Segundo dados do Instituto de Pesquisa e Cultura Luiz Flávio Gomes, o Brasil é o país com maior crescimento da população carcerária do mundo: 450% de aumento, considerando-se os últimos 20 anos (1990-2010). No mesmo período, países como os Estados Unidos, cresceram 77%, China, 31% e Rússia, 17%. A população carcerária brasileira (de 1990 a 2010) mais que quintuplicou, enquanto o crescimento nos países citados nem sequer dobrou.
Segundo dados da Carta Capital, o Brasil possui a quarta maior população prisional do mundo, com 607 mil presos. No ano de 2002 houve uma aceleração do processo de aprisionamento, aumentando 60% desde então. Para tentar amenizar a superlotação dos presídios, o governo federal investiu 1,1 bilhão de reais para a construção de novas celas. Isso está longe de ser a solução para o problema que envolve não apenas as condições de operar do sistema carcerário brasileiro, mas um conjunto de desigualdades sociais que se agravam a cada década.
Uma alternativa aliada ao sistema judicial vêm crescendo e sinalizando outros modos de resolver questões judiciais. Trata-se da Justiça Restaurativa, projeto embrionário dos anos 70 que somente agora ganha fôlego no contexto nacional. A Justiça Restaurativa se baseia num paradigma não punitivo, que busca a reparação do dano e quando possível, a reconstrução das relações rompidas. Ela se insere na perspectiva que defende mudanças mais profundas e concretas diante das ineficiências e deslegitimidade do sistema penal. O modelo tem origem nas práticas das comunidades indígenas do Canadá e da Nova Zelândia, primeiros países a adotarem o sistema.
[dropshadowbox align=”center” effect=”lifted-both” width=”450px” height=”” background_color=”#ffffff” border_width=”1″ border_color=”#dddddd” ]A justiça restaurativa busca re-significar o sentido do conflito, algo que a Justiça Penal não possibilita.[/dropshadowbox]
O Rio Grande do Sul é um dos estados onde a sistemática mais tem obtidos bons resultados, e as equipes gaúchas foram para Brasília orientar professores neste assunto. Em Santa Maria, o CEJUSC possui um projeto de justiça para o século 21, que opera dentro do Fórum, reunindo profissionais facilitadores que atuam nos núcleos de conflitos familiares. São formas diferenciadas de tratamento das situações de conflito.
Segundo a psicóloga Iara Ferrão, facilitadora de Círculos da Justiça Restaurativa no Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (CEJUSC), no Fórum de Santa Maria, principalmente em situações de violência, a justiça restaurativa consegue ser efetiva e, na maioria das vezes, é uma forma autocompositiva na qual não há um terceiro que impõe algo. A justiça restaurativa busca re-significar o sentido do conflito, ferramentas que a justiça penal não possibilita. A pessoa (vítima) se empodera dessa forma para solucionar em conjunto com o ofensor, mediados pelos facilitadores. Possibilitar que as pessoas busquem por si mesmas as opções de resolução, e não com alguém impondo algo ou prendendo-a. “Falamos de um espaço de laços e de afetos. Não de um advogado dizer o que o ofensor deve ou não fazer. A justiça restaurativa é aliada do sistema judiciário. Ela pode acompanhar diferentes processos, em diferentes instâncias e níveis”, afirma a psicóloga.
O processo de restauração
A prática restaurativa trabalha com os envolvidos no caso e com a comunidade, buscando prevenir agressões e reinserir quem cometeu a agressão novamente na sociedade. O processo é feito em círculos e encontros regulares, e partem sempre de um pré-círculo que abre uma perspectiva ampliada para a sociedade onde o conflito está inserido. Após o processo há o pós-círculo, que encerra os círculos restaurativos e, só então, se decide homologar ou não o processo judiciário.
Mesmo após o encerramento dos processos, as famílias não ficam sem acompanhamento. Os facilitadores fazem acordos com os envolvidos e continuam renovando essas atribuições de acordo com a demanda familiar. Os profissionais também se envolvem, facilitando os círculos, se influenciam pelos casos e se transformam, como todos os envolvidos. A psicóloga aponta que, talvez, a Justiça Restaurativa funcione tão bem “porque as pessoas não conversam mais, não desabafam nem falam sobre suas dores, e isso é necessário. É com base nessa perspectiva que trabalhamos na Vara da Paz Doméstica”, diz.
A metodologia na Vara da Paz Doméstica
Em Santa Maria, o programa de justiça restaurativa na Vara da Paz Doméstica é coordenado pelo juiz Rafael Pagnom. A psicóloga e o juiz analisam durante a audiência quando um caso pode ser restaurado mediante práticas autocompositivas. Desde que a pessoa aceite participar da justiça restaurativa, inicia o processo de restauração propriamente dito. Os facilitadores explicam como funciona, como serão realizados os círculos (rodas de conversa), em que a palavra e a linguagem usada são fios condutores de sentido e todas as pessoas ficam em condições de igualdade mediante um diálogo horizontal. O juiz ou o advogado dos envolvidos participam dos círculos como facilitadores, como membro da comunidade, tais quais outros profissionais interdisciplinares, todos especializados em justiça restaurativa.
“Há círculos de conflito com a vítima e o ofensor. Há círculos familiares entre a mãe e filha, por exemplo, e círculos da pessoa prejudicada com os facilitadores ou do ofensor com os facilitadores. Também há um pré-círculo, encontros individuais, quando se faz o convite e a vítima é ouvida. Nesse momento, é feita uma análise para verificar se a pessoa está preparada para os círculos conjuntos ou não. Ao vermos que não há risco para ninguém, que a pessoa tem condições de conversar e dialogar, aí são feitas as conversas horizontais. Não reunimos a vítima e o ofensor quando o fato ou abuso foi recente. É uma sensibilidade que todos os facilitadores precisam ter”, explica.
O prazo para o início dos círculos de conversa, quando os envolvidos no conflito decidem optar pela Restauração, é de aproximadamente 15 dias.
“Procuramos re-significar o ato da violência, fazendo um movimento contrário para tentar dar sentido ao acontecido, para que os envolvidos entendam os vieses da situação. As pessoas se surpreendem positivamente com o projeto. Elas vêem que é um processo de diálogo e resgate dos traumas, e não como acontece no processo penal”, declara Iara.
A efetivação do processo restaurativo é variável. Há casos que se resolvem com alguns círculos, mas em situações de violência doméstica, eles partem do ponto de vista da singularidade. “Há casais que, no primeiro encontro, começam a conversar entre si e tentam resolver”, explica a psicóloga, enquanto outras famílias precisam de mais investimento. A psicóloga relata o caso de mulheres cuja motivação inicial era a violência psicológica e moral. Após o círculo restaurativo inicial, o ofensor pediu para que os facilitadores incluíssem e trabalhassem com seus filhos no processo, ao perceber que seus atos atingiram todos os familiares. “É um processo de ouvir a dor do outro, escutar o que o outro tem a dizer sobre seu interior, sobre aquele trauma, e fazê-lo em um ambiente seguro, onde os profissionais estão habilitados a conduzir esse diálogo”, afirma Iara.
Para a segurança da vítima, medidas protetivas são pedidas e homologadas durante o processo restaurativo. O processo (judicial) pode continuar correndo ou parar durante esse período.
Por Amanda Souza e Bibiana Campos