No último Superbowl, jogo final da liga americana de futebol americano, a cantora Beyoncé aproveitou o evento de maior audiência da televisão americana para fazer um protesto contra o racismo. Junto com a apresentação, que virou polêmica para os americanos, ela lançou o clipe da música Formation, que defende o orgulho dos traços e cabelo afro e critica o preconceito, a violência policial e os assassinatos de negros.
A filha da cantora, Blue Ivy, aparece no videoclipe quando ela diz que ama “o cabelo afro de seu bebê”. No evento, Beyoncé e seu exército de mulheres se vestiram como integrantes do partido dos Panteras Negras, que surgiu em 1960 e lutou pela participação dos negros na política e contra a segregação racial e o racismo.
Mulheres negras lutam há muito tempo pela quebra do sistema machista e racista. Entre elas, estão Angela Davis, Nina Simone, cantora que abordava questões raciais desde 1976, a atriz Viola Davis que luta contra a desigualdade étnica, e a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie. Essas mulheres inspiram movimentos ao redor do mundo, como o feminista, e sua corrente – feminismo negro – que faz o recorte para as demandas de mulheres negras.
No Brasil, o feminismo negro iniciou no final da década de 1970, quando, segundo Jarid Arraes*, o movimento vinha suprir duas demandas: o sexismo dentro do próprio movimento negro, quando as mulheres negras enfrentavam dificuldades para manter sua autonomia e igualdade de gênero em relação aos homens negros, e em um momento em que as questões – ainda nascentes – do feminismo davam prioridade a temas relacionados às mulheres brancas. No que toca a população negra feminina no País, o autor aponta dados alarmantes relacionados a temas como mercado de trabalho e violência doméstica. Entre os casos mais críticos, cita a conquista do “emprego formal, uma boa colocação e ingressar no ensino superior [como] dificuldades típicas daquelas que possuem a pele negra”. Além disso, o autor aponta que 60% das vítimas de agressão por parte de companheiros e ex-companheiros no Brasil são mulheres negras. Historicamente os dados do IBGE evidenciaram em relação ao emprego formal e salários, uma hierarquia discriminatório – melhores salários obedeciam a escala de homens brancos, mulheres brancas, homens negros e mulheres negras. No censo de 2014, os dados do instituto já apontavam que quase 54% da população brasileira se considerava preta ou parda. Esse índice parece se refletir nas crescentes demandas da parte do feminismo negro no País. Em Santa Maria, além do Movimento negro, o coletivo JuNF marca a luta da mulher negra.
Juventude Negra Feminina de Santa Maria – o JuNF
Geanine Escobar, criou o grupo virtual JuNF (Juventude Negra Feminina de Santa Maria), em 2003. Primeiro surgiu a necessidade de se encontrar para falar e debater. Logo, os encontros começaram presencialmente, então, com saraus de poesia negra, por exemplo. “A poesia negra declamada é algo bem simbólico e marcante, temos autores como Oliveira Silveira, que, inclusive, propôs a mudança na fase racista do hino do Rio Grande do Sul – povo quem não tem virtude/acaba por ser escravo”, conta Alice Carvalho, estudante de psicologia. A frase não foi alterada.
“Na Junf, além de ser um espaço para falarmos sobre feminismo e empoderamento da mulher negra, fazemos amigos lá também. Conversamos sobre o nosso dia a dia, e quando alguma de nós não está muito bem nós nos juntamos, como irmãs mesmo, e não somente como militantes. Isso é uma característica única do coletivo, pois, em outros movimentos eu não encontrava muito, esse fortalecimento emocional, ainda mais entre nós, mulheres negras”, relata a estudante de psicologia. Sua amiga e parceira de luta, Aline Escobar, estudante de serviço social, da UFSM, fazia parte do coletivo Junf, mas se afastou do movimento recentemente. O Junf (Juventude Negra Feminina) é bem único dentro do país, segundo a militante, pois faz um recorte dentro do grupo feminino , e com mulheres negras, também abordando a questão homossexual e bissexual.
As diferenças entre as lutas
Para Alice, o feminismo nos moldes da mulher branca não contempla a mulher negra, pois parte de um lugar diferente. “Ele não atinge as demandas das negras, não as empodera. Elas avançaram na luta com o feminismo negro, mas as linhas são diferentes, por mais que elas se atravessem”, afirma.
Segundo ela, as feministas, em geral, lutam pelo aborto legal e seguro, mas o feminismo negro luta para que mulheres negras possam ter seus filhos vivos, porque muitas vezes eles são mortos por conflitos, pela Polícia Militar. Já que boa parte da população negra se encontra nas periferias – há um recorte, inclusive, nos locais onde mulheres brancas nascem e as negras nascem e crescem. “Quando chegamos num grupo de mulheres majoritariamente brancas, não conseguimos ficar ali muito tempo, pois não temos voz, nossas pautas não são abordadas”, acrescenta.
As mulheres (brancas) ainda tem a ideia de hierarquização de quem pode falar. “É jogada a carta da solidariedade, de que somos todas irmãs, mas isso não é posto em prática, por isso nos afastamos, porque somos diferentes, sofremos de formas diferentes”, critica Alice.
A estudante acredita que há conforto e reconhecimento entre elas para compartilhar a luta e experiências em um espaço constituído para debater somente feminismo negro. “Acho que podemos, de fato, participar de espaços mistos. Cabe às brancas que desconstruam seu racismo, nos escutem, pratiquem uma ação transformadora. É importante que quem luta contra a cultura racista, se manifeste também em espaços quando alguém fala algo racista, fale para aquela pessoa que é errado e desconstrua essa construção racista”, completa.
A militância no cabelo
Amanda Silveira, 22, faz parte do espetáculo Negressencia e estuda dança na UFSM. “O feminismo está aí para mostrar que somos mais do que uma aparência da mulher negra, podemos ser milhões de outras coisas além do estereótipo criado, principalmente dentro da dança”, nota Amanda. A estudante conta que parou de alisar o cabelo por outros motivos pessoais, mas percebeu, lendo sobre, que usar o cabelo crespo é um ato político. E ao reconhecer sua identidade, ela tomou coragem para outros passos.
“Eu não preciso agradar a não sei quem, por causa de um padrão que eu não sei quem criou”, destaca. Ao valorizar sua cor, seu cabelo, ela pode ajudar outras meninas que passam pelas mesmas coisas. “Eu notei coisas peculiares depois que parei de alisar, por exemplo, assédios na rua – por mais que seja horrível – eu parei de sofrer, mas não por consciência dos homens e sim por causa do racismo. Por causa do meu cabelo crespo, de negra, é como se um preconceito espantasse o outro. E são coisas que notamos, é complicado passar por essa transição, depois percebi que essa sou eu, me reconheço muita mais agora ao olhar no espelho. ”, completa Amanda.
As meninas também falam sobre a representatividade inexistente do cabelo afro e crespo, na mídia. Hoje é mais aceito pela sociedade ter cabelo crespo, desde que esteja com cachos controlados. Elas alisam o cabelo para se sentirem iguais e serem aceitas. Alice Carvalho ressalta que consegue transitar mais facilmente por espaços, por causa das tranças, do que mulheres que usam o cabelo black power. Ela parou de alisar o cabelo a partir do poema “Cabelos que Negros”, declamado pela Geanine Escobar, no dia em que conheceu a JuNF. “Hoje consigo me olhar no espelho e ficar feliz com o que vejo, as pessoas me elogiam mais quando estou de trança do que quando estou com ele natural”.
Já Aline nunca alisou os cabelos, e atribui isto ao fato de ter nascido numa família negra com uma estrutura identitária forte. “Usar o cabelo natural é uma forma de nos libertarmos de um sistema racista, usar roupas e acessórios afros também é um ato político”.
A estudante de psicologia da UFSM, Juliane Loreto, 20, conta que alisou os cabelos por um ano e depois começou a usá-lo naturalmente em 2014. “Isso aconteceu quando encontrei uma colega negra no meu curso, e conversamos sobre isso. Ela elogiava meu cabelo quando o usava crespo, e eu pensava que enfim alguém gostava dele assim, até que passei a usá-lo sempre”. Segundo a estudante, o corte do cabelo foi para deixá-lo mais volumoso e aussumir o discurso de empoderamento enquanto mulher negra em espaços de debate. “Tudo que é estético é um ato político. O modo como a gente se veste tem muito da gente”, concorda Karen Tolentino, 30, dançarina do Negressencia.
A solidão da mulher negra
As entrevistadas ressaltaram ainda que a solidão da mulher negra também é discutida entre as meninas do movimento,principalmente porque se sentem visibilizadas como objeto de forma mais intensa do que as outras mulheres – brancas – e, segundo elas, entre parceiros e parceiras essa discrepância vai aparecer em algum momento. “Percebo uma facilidade maior entre minhas amigas brancas para relacionamentos, e em como os homens brancos hesitam em entrar em relacionamentos sério com nós, negras”, nota Karen.
A objetificação e sexualização do corpo da mulher negra também são mais intensas, segundo Alice, e elas precisam construir uma identidade e saber o que é ser negra. A pauta de representatividade é recorrente, pois, quando há representação na mídia, a mulher negra é hiperssexualizada, estereotipada, ou aparece como serviçal. Alice acredita que há um estereótipo que a mídia finge representar, mas é de modo racista e excludente.
Além disso, ocorre racismo entre mulheres dentro do próprio movimento feminista. “Sofremos racismo em todos os espaços, em instituições escolares, em festas, na raiz da estrutura do sistema está esse ímpeto de nos afastar e nos tirar a humanidade. Visto que nossos ancestrais eram tratados como animais na escravidão”, afirma Aline.
O Laproa veiculou a crônica audiovisual produzida por alunas do primeiro semestre na disciplina de Oficina de Mídias do curso de Jornalismo da Unifra, sob orientação da professora Neli Mombelli.
*ARRAES, Jarid. Feminismo negro: sobre minorias dentro da minoria. Revista Fórum, 21.fev.2014 (http://migre.me/tW3lr)
Por ACS, Arcéli Ramos e Amanda Souza