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Violência contra a mulher: o relato de Julia

Maria da penha (Série de reportagens)-01Violência psicológica é algo que não se evidencia tão claramente quanto um tapa ou soco dado pelo parceiro. Como a cultura que naturaliza esses e outros abusos sofridos por mulheres e, mesmo crianças, algumas vítimas não percebem quando estão em relacionamentos abusivos. A ACS traz uma série de testemunhos de mulheres, de diferentes idades e experiências, sobre as violências sofridas. Nos relatos feitos à repórter-aprendiz Amanda Souza, misturam-se dor, lucidez e alívio. Os nomes foram trocados por decisão da equipe de edição da ACS.

Quando lembrar dói

desfoco
.

A acadêmica Julia Trindade  sofreu  violência doméstica dos 15 aos 17 anos. Só hoje consegue compreender a natureza do que vivenciou.
“Comecei a namorar esse menino na oitava série, com 14 anos. Estávamos juntos todos os dias. Com 15 anos, depois de trocar de colégio, comecei a passar todos os dias na casa dele, minhas roupas estavam lá, meu material, minhas coisas, tudo. Eu via minha mãe apenas uns dois fins de semana por mês”.

Julia morou com o namorado durante dois anos. O primeiro tipo de violência sofrida foi a psicológica. Ela conta que o rapaz  a traía abertamente, não escondia ou, sequer, sentia vergonha do que fazia.

“Às vezes eu chegava em casa e ele dizia que tinha alguém com ele. Eu saía para visitar meus avós no domingo e, uma vez, quando voltei, tinha uma menina lá”.

O namorado sempre fazia questão de demonstrar que se relacionava com outras pessoas. E o principal problema surgiu quando Julia tentou desabafar com a sogra.  A mãe do rapaz a fez acreditar ser tudo normal. Ela também enfrentava a violência doméstica, pois o pai do rapaz era extremamente violento.

“Foi a forma que ela aprendeu a se relacionar. A culpa não é dela, mas foi algo naturalizado entre a família, a violência do pai e a mulher aceitando sempre”, analisa, hoje, a jovem.

Eu ouvia muitos xingamentos como ‘vagabunda’ e, era jogado na minha cara que eu não me arrumava como ‘’uma garota’’… no como eu andava sempre desarrumada”, conta. E não era o bastante. Quando os dois saíam juntos à noite e acabavam brigando, Julia era deixada para fora de casa e tinha que dormir na rua.
Eu não podia conversar com ninguém. Fiquei um ano e meio sem falar com meus amigos. Tomava tapa na cara, chute, empurrões contra móveis, paredes e, algumas vezes, chegaram a acontecer agressões de formas mais sérias, me deixando marcas e machucando muito”, narra.

O namorado também quebrou o celular dela várias vezes durante as discussões e, não raro, jogava os pratos na parede quando ela se recusava a comer alguma coisa. A violência física começou no início do Ensino Médio.

“Uma vez eu estava na minha casa com ele e começamos a brigar dentro do quarto. Meu avô ouviu, tentou abrir a porta, mas meu namorado tinha nos trancado lá dentro e me ameaçava o tempo todo. Eu voltava do colégio e ele estava dormindo. Eu cozinhava, lavava a louça para ele. Perdi a essência do que eu era, não era mais ninguém, minha alma não estava mais. Eu era só um corpo presente… a namorada do fulano”, relembra com angústia.  “A violência psicológica foi a pior. Ele dizia o tempo todo que ia me abandonar e que eu nunca iria encontrar alguém que me amasse”.

Julia passou dois anos com o rapaz que a proibia de sair, enquanto ele saía todo o final de semana. E  quando Julia saía, era humilhada em público. “Ele me puxava pelo cabelo, arrastada, por causa de ciúmes. Além disso, a agressão psicológica era sutil e regular … o pior era a naturalização disso dentro do ambiente familiar em que eu me inseria. Eu era a ‘louca’ ‘’, afirma.

Quando finalmente ela conseguiu sair do relacionamento destrutivo, estava muito machucada, com marcas pelo corpo. Uma amiga – aquela amiga que está sempre ao lado – tomou providências. Julia conta que teve muitos problemas com o término do relacionamento. Começou a tomar muitos remédios, desenvolveu crise de pânico, ansiedade. A relação com a própria mãe estava muito frágil, porque ela não aceitava ver a filha naquele estado.
“Essa minha amiga, então, me disse: ‘-nós vamos lá buscar tuas coisas, e tu vai terminar. Se tu voltar para ele, eu nunca mais falo contigo’. Nesse dia eu fui conversar com ele. Começamos a discutir. Mais uma vez ele me empurrou contra um guarda-roupa. As portas quebraram e eu entrei praticamente para dentro do cômodo com a força do empurrão. Então, peguei minhas coisas e fui embora. Depois disso eu conseguir retomar, dificilmente, minha vida. Eu não tinha mais vida, sofria violência. E o processo de voltar a minha vida, com meus amigos foi muito difícil. Eu pensei: para onde eu vou? E agora? Minha casa não era mais minha casa. Minha vida foi tomada de mim”.

Julia nunca denunciou as agressões por medo de não acreditarem nela. “Eu estava muito dentro de mim. Tão dentro que  nem eu  me encontrava. Tem momentos dos quais eu não me recordo. Minha memória, às vezes, tem falhas, problemas para me lembrar daquilo, porque é algo que me traz muita dor. E eu acho que recalquei isso, inconscientemente”. 

Por Amanda Souza

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Quando lembrar dói

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A acadêmica Julia Trindade  sofreu  violência doméstica dos 15 aos 17 anos. Só hoje consegue compreender a natureza do que vivenciou.
“Comecei a namorar esse menino na oitava série, com 14 anos. Estávamos juntos todos os dias. Com 15 anos, depois de trocar de colégio, comecei a passar todos os dias na casa dele, minhas roupas estavam lá, meu material, minhas coisas, tudo. Eu via minha mãe apenas uns dois fins de semana por mês”.

Julia morou com o namorado durante dois anos. O primeiro tipo de violência sofrida foi a psicológica. Ela conta que o rapaz  a traía abertamente, não escondia ou, sequer, sentia vergonha do que fazia.

“Às vezes eu chegava em casa e ele dizia que tinha alguém com ele. Eu saía para visitar meus avós no domingo e, uma vez, quando voltei, tinha uma menina lá”.

O namorado sempre fazia questão de demonstrar que se relacionava com outras pessoas. E o principal problema surgiu quando Julia tentou desabafar com a sogra.  A mãe do rapaz a fez acreditar ser tudo normal. Ela também enfrentava a violência doméstica, pois o pai do rapaz era extremamente violento.

“Foi a forma que ela aprendeu a se relacionar. A culpa não é dela, mas foi algo naturalizado entre a família, a violência do pai e a mulher aceitando sempre”, analisa, hoje, a jovem.

Eu ouvia muitos xingamentos como ‘vagabunda’ e, era jogado na minha cara que eu não me arrumava como ‘’uma garota’’… no como eu andava sempre desarrumada”, conta. E não era o bastante. Quando os dois saíam juntos à noite e acabavam brigando, Julia era deixada para fora de casa e tinha que dormir na rua.
Eu não podia conversar com ninguém. Fiquei um ano e meio sem falar com meus amigos. Tomava tapa na cara, chute, empurrões contra móveis, paredes e, algumas vezes, chegaram a acontecer agressões de formas mais sérias, me deixando marcas e machucando muito”, narra.

O namorado também quebrou o celular dela várias vezes durante as discussões e, não raro, jogava os pratos na parede quando ela se recusava a comer alguma coisa. A violência física começou no início do Ensino Médio.

“Uma vez eu estava na minha casa com ele e começamos a brigar dentro do quarto. Meu avô ouviu, tentou abrir a porta, mas meu namorado tinha nos trancado lá dentro e me ameaçava o tempo todo. Eu voltava do colégio e ele estava dormindo. Eu cozinhava, lavava a louça para ele. Perdi a essência do que eu era, não era mais ninguém, minha alma não estava mais. Eu era só um corpo presente… a namorada do fulano”, relembra com angústia.  “A violência psicológica foi a pior. Ele dizia o tempo todo que ia me abandonar e que eu nunca iria encontrar alguém que me amasse”.

Julia passou dois anos com o rapaz que a proibia de sair, enquanto ele saía todo o final de semana. E  quando Julia saía, era humilhada em público. “Ele me puxava pelo cabelo, arrastada, por causa de ciúmes. Além disso, a agressão psicológica era sutil e regular … o pior era a naturalização disso dentro do ambiente familiar em que eu me inseria. Eu era a ‘louca’ ‘’, afirma.

Quando finalmente ela conseguiu sair do relacionamento destrutivo, estava muito machucada, com marcas pelo corpo. Uma amiga – aquela amiga que está sempre ao lado – tomou providências. Julia conta que teve muitos problemas com o término do relacionamento. Começou a tomar muitos remédios, desenvolveu crise de pânico, ansiedade. A relação com a própria mãe estava muito frágil, porque ela não aceitava ver a filha naquele estado.
“Essa minha amiga, então, me disse: ‘-nós vamos lá buscar tuas coisas, e tu vai terminar. Se tu voltar para ele, eu nunca mais falo contigo’. Nesse dia eu fui conversar com ele. Começamos a discutir. Mais uma vez ele me empurrou contra um guarda-roupa. As portas quebraram e eu entrei praticamente para dentro do cômodo com a força do empurrão. Então, peguei minhas coisas e fui embora. Depois disso eu conseguir retomar, dificilmente, minha vida. Eu não tinha mais vida, sofria violência. E o processo de voltar a minha vida, com meus amigos foi muito difícil. Eu pensei: para onde eu vou? E agora? Minha casa não era mais minha casa. Minha vida foi tomada de mim”.

Julia nunca denunciou as agressões por medo de não acreditarem nela. “Eu estava muito dentro de mim. Tão dentro que  nem eu  me encontrava. Tem momentos dos quais eu não me recordo. Minha memória, às vezes, tem falhas, problemas para me lembrar daquilo, porque é algo que me traz muita dor. E eu acho que recalquei isso, inconscientemente”. 

Por Amanda Souza