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HQ

Além do filme

O Joaquin Phoenix me pegou desprevenida. Fazem uns dois meses que assisti o filme no qual ele estrela como o Coringa, numa noite, num cinema quase vazio. Não havia mais do que vinte pessoas. Não tinha expectativa

O Joaquin Phoenix me pegou desprevenida. Fazem uns dois meses que assisti o filme no qual ele estrela como o Coringa, numa noite, num cinema quase vazio. Não havia mais do que vinte pessoas. Não tinha expectativa nenhuma, pois nunca tinha assistido filme sobre essa personagem. Fui pega de surpresa com esse Coringa, pela personagem ali construída, por Joaquin Phoenix e seu Arthur Fleck. Pensei imediatamente em escrever para colocar em dia as colunas no site, mas não pude. Escrever implica se expor. Escrever implica criar, estar aberto para a criação. Precisei gestar.

Depois do tempo passado, não queria fugir do filme (ou seria da personagem?), pois ele me comoveu. A humanidade descarnada daquele sujeito, a falta de amor sufocante no entorno dele, sua mãe narcísica e enclausurada em narrativas repetitivas e profundamente nefastas. Não se trata de considerá-lo vítima, mas reconhecer nele uma humanidade frágil, distorcida, alucinada e má. Mas a maldade não se restringe a uma personagem, de certa forma é a linguagem geral do filme. A vilania é a tônica desse conjunto de personagens: os sujeitos que o ridicularizam e o espancam de forma gratuita, os playboys cruéis no metrô, o apresentador de tv e seu incansável apetite para humilhar seus interlocutores, os senhores da cidade e seu nefasto descaso pelos pobres… Não soa familiar?

Todavia, nesse profundo mergulho no lado sombrio do humano, a solução da tensão pela emergência de um assassino insensível é frágil e decepcionante! É justamente ali, naquele ponto que o filme vira quadrinhos. Daquele momento em diante a narrativa adquire outro tom, de um escracho de maldade. Arthur Fleck sucumbe à sombra do Coringa e do impositivo fim da personagem, conforme o destino desenhado nas versões anteriores do vilão. A fantasia da vingança como a redenção é uma guinada rápida e acaba perdendo o ritmo inicial daquela narrativa humanizada, os ditames do HQ se impõem. Arthur Fleck poderia ter outro fim: um sanatório, um romance, a infelicidade infinda, a morte. Mas não, o Coringa encerra a imaginação e o fim é previamente definido: Gotham City, Bruce Waine e a trajetória que se segue, precisa acontecer para se conectar com as histórias que lemos na década de 80 e 90.

Pessoalmente, creio que a genialidade da interpretação de Joaquin abre e fecha o filme, tanto que a personagem que ele cria ultrapassa o filme, é maior que o Coringa, é passível de existir e por isso perturba. Há uma característica em especial que ele explora e que se destaca e, talvez por isso, amedronte ainda mais – Arthur expõe a cultura do ‘looser’ de uma posição incômoda – a de alguém que deixa de aceitá-la e revida. Experiências aterrozizantes que a sociedade dos EUA tem vivido recorrentemente.

A ‘cultura do fracassado’, do ‘looser’, tem sido um produto de exportação do cinema enlatado americano desde os anos 80. E é essa uma ideia muito cruel porque estimula as pessoas a se colocar num lugar de comparação, num exercício que só produz frustração. Uma ação de perversidade pura, a verdadeira vilania: comparar o incomparável – a vida de cada uml!… As trajetórias individuais que dentro das distintas sociedades e tempos históricos nos quais elas se desenrolam com irrepetível unicidade! Se o selfmade-man é a narrativa do sucesso, seu avesso é o ‘looser’? Direito e avesso do capitalismo?

De fato, se há loosers somos todos nós que conseguimos manter a violência banal (material e simbólica) como uma linguagem corrente; que desmoralizamos a solidariedade e a cooperação como elementos mediadores das nossas relações. Não estaria passando da hora de colocarmos em questão a ideia de que o ‘bom sujeito’ é aquele que tem sucesso porque conjuga todos os verbos na primeira pessoa do singular?

Não nos enganemos, a mensagem da sociedade do ‘sucesso’ e que serão poucos os escolhidos em meio à multidão excluída. Um produto dileto do império da ‘escolha’ frente a um mundo que carece de comunhão. De fato, Joaquin foi incrível, porque elevou a narrativa à reflexão.. Bravo!

 

Paula Jardim Bolzan, historiadora e antropóloga, professora na UFN