A violência doméstica se caracteriza por todo o tipo de violência praticado dentro de casa ou do que é considerado ambiente familiar. Há quem se engane ao pensar que violência doméstica se trata apenas de pais batendo em filhos, ou homens em suas companheiras. A violência doméstica compreende violência sexual, física, e psicológica, assim como, privação ou abandono exercida dentro do lar entre pais e filhos, cônjuges e pessoas com qualquer outro grau de parentesco. O modelo de sociedade patriarcal em que vivemos torna alguns de nós mais vulneráveis à violência doméstica. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de cada três casos de violência doméstica atendidos pelos plantões do Sistema Único de Saúde (SUS), dois envolvem mulheres. Crianças e idosos também contemplam o grande número de pessoas que sofrem maus tratos nas casas brasileiras.
A violência está presente na casa de centenas de pessoas e não escolhe cor, gênero ou condição social. Apesar de viver em todas as camadas da sociedade, os indicativos mostram que a maioria dos casos acontecem com mulheres negras e que moram em zonas periféricas das cidades. O Balanço realizado em 2015 pela Central de Atendimento à Mulher mostra que 38,72% das vítimas nessa situação sofrem violência diariamente. Para 33,86%, a agressão ocorria semanalmente e em 67,36% das ocorrências, a violência havia sido cometida por homens que já haviam tido algum vínculo afetivo com a vítima. Em outros 27% dos casos, os envolvidos eram amigos, familiares, vizinhos ou conhecidos. Segundo o Instituto Patrícia Galvão, das 63.090 denúncias realizadas nos primeiros dez meses de 2015, 49,82% eram referentes à agressão física, 30,40% envolvendo violência psicológica, 7,33% violência moral, 2,19% envolvendo danos patrimoniais, 4,86% referentes à violência sexual, 1,76% envolviam cárcere privado e 0,53% tráfico. Além disso, a pesquisa mostra que 77,83% dessas mulheres possuem filhos e que mais de 80% deles já presenciou ou também sofreu violência.
Analisando os números de agressão e violência contra a mulher, é importante propor a reflexão de um tema que vem sendo discutido com mais freqüência: os casos de feminicídio no Brasil. O Mapa da Violência 2015 mostra que o homicídio que transcorre violentamente contra a mulher aumentou 54% com as mulheres negras em dez anos. Neste mesmo período, o número de mortes de mulheres brancas diminuiu quase 10%.
Segundo o estudo sobre estupro realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea),
“a violência de gênero é um reflexo direto da ideologia patriarcal, que demarca explicitamente os papéis e as relações de poder entre homens e mulheres. Como subproduto do patriarcalismo, a cultura do machismo, disseminada muitas vezes de forma implícita ou sub-reptícia, coloca a mulher como objeto de desejo e de propriedade do homem”.
Sob esse olhar, é também importante rememorar que o Código Penal de 1886 acolhia os homens que se vingavam por traição, e a figura masculina não era culpabilizada por homicídios e violência contra suas esposas consideradas adúlteras. O adultério só deixou de ser crime no Brasil em 2005. A Lei do Feminicídio, sancionada em 2015 pela presidenta Dilma Rousseff, colocou a morte de mulheres como crime hediondo e designou índice de tolerância mínima nos julgamentos de casos como esses.
A Lei que protege a mulher
Segundo dados do IBGE, a cada ano, mais de um milhão de mulheres são vítimas de violência doméstica no Brasil. Conforme a pesquisa sobre violência doméstica e familiar de 2015 do DataSenado, a cada cinco mulheres, uma já foi agredida pelo companheiro, marido, namorado ou outro.
A lei Maria da Penha, nº 11.340/2006, foi sancionada em sete de agosto de 2006 e entrou em vigor dia 22 de setembro do mesmo ano. Prestes a completar dez anos, a Lei defende as mulheres de seus parceiros, assim como de cunhado, sogro, padrasto, ou seja, não importa o grau de parentesco. A Maria da Penha não protege as mulheres apenas da violência física, ela identifica também como agressão o sofrimento psicológico, a violência patrimonial, a violência sexual e a violência moral.
A Lei carrega carrega o nome da farmacêutica bioquímica Maria da Penha Maia Fernandes, que sofreu violência doméstica durante 23 anos. O colombiano Marco Antonio Heredia Viveros, seu ex-marido, tentou matá-la duas vezes. A primeira com um tiro de arma de fogo, o qual a deixou paraplégica. Já na segunda, Viveros tentou eletrocutá-la e afogá-la. Após a segunda tentativa de assassinato, Maria da Penha buscou coragem e denunciou seu parceiro. Marco Antonio Heredia Viveros foi condenado a dez anos de prisão, mas cumpriu menos de um terço da pena. Ele foi preso 19 anos e seis meses depois do crime, no ano de 2002.
Segundo dados de 2015 do Ipea, a legislação colaborou para a queda de cerca de 10% na taxa de homicídios de mulheres dentro das próprias residências. A Organização das Nações Unidas (ONU) identifica a lei Maria da Penha como sendo uma das três legislações mais importantes no mundo no confronto à violência contra a mulher.
A lei também prevê proteção a mulheres que se relacionam com outras mulheres. O Tribunal de Justiça de São Paulo assegurou que a legislação passa a defender os transexuais que se identificam como mulheres em sua identidade de gênero.
Como denunciar?Procurar uma delegacia especializada e realizar um boletim de ocorrência, ou ligar para a Central de Atendimento através do número 180. A denúncia é anônima e o serviço funciona 24 horas. A denúncia pode ser realizada pela vítima ou por alguém próximo a ela.A vítima também pode ligar para a polícia, no 190, e também para o número 100, um dique-denúncia que auxilia em casos de agressões sexuais contra crianças e adolescentes, pornografia infantil e tráfico de mulheres.A Central de Atendimento à Mulher disponibiliza informações sobre a legislação, assim como, atendimento psicológico, jurídico e social à vítima. Além de guiar as vítimas sobre o que fazer.Desde 2014, o aplicativo Clique 180 apresenta informações sobre a Lei Maria da Penha. |
A Lei que protege as crianças
A população infantil está em segundo lugar nos casos de violência doméstica no Brasil. Segundo a Fundação das Nações Unidas para Infância (UNICEF), a pobreza é um fator significativo para o número de famílias que sofrem violação dos direitos, e isso também acontece com as crianças. Os indicativos apontam que as crianças negras têm 70% de chance a mais de viver na pobreza no Brasil, comparado às crianças brancas.
A UNICEF também afirma que as crianças e os adolescentes são afetados em particular por casos de violência. A cada hora, cinco casos de violência contra a criança e ao adolescente, são registrados pelo Disque-Denúncia 100 no País. Assim, a cada dia, 129 casos de agressão física, violência sexual, tortura psicológica e negligência, são denunciados. Segundo Maurício Santoro, assessor de Direitos Humanos na Anistia Internacional, os casos de homicídio, envolvendo crianças e jovens no Brasil equivalem a 10% dos homicídios ocorridos em todo o mundo. As crianças e os adolescentes brasileiros são amparados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). O Artigo 18-A do Estatuto diz que toda a criança e adolescente tem o direito de ser educado e cuidado sem o uso de castigo físico ou tratamento envolvendo crueldade por parte dos responsáveis pelos menores. A Lei considera crime castigo físico, sofrimento físico, lesão, tratamento cruel, humilhação, ameaça ou ridicularização.
A Lei 13.010, compreendida no Artigo 18-A, foi aprovada pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal em 2014. A apelidada Lei da Palmada, que tramitava desde 2003, ficou conhecida como Lei do Menino Bernardo, devido ao assassinato de Bernardo Boldrini, de 11 anos, no mesmo ano. O crime teria sido arquitetado pelo pai e pela madrasta do menino, e seu corpo foi encontrado na cidade de Frederico Westphalen.
A Lei que protege os idosos
A população idosa brasileira está aumentando, devido à redução da taxa de mortalidade, ao aumento da expectativa de vida em consequência dos avanços tecnológicos, e também devido ao declínio da taxa de fecundidade. Segundo dados do IBGE, nosso país tem caminhado rapidamente a um perfil mais próximo da terceira idade.
Os números também apontam quem, em 2050, existirão cerca de 70 idosos para cada 100 crianças. O estudo divulgou ainda que, no ano de 2050, a população brasileira será de aproximadamente 215 milhões de habitantes. Para aquele ano, o IBGE indica que a expectativa de vida do brasileiro irá aumentar, chegando a 81 anos para homens e mulheres.
Com o aumento no número de idosos, crescem os problemas sociais e econômicos, que obrigam as autoridades a criarem políticas de proteção è terceira idade, assim como a garantir uma melhor qualidade de vida. Devido a esse crescimento acelerado, surgem casos de abandono, maus tratos, negligência, entre outro problemas. Os idosos estão logo após as crianças nos indicativos de violência doméstica em nosso País. O Brasil possui um estatuto que ampara legalmente o idoso. Nele está previsto, que toda ação ou omissão praticada que lhe cause morte, dano ou sofrimento físico ou psicológico é considerado crime (Art. 19). Conforme dados do Disque 100 de 2015, houve um aumento de 16,4% de registros de casos de violência doméstica contra o idoso em um ano. Neste ano, de janeiro a junho, o serviço do governo federal Disque 100, recebeu mais de 16 mil denúncias de agressão contra idosos, que significa uma média de 43 denúncias ao dia. Os casos de abandono de idosos diz respeito à maior parcela das denúncias recebidas e correspondem a 77,6% das ligações. Logo depois, está o registro de violência psicológica com 51,7%, o abuso financeiro com 38, 9% e, por último, a violência física, com 26,5%. Na maioria das vezes são os próprios familiares que cometem a agressão.
“Quem nunca tomou um tapa? Começamos errado”
Conforme a delegada Debóra Dias, responsável pela Delegacia da Mulher em Santa Maria, são registradas aproximadamente quatro mil ocorrências ao ano. Dessas denúncias, 90% referem-se à violência doméstica, e os outros 10% são desentendimentos entre vizinhos ou parentes. Segundo Débora, a violência doméstica acontece em primeiro lugar com mulheres, em segundo com meninas, logo após com meninos, mulheres idosas, homens idosos e, por último, com os homens.
Entre as queixas prestadas na Delegacia da Mulher, a maioria é contra atuais companheiros, ex-maridos, namorados, filhos, pais ou netos. Débora afirma as mulheres que sofrem violência carregam estigmas que as impedem de registrar a ocorrência. Sentimentos como vergonha, culpa e medo surgem porque normalmente o agressor possui um vínculo afetivo com a vítima. “Não é a mesma coisa registrar queixa contra um furto, por exemplo, onde se trata de uma pessoa desconhecida”, relata a delegada.
“Geralmente, quando a mulher procura a delegacia especializada não é a primeira vez que aconteceu a agressão. Dificilmente uma mulher vem até nós, afirmando ‘é a primeira vez que fui ameaçada e agredida’”, comenta Débora. Ela ainda faz uma comparação entre as mulheres agredidas e as crianças abusadas. Ambas, nessa situação, sentem-se culpadas, sofrem com o medo e isso faz com que retirem a queixa. “Muitas mulheres passam pela delegacia, olham e não conseguem entrar”, comenta a advogada.
A delegada observa que as mulheres que mais procuram ajuda são as menos favorecidas economicamente, pois é a única ‘porta’ que elas enxergam como saída. Já, as vítimas de violência doméstica com melhor condição financeira procuram advogados, psicólogos e médicos, e não a polícia.
Em 2015 foram efetuados 78 mandados de prisão em Santa Maria, e somente entre janeiro até final de junho deste ano, já foram aproximadamente 18. Ainda em 2015, Santa Maria teve um decréscimo nos casos de homicídio, ao contrário do resto do estado e do País. No final do no passado, foi registrado o único caso de feminicídio na cidade, em que uma mulher teria tirado a vida da companheira a facadas.
Segundo a psicóloga e professora do Centro Universitário Franciscano Vânia Fortes de Oliveira, boa parte das vítimas que sofre de violência doméstica não sai dos lares por conta de diversos fatores e não apenas por medo. Dependência psicológica e financeira, assim como, a perda do status de mulher casada influenciam muito na decisão. Além disso, os considerados círculos de cuidado muitas vezes são falhos, e sair da casa onde vivem com o companheiro ou companheira significa voltar à casa dos pais, para muitas, um retrocesso.
A psicóloga ainda afirma que muitas dessas mulheres sentem-se culpadas pela agressão que sofrem e acabam aceitando, entendendo que são merecedoras da situação. “Não cabe à nós julgar uma realidade que não vivemos. Infelizmente, a maioria das mulheres que sofrem violência doméstica no País são as mais pobres. Viver em um ambiente violento não quer dizer que a mulher é fraca ou sequer gosta de sofrer. É muito mais complexo do que isso”, afirma Vânia. Neste vídeo, temos o depoimento completo da psicóloga Vânia Fortes.
Campanhas são realizadas em todo o país no intuito de combater a violência doméstica e principalmente a violência contra a mulher no Brasil. O Jornal do Commércio lançou uma ideia diferente para que a população se conscientizasse da grandiosidade do tema e de como é importante falarmos sobre violência. A campanha de áudio 3D simula uma situação em que uma mulher é agredida. Infelizmente continuaremos a presenciar ou a ficar sabendo de agressões, mas a omissão só colabora para a manutenção desse tipo de atitude covarde. Seja você vítima ou testemunha, denuncie.
Por Julia Machado e Helena Moura, acadêmicas da disciplina de Jornalismo Especializado III, do Curso de Jornalismo do Centro Universitário Franciscano, 1º semestre/2016.