No último semestre de 2016, 1961 ocorrências de violência doméstica foram denunciadas na Delegacia de Polícia para Mulher de Santa Maria. Delas, 950 viraram inquéritos policiais remetidos ao judiciário. Já as medidas de proteção solicitadas à vítima foram 568. A média são vinte ocorrências por dia. Os números são preocupantes, porque indicam também que há um percentual alto de agressões não denunciadas.
A delegada Débora Dias explica que a patrulha Maria da Penha da Brigada Militar faz ronda semanal, as denúncias são analisadas e eles vão até a casa da vítima verificar a situação, principalmente nos casos já com medida protetiva. Feito o Boletim de Ocorrência, são dados os encaminhamentos necessários, testemunhas são ouvidas, instauração do inquérito e medidas protetivas. “Temos 48 horas para encaminhar o inquérito, tudo depende da autorização da mulher, o judiciário tem 48 horas para deferir ou não as medidas”, explica Débora. “É sempre dificultoso o inquérito de violência doméstica, pois as testemunhas não dão depoimento, temos que insistir para trazer as pessoas, e se elas não quiserem, principalmente da família, elas não falam mesmo. E quando não existem marcas físicas, é difícil termos provas”, salienta a delegada. E isso causa desistências.
[dropshadowbox align=”center” effect=”lifted-both” width=”500px” height=”” background_color=”#ffffff” border_width=”1″ border_color=”#dddddd” ]A Lei Maria da Penha surgiu após o Estado Brasileiro ser denunciado por negligência e omissão em relação à violência doméstica pela Comissão de Direitos Humanos, em 1998. A história de Maria da Penha Maia Fernandes que lançou um livro contando o que sofreu nas mãos de seu marido, Marco Antônio Heredia Viveros, chegou até a Comissão de Interamericana de Direitos Humanos. Maria da Penha ficou paraplégica depois de levar um tiro do marido que, ainda, tentou eletrocutá-la na banheira. Em 2006, o Congresso Nacional aprovou a Lei Maria da Penha, considerada pela Organização das Nações Unidas, a terceira melhor lei de prevenção contra agressão doméstica. A lei determina que se estabeleça uma política pública que vise a coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, por meio de um conjunto articulado de ações da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e de ações não-governamentais, tendo por diretriz maior a integração operacional do Poder Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública com as áreas de segurança pública, assistência social, saúde, educação, trabalho e habitação[/dropshadowbox]
Há ocorrências em que a polícia sabe que a vítima corre risco de vida e, mesmo assim, ela desiste de seguir com o processo. Hoje, segundo Débora, aumentou o número de denúncias de ameaças e diminuiu o número de lesões corporais. No entanto, ainda há casos graves que, sempre de forma reiterada, as vítimas acabam indo mais de uma vez à delegacia com denúncias violentas. “Quando ocorre violência física, a vítima não pode mais retirar a queixa e quando há provas contra o agressor, o processo segue mesmo que ela queira desistir”, afirma a delegada. Prisões preventivas são dadas quando a vítima corre risco. Então, é emitido o pedido, e o agressor fica preso até decisão do juiz.
“É muito difícil alguém nessa situação vir denunciar, pelo fato de ser alguém com quem se vive, dorme junto. E por ser tão complicado, elas acabam voltando para o marido e não se resolve nada”, afirma Débora. Além das agressões físicas, como socos, chutes, tapas, a delegada atenta para comportamentos que também são violência, como desmerecimento moral. A assistência jurídica trabalha junto à vítima quando são casos de separação, dissolução da união estável.
Rede de apoio
Na delegacia, ao realizar o Boletim de Ocorrência, a vítima recebe apoio psicológico de uma equipe de estudantes de psicologia da Faculdade Integrada de Santa Maria (FISMA), que atua em parceria com a Delegacia da Mulher desde 2014. O projeto visa o acolhimento das mulheres que são vítimas de violência doméstica.
“Há então esse encaminhamento para nossa equipe. A partir daí nós trabalhamos com o empoderamento das vítimas, geralmente, durante o Boletim”, explica a coordenadora do projeto, Patrícia Rosso. “Temos que ouvir as demandas da vítima, pois ela sofreu aquela agressão e precisa falar, desabafar sobre”, diz a psicóloga. Nada é forçado sobre a vítima. Os estagiários conversam sobre as melhores opções, mas não é imposto. Segundo Patrícia, não adianta dizer ‘você precisa se separar’. “O trabalho da psicóloga é encaminhar, dizendo das possibilidades para sair da situação, com condições de contar com auxílios sociais e com a polícia. Tudo depende do desejo, pois não podemos obrigá-la. É um trabalho de conscientização da vítima, para que ela veja que pode sair do relacionamento”, explica a coordenadora.
Quando o casal possui filhos, a vítima e as crianças vão para o acompanhamento psicológico. Sempre vai haver um dano emocional, alerta a psicóloga. “É algo individual, claro, e pessoal do indivíduo que cresceu sob essa situação, mas há possibilidades de se reproduzir esse comportamento posterior, como algo internalizado”.
Violência psicológica
Xingamentos, desqualificações. “Ah, porque tu não consegues nem cuidar dos filhos”, “quando eu saio de casa não sei o que tu fazes”, frases que a vítima ouve do agressor, são abusos domésticos, classifica Patrícia Rosso. A mulher não trabalha porque o marido não quer, e então ela depende financeiramente dele para qualquer coisa, dado algum tempo, ele começa a desqualificá-la moralmente. “Ela é muito sutil, abstrata, e causa um terror psicológico muito grande”, explica a psicóloga.
Inclusive, manter a mulher em uma dependência física e financeira também se classifica como violência psicológica, segundo Patrícia. Por exemplo, quando o agressor alimenta a ideia de que a mulher não tem condição de sair de perto dele, de se sustentar sem ele. E ele vai mantendo essa fantasia dentro da vítima.
A dependência emocional
A dependência emocional é muito grande em casos de violência e é uma das mais fortes sob a vítima, afirma Patrícia. Se a vítima tem filhos com o marido isso também pesa na hora da denúncia. Segundo a psicóloga, o vínculo emocional de afeto, das expectativas que se gerou sobre o relacionamento, causa grande dependência e pode ser um dos motivos para a vítima não se separar. É preciso analisar cada caso, pode-se estar falando de uma pessoa que vem de um histórico de violência familiar, que cresceu vendo esses abusos, vendo a mãe sendo agredida pelo pai, ressalta a coordenadora. Então ela passa a ‘normalizar’ isso inconscientemente. É o que a psicologia chama de transgeracionalidade.
“É uma dependência extrema do agressor que faz ela ter medo de voltar, ou não pode voltar, pois precisa estar em casa cuidando dos filhos, porque ele não gosta que ela saia. Algumas vítimas chegavam e diziam ‘hoje consegui fugir algumas horas e vir’”.
A violência não é tida como algo normal para a vítima, porém é como se ela tivesse internalizado que o homem manda e a mulher obedece e ele usa a força para isso. Para Patrícia, é algo cultural.