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Roma

ROMA: a poética precariedade da vida

Talvez, para dizer deste grandioso filme de Alfonso Cuarón, não seja abusar do lugar comum usar do velho ditado de que todos os caminhos levam a Roma. Nele, Cuarón rende suas homenagens ao cinema, respiro de

Talvez, para dizer deste grandioso filme de Alfonso Cuarón, não seja abusar do lugar comum usar do velho ditado de que todos os caminhos levam a Roma. Nele, Cuarón rende suas homenagens ao cinema, respiro de Cleo, protagonista do filme, de uma vida fechada nos repetitivos afazeres da casa onde vive e trabalha. O filme impressiona justamente por sua capacidade poética de elevar ao estatuto do sublime o lugar comum de uma cena familiar, um drama cotidiano tão profundamente enraizado na cultura mexicana, mas que também poderia ser de outro lugar qualquer da América Latina ou de uma grande capital do Brasil. Mesmo aqueles que poderiam se entediar com o tempo arrastado e a arquitetura em preto e branco da película, muito provavelmente não ficarão insensíveis à fotografia impressionante, aos planos de tirar o fôlego e, com sorte, deixar-se levar para uma Outra cena, de um inconsciente colonial que fala de todos nós, os latinos.

O diretor o remonta de suas memórias infantis na Colonia Roma, onde cresceu, na Cidade do México, bairro elegante com suas casas imponentes e seus habitantes, cuja pele contrasta com a tez indígena que colore as ruas dessa cidade imponente e que me encantou à primeira vista com inquietante estranheza: tão diferente de nós, tão familiar. Também um título que me fez deslizar o pensamento para uma imaginada Roma antiga, com suas construções igualmente imponentes e uma mítica origem, no ocidente, de uma arcaica relação entre senhores e escravos e, mais particularmente para todos nós, das profundas diferenças sociais que desde nossa herança colonial resistem violentamente a qualquer mudança efetiva, sempre querendo retornar à sua forma original de dominação e infâmia. Da mesma forma, o clima de desamparo social, a intolerância e violência em que passamos a acreditar como saída para um profundo desamparo que não conhece classes, nem cores de pele, mas que expõe a ferida aberta e pulsante de nossas mais profundas mazelas.

Não por acaso, sua ambientação em 1970, conta, então, a história de Cleo, que trabalha como empregada doméstica em uma família mexicana de classe média. A separação do casal abala o cotidiano familiar, enquanto Sofia, mãe, esposa e patroa de Cleo tenta em vão esconder dos filhos a realidade desse acontecimento que promete modificar a vida de todos com a saída de casa do pai, agindo como se ele tivesse partido em uma longa viagem de trabalho. Assim, também Cleo vive em segredo seu próprio drama, ao engravidar de Fermin, que a abandona em pleno cinema ao saber de sua gravidez. Personagem muito familiar, com uma relação um tanto “deliróide” com as artes marciais,  acaba envolvido em uma organização paramilitar ou milícia e que não se sabe por qual insuficiência simbólica, recua violentamente de assumir a paternidade do filho.  Aliás, essas duas mulheres de vidas tão distintas tem isso em comum:  a subestimação dos laços de paternidade e o desamparo a que são lançadas por essa condição. Cleo vai reencontrar Fermin, mais tarde, na rua como um dos jovens usados pelo Estado no massacre de Halconazo, um dos episódios mais terríveis da história política do México.

Mesmo com receio de ser demitida, Cleo conta a Sofia da gravidez, e é amparada por ela, provavelmente por identificação com a sua situação. Laço que se estreita quando Cleo, mesmo sem saber nadar, salva os filhos de Sofia de um afogamento em um mar revolto (como dizia Jacques Lacan, psicanalista francês, “amar é dar o que não se tem”).

De realidades tão distantes, essas mulheres rompem, atravessam a forma em que são constituídas. Atravessam a parede histórica que as separa, para amparar uma a outra, produzindo um raro encontro de ilhas tão incomunicáveis. Esse encontro trágico, repleto de poesia, afirma uma utopia de nossos tempos: que possamos nos encontrar verdadeiramente em algum lugar (ou não-lugar). Momento que se aproxima daquilo que Judith Butler em seu livro Quadros de guerra vai nos trazer com alguma esperança. De que na vida, como condição generalizada, talvez só seja possível alcançar o outro, ao mobilizar uma comoção que nos permita um breve encontro contra toda a violência dos muros que nos separam, pelo reconhecimento de que toda a vida é precária. Assim, amparados nesse reconhecimento, talvez possamos, com essa utopia nunca plenamente realizável, transpor as muralhas desse imenso Coliseu que separa o eu do outro. Roma nos oferece essa poética esperança, que só uma obra prima do cinema poderia desenhar.

 

 

Marcos Pippi de Medeiros é psicólogo e psicanalista. Professor no curso de Psicologia da UFN