Leguizamo me fez parar para rir, para discordar e para me angustiar ainda mais. Até ontem, ele era, para mim, um ator secundário da indústria de Hollywood, um bom ator coadjuvante. Até ontem. Seu trabalho em criar o teatro/filme/documentário ‘História da América Latina para idiotas’ chamou minha atenção. E começo com algumas ressalvas: ele comete muitos equívocos, cai em estereótipos para criticar outros, todavia há um argumento de fundo que vale a pena pensar. Nessa obra, ele roteiriza e apresenta o momento em que desnuda os sentidos de ser latino-americano nos EUA e esse é um momento crítico. Na peça, Leguizamo assume os papéis de professor, pai, terapeuta para falar sobre os elementos cotidianos e simbólicos que são acionados para compor o ‘ser latino’ como um estigma a partir do bulling que seu filho sofre na escola. Assim, o bulling aparece como um meio de atualizar a linguagem de pretensa superioridade da qual o do racismo é composto.
Gostaria de parar um pouco nessa expressão da ‘pretensa superioridade’ para examiná-la melhor. Essa parada demanda um pedido de ajuda para a psicologia, e de desculpas ao mesmo tempo, pois farei um uso um tanto frouxo dessa área do saber. A psicologia, que ao longo do século XX nos instruir na linguagem e no tratamento que damos a nós mesmos como espaço de saber. Menciono o termo frouxo para dizer que sou apenas uma entusiasta, uma apaixonada pela área e, portanto, não a uso com os critérios dos profissionais. Isso tudo para dizer que é necessário apontar que essa ‘pretensa superioridade’ é construída por esforços contínuos e repetitivos de inferiorizar outras pessoas, ações baseadas em sentimentos do espectro do ciúme ou da inveja. Ou seja, há necessidade de rebaixar o outro para se sentir melhor e esse pode ser um esforço individual contra alguém ou ações coletivas que se somam. É difícil escrever sobre isso. É terrível ser alvo disso.
Longe de ser unicamente uma expressão individual, historicamente a ‘pretensa superioridade’ se constituiu numa empresa: a empresa colonial, cujo alimento foi o racismo. Como alvos preferenciais, a empresa colonial atuou nos continentes Americano e Africano, apesar de ter atingido todo o mundo, sempre que um coletivo tentou inferiorizar o outro para constituir um domínio. E o racismo ou a ‘pretensa superioridade’ é uma herança cruel e sorrateira.
E isso parece não ter fim, porque se atualiza em formas mais sofisticadas de truculência. Leguizamo produz um roteiro de teatro/filme/documentário para contar como que ele descobriu esse processo atualizado na política de deportação e rejeição de imigrantes nos EUA atual, bem como, num conflito que seu filho enfrentava na escola. O menino, em brincadeiras bandido e mocinho, foi apontado pelos colegas como alguém que só poderia assumir o papel de bandido devido a sua descendência étnica. E isso completado pela percepção de que não pertencia àquele território e que não tinha direito a ser reconhecido, como os latinos em geral, como um cidadão legitimo daquele local. O objetivo da expressão do preconceito é quebrar o outro, para então poder submetê-lo.
A forma da apresentação do teatro/filme/documentário é a comédia e, apesar de provocar risos na plateia, constrange, vai se tornando mais e mais difícil de ouvi-lo. O ator traz ao palco livros didáticos usados atualmente nas escolas, e o retrato que emerge é de um sistema educacional que não valoriza as suas gentes, à medida que silencia sobre uns e mantém protagonistas outros. Leguizamo se coloca numa cruzada em busca de um herói latino e sente suas tentativas frustradas. É angustiante ver dramatizado o quão árdua é a tarefa de falar a história negligenciada pelos livros didáticos. É aterrorizante ver a associação dessa negligência com as políticas de um Estado democrático contemporâneo.
O gosto amargo ao final é pelo processo violento que se atualiza e se camufla no não reconhecimento do protagonismo do outro na construção da nação que se consubstancia no uso do termo ‘latino-americano’ como um deboche, um xingamento, uma pecha, um traço cultural ao qual os sujeitos são reduzidos e pelo qual são discriminados. O gosto amargo é o de perceber que a sociedade brasileira não está distante desse quadro, pois reafirma traços dessa colonialidade, da presença e o uso de pretensas superioridades para justificar privilégios.
Há muitas histórias a serem contadas, muitos silêncios a serem quebrados.
Paula Jardim Bolzan, historiadora e antropóloga, professora na UFN