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Santa Maria, RS, Brazil

Paula Jardim Bolzan

Além do filme

O Joaquin Phoenix me pegou desprevenida. Fazem uns dois meses que assisti o filme no qual ele estrela como o Coringa, numa noite, num cinema quase vazio. Não havia mais do que vinte pessoas. Não tinha expectativa

Luz do mundo

Foi numa tarde muito fria que ela nasceu. Melhor dito: foi numa tarde gélida que ela iluminou o semblante de seu pai, luz que ecoou. Não lembro quantas horas fazia que ela respirava, mas o suficiente

O Joaquin Phoenix me pegou desprevenida. Fazem uns dois meses que assisti o filme no qual ele estrela como o Coringa, numa noite, num cinema quase vazio. Não havia mais do que vinte pessoas. Não tinha expectativa nenhuma, pois nunca tinha assistido filme sobre essa personagem. Fui pega de surpresa com esse Coringa, pela personagem ali construída, por Joaquin Phoenix e seu Arthur Fleck. Pensei imediatamente em escrever para colocar em dia as colunas no site, mas não pude. Escrever implica se expor. Escrever implica criar, estar aberto para a criação. Precisei gestar.

Depois do tempo passado, não queria fugir do filme (ou seria da personagem?), pois ele me comoveu. A humanidade descarnada daquele sujeito, a falta de amor sufocante no entorno dele, sua mãe narcísica e enclausurada em narrativas repetitivas e profundamente nefastas. Não se trata de considerá-lo vítima, mas reconhecer nele uma humanidade frágil, distorcida, alucinada e má. Mas a maldade não se restringe a uma personagem, de certa forma é a linguagem geral do filme. A vilania é a tônica desse conjunto de personagens: os sujeitos que o ridicularizam e o espancam de forma gratuita, os playboys cruéis no metrô, o apresentador de tv e seu incansável apetite para humilhar seus interlocutores, os senhores da cidade e seu nefasto descaso pelos pobres… Não soa familiar?

Todavia, nesse profundo mergulho no lado sombrio do humano, a solução da tensão pela emergência de um assassino insensível é frágil e decepcionante! É justamente ali, naquele ponto que o filme vira quadrinhos. Daquele momento em diante a narrativa adquire outro tom, de um escracho de maldade. Arthur Fleck sucumbe à sombra do Coringa e do impositivo fim da personagem, conforme o destino desenhado nas versões anteriores do vilão. A fantasia da vingança como a redenção é uma guinada rápida e acaba perdendo o ritmo inicial daquela narrativa humanizada, os ditames do HQ se impõem. Arthur Fleck poderia ter outro fim: um sanatório, um romance, a infelicidade infinda, a morte. Mas não, o Coringa encerra a imaginação e o fim é previamente definido: Gotham City, Bruce Waine e a trajetória que se segue, precisa acontecer para se conectar com as histórias que lemos na década de 80 e 90.

Pessoalmente, creio que a genialidade da interpretação de Joaquin abre e fecha o filme, tanto que a personagem que ele cria ultrapassa o filme, é maior que o Coringa, é passível de existir e por isso perturba. Há uma característica em especial que ele explora e que se destaca e, talvez por isso, amedronte ainda mais – Arthur expõe a cultura do ‘looser’ de uma posição incômoda – a de alguém que deixa de aceitá-la e revida. Experiências aterrozizantes que a sociedade dos EUA tem vivido recorrentemente.

A ‘cultura do fracassado’, do ‘looser’, tem sido um produto de exportação do cinema enlatado americano desde os anos 80. E é essa uma ideia muito cruel porque estimula as pessoas a se colocar num lugar de comparação, num exercício que só produz frustração. Uma ação de perversidade pura, a verdadeira vilania: comparar o incomparável – a vida de cada uml!… As trajetórias individuais que dentro das distintas sociedades e tempos históricos nos quais elas se desenrolam com irrepetível unicidade! Se o selfmade-man é a narrativa do sucesso, seu avesso é o ‘looser’? Direito e avesso do capitalismo?

De fato, se há loosers somos todos nós que conseguimos manter a violência banal (material e simbólica) como uma linguagem corrente; que desmoralizamos a solidariedade e a cooperação como elementos mediadores das nossas relações. Não estaria passando da hora de colocarmos em questão a ideia de que o ‘bom sujeito’ é aquele que tem sucesso porque conjuga todos os verbos na primeira pessoa do singular?

Não nos enganemos, a mensagem da sociedade do ‘sucesso’ e que serão poucos os escolhidos em meio à multidão excluída. Um produto dileto do império da ‘escolha’ frente a um mundo que carece de comunhão. De fato, Joaquin foi incrível, porque elevou a narrativa à reflexão.. Bravo!

 

Paula Jardim Bolzan, historiadora e antropóloga, professora na UFN

Foto: Markus Spiske /Pixabay

Foi numa tarde muito fria que ela nasceu. Melhor dito: foi numa tarde gélida que ela iluminou o semblante de seu pai, luz que ecoou. Não lembro quantas horas fazia que ela respirava, mas o suficiente para mudar nossas vidas. Fui visitá-la. Levei rosas. Rosas rosas em cabos longos sem espinho. Ela não sabia cheirar e ninguém soube o que fazer com o presente que foi colocado sobre uma bancada. Sentei-me ao seu lado e, sem cerimônia, ela me olhou com firmeza pela fresta daqueles olhos intensos. Parei, não havia nada tão importante quanto deixar que ela prendesse meu dedo indicador na sua mãozinha forte e tudo ficou pleno.
Fazem 15 anos e, desde então, o mundo não é o mesmo.
Ela nasceu antes do instagram e isso me deixou feliz, porque poderia ter inúmeras imagens dos seus primeiros olhares, todos parciais e sem fazer jus à sua existência. Ela nasceu antes dos likes ficarem furiosos no facebook e isso me deixou feliz, porque haveria menos likes do que ela mereceria, mesmo que nenhum deles expressasse a emoção profunda de estar em sua presença. No dia que que a seleção brasileira de futebol masculino tomou aquele 7 a 1 ela era uma guriazinha animada que se confundiu com os gols e replays infindáveis.
Fazem 15 anos e isso significa dizer que foi antes das passeatas do ‘passe livre’, antes da expressão ‘não é pelos 0,20 centavos’, antes das ruas tomadas pela diversidade de pessoas e opiniões a expressarem insatisfação com o andamento da política. Ela ainda era pequena nas manifestações que, em 2013, ocuparam as cidades grandes. Ainda não pegava ônibus no período das grandes greves que pararam o transporte público. Foram anos tão democráticos e os passeios pelas ruas, ao sol, eram mais livres. Não era difícil discutir a necessidade de avanço no campo dos direitos humanos naqueles dias. E mesmo das meninas pequenas, era esperado que refletissem sobre sua experiência no caminho de se tornarem mulheres. Isso era prazeroso para mim: saber que ela vivia um tempo em que os desafios da sua condição podiam ser discutidos abertamente por gurias atentas. Isso aquecia meu coração. Sentia que naquele espaço e tempo estávamos criando um tesouro, algo que comporia uma herança positiva. Faz pouco tempo, tão pouco tempo e passou rápido demais.
Todavia, não quero explicar essa mudança com poucas palavras, quero pensar alto com elas nesse espaço em comum do texto. A vida mudou. A violência aumentou e os violentadores parecem desavergonhados. E notícias tristes e acumulam nos feeds, em sites de jornais (nacionais e regionais) e elas nos contam sobre a crueldade que a violência contra as mulheres tem se tornado robusta, tão robusta como sem racionalidade. Por que matar mães, filhas, esposas, namoradas? Que pode um mundo sem mulheres? Existe mundo sem elas? Gustave Coubert, lá no século XIX, pintou a origem do mundo conhecido que só pode existir pelo parto que um corpo feminino é capaz de suportar.
Nesse tempo passado e presente, é na data do aniversário de minha sobrinha que meu coração se apequena ao pensar nos desafios pelos quais ela vai passar, em todos os perigos que ela vai enfrentar. Com qual sociedade presenteamos nossos amados e amadas? Uma sociedade que parece travar e retroceder em direção à agressividade ao invés de abraçar nossas diferenças e caminhar junto à promoção da vida? Tenho pensado sobre isso, sobre qual a herança que deixaremos para as luzes desse mundo: nossas sobrinhas e sobrinhos, nossos filhos e filhas, nossas crianças todas.
Toda a vida importa! (Ah, como a vida de todos os seres humanos deveria importar!)
Agora quero dizer uma vez e alto, com todas as letras: a vida das mulheres importa (pois são elas as que morrem nas mãos dos esposos, dos namorados e não o contrário)!  Mulheres, que desde pequenas, se agigantam e seguem, com infalível certeza, reinaugurando o mundo.
Esse é o meu presente para o seu futuro, para todos os futuros, para que haja futuro!

 

Paula Jardim Bolzan, historiadora e antropóloga, professora na UFN