.

CONTATOS PARA DENUNCIAR O TRÁFICO DE ANIMAIS

IBAMA/Santa Maria – (55) 3221-6843

2º Batalhão Ambiental Da Brigada Militar – (55) 3221 7372 

Brasil em números

517 espécies de anfíbios
468 de répteis
524 de mamíferos
1.622 de aves
3 mil peixes de água doce
15 milhões de inseto

Fonte: Ministério do Meio Ambiente, Relatório Nacional sobre a biodiversidade, 1998

 Animais mais procurados pelo tráfico:
 Papagaio de cara roxa
 Arara canindé
 Arara-vermelha
 Corrupião
 Curió
 Tie-sangue
 Saíra-sete-cores
 Tucano
 Mico-leão-dourado
 Macaco-prego
 Jaguatirica

Fonte: Renctas
Reportagem produzida durante o 1º semestre de 2018, na disciplina de Jornalismo Investigativo, do Curso de Jornalismo da UFN, ministrada pela professora Carla Torres.