O tratamento dispensado a um grupo de jovens, que ainda teima em acreditar e lutar por uma sociedade mais justa e menos submissa à tirania do capital privado sobre o direito coletivo é exemplar e deixa-nos na mente a pergunta: a quem servem, afinal, as instituições que reputamos como democráticas em nossa sociedade? Acompanhe a seguir o artigo da doutoranda Adriana Saraiva, que colabora de Brasília.
Há cerca de um mês, por ocasião do Grito dos Excluídos, promovido no sete de setembro, no DF, um prédio abandonado da W3 norte foi ocupado por um grupo de jovens. O prédio estava vazio há 12 anos, e pertencera ao antigo BANERJ, comprado, posteriormente, pelo banco Itaú. Esse grupo de jovens, ao longo desse mês, promoveu melhorias no espaço abandonado, saldando uma antiga dívida de água (de mais de 800 reais) com a CAESB e restabelecendo o seu fornecimento. Além disso, limpou o local e franqueou seu interior a diversos grupos e coletivos, permitindo que o espaço se tornasse centro de uma movimentação sócio-cultural e política.
Na madrugada do dia oito de outubro, entretanto, o Batalhão Tático da Polícia Civil do DF entrou no local, armado com metralhadoras, revirando móveis e apreendendo materiais impressos, de caráter anarquista, em sua maioria. Cinco ativistas latino-americanas foram conduzidas à sede da PF para abertura de inquérito. O único ativista brasileiro que estava na casa, no momento, foi encaminhado para uma delegacia da Polícia Civil e também interrogado.
Ao serem liberados na madrugada da terça-feira, os ativistas voltaram a se reunir em assembléia e resolveram resistir no local até que o pedido de reintegração chegasse oficialmente, com a disposição de levar a luta no campo jurídico. Porém, na manhã da terça-feira (9), a PF e a Polícia Civil invadiram o local, ameaçando as/os ativistas com metralhadoras, e os reconduzindo à Primeira DP.
Acusados de crime de formação de quadrilha e esbulho possessório, as sete ativistas que integravam o grupo foram levadas, já na manhã de quarta feira (10 de outubro), sob as ordens do Juiz Demétrius Gomes Cavalcante, juiz de plantão e titular do 1º Juizado Especial Criminal, para a Casa de Detenção Feminina (Colméia), enquanto os três integrantes masculinos foram encaminhados para o Departamento de Polícia Especializada – DPE.
O que esses jovens fizeram, embora incompreendido, se inscreve em um quadro em que novas formas de pensar e fazer política vêem sendo construídas. São resultado de muitos fatores, entre eles o desgaste a que a prática política partidária convencional vem sendo submetida em todo o mundo, com seus costumeiros joguetes de poder e sua ótica de locupletação a qualquer custo, em detrimento de quaisquer princípios sociais ou políticos, salvo conhecidas exceções. (É bom lembrar que, exatamente neste momento, vivemos a crise de Renan Calheiros na presidência do Senado, ostentando cenas grotescas e estarrecedoras de defesa de interesses escusos para a maioria de população que as acompanha pela imprensa.)
Novos moldes de movimentos sociais
Esses não são movimentos isolados, frutos da loucura de alguns ‘indivíduos desocupados’, que não têm mais o que fazer, além de invadir o ‘espaço alheio’. Na realidade, trata-se de um tipo de movimento que tem se difundido globalmente, e, de acordo com alguns estudiosos do tema, de uma forma quase ‘virótica’. Sua aparição, enquanto um novo tipo de movimento social tem raízes fincadas no levante Zapatista no México, no início da década de 90 (precisamente 1º de janeiro de 1994), e vem se difundindo sob uma infinidade de formas, que teve seu ápice de reconhecimento diante da sociedade global ao final da mesma década, como os ‘movimentos anti-globalização’.
Embora se voltem para diferentes aspectos, relacionados ao local onde ocorrem, têm uma ótica muito similar e apresentam características em comum, tais como: horizontalidade, não hierarquia, não liderança e não partidarismo, além de apresentarem traços sincréticos e diversificados de várias ideologias políticas de esquerda, que incluem concepções e práticas autonomistas, comunistas, socialistas, libertárias e anarquistas. São o que se poderia chamar de os ‘novíssimos movimentos sociais’.
Em Brasília, estão reunidos em torno da Convergência de Grupos Autônomos, que conglomera movimentos com diferentes especificidades, genealogias, pautas e estruturas de organização, tais como Movimento Passe Livre (já conhecido pela cidade por suas manifestações pelo passe livre para estudantes e desempregados), coletivo Corpus Crisis, (desconstrução de opressões de gênero e sexualidade); Koletivo Anarcopunk (ações pautadas por questões identitárias e específicas do grupo, como a ocupação em questão); o MADÚ, (grupos que trabalham pela libertação animal no mundo todo); e, finalmente o Centro de Mídia Independente (CMI), cuja atuação no campo da divulgação e informação, em paralelo à mídia corporativa, iniciou por ocasião da manifestação anti-globalização em Seattle.
Acrescente-se a isso, o fato de agregarem à prática política um sentido de respeito à diversidade, às questões de gênero e sexualidade, assim como práticas de preservação do meio ambiente. No caso específico, tratam também da questão urbana: qual a função social da cidade? Porque existem espaços tão centrais, abandonados por anos a fio, propiciando o surgimento de atividades criminosas e até perigosas á comunidade local? Por que tais espaços não são assumidos pela própria comunidade, passando a oferecer alternativas de encontros e práticas comunitárias? Por que a cidade não pertence aos cidadãos?
Esses movimentos, portanto, inauguram uma prática política contemporânea e inovadora sob vários aspectos, e abrem espaços simbólicos para se repensar noções consideradas a muito "resolvidas": o que é a cidade, quais os limites da intervenção urbana, o que é o público e o privado? Ou ainda, porque empresas privadas podem invadir espaços públicos em pleno uso (como é o caso das áreas verdes de Brasília, ocupadas por bares e restaurantes, ou áreas públicas ocupadas por estacionamento de carros, ou áreas de uma ciclovia ocupadas por mansões particulares do Lago Norte … enfim, uma infinidade de exemplos….) e espaços privados, longamente desocupados e sub-utilizados, não podem ter uma utilização social mais justa e compartilhada? São perguntas que surgem quando as pessoas conseguem transcender noções e preconceitos aos quais já estão tão habituadas, a ponto de não enxergarem mais o que há de arbitrário e injusto a sustentá-los.
O movimento da Ocupação Pombal, como todo movimento social, transcende limites que a sociedade, naquele momento, considera intransponíveis. Essa, aliás, é a função histórica dos movimentos: se não fossem eles, as jornadas de trabalho não teriam oito horas, as crianças trabalhariam em condição de igualdade com adultos, a escravidão ainda existiria, e as mulheres não votariam. Apenas uns poucos exemplos para ilustrar o que se conseguiu, a duras penas, conquistar legalmente, a partir da ampliação do imaginário social de cada época e sociedade.
A prisão arbitrária e imediata desse grupo de jovens surpreende por sua rapidez e ‘eficiência’ em um sistema conhecido por sua morosidade e complacência. No caso desses jovens, o juiz de plantão apresentou uma celeridade sem precedentes, despachando já, no mesmo dia, as moças para o Centro de Detenção Feminina e os rapazes para o Departamento de Polícia Especializada (DPE). É evidente que o caso encerra uma disputa política e jurídica de significados do espaço da cidade e um embate entre os direitos privados e coletivos. Mas daí a ser tratado como formação de quadrilha, ter desfechos tão surpreendentes por sua rapidez legal, numa tentativa de criminalização do pensamento divergente, como se fosse crime construir alternativas contrárias ao capital e à mesmice ideológica que vigora atualmente na sociedade, é algo inaceitável. Por outro lado, o tratamento dispensado pela mídia também é revelador: quando não os trata displicentemente, compactua com a iniciativa ostensiva de criminalizá-los, sem sequer buscar ouvir (e publicar) o outro lado da questão.
O tratamento dispensado a esse grupo de jovens, que ainda teima em acreditar e lutar por uma sociedade mais justa e menos submissa à tirania do capital privado sobre o direito coletivo é exemplar e deixa-nos na mente a pergunta: a quem servem, afinal, as instituições que reputamos como democráticas em nossa sociedade?
*Doutoranda do Centro de Pesquisa e Pós-Graduação sobre as Américas – CEPPAC – UnB, que realiza seus estudos de doutoramento sobre os ‘novíssimos movimentos sociais’.