“Tudo fechado, trancado, maciço, pesado, oprimente. Tudo feito para lembrar a cada hora, a cada minuto ao doente e ao médico, ao enfermeiro e ao raro visitante “Esta é a casa dos loucos”. Foi assim que, em 1964, Ugolotti descreveu um manicômio. Esta descrição mais tarde foi publicada no livro O Século dos Manicômios, de Isaias Pessotti. E, se voltarmos no tempo, veremos que os autores estavam certos.
O modelo imposto entre os anos de 1801, propôs que o tratamento de pacientes alienados fosse feito em uma instituição semelhante aos monastérios. É desta forma, que nasce a ideia de isolar e recolher essas pessoas a instituições asilares. No Rio Grande do Sul, já existia nos anos 50, um grande asilo para onde eram transferidos doentes levados às Santa Casas e às prisões ou que simplesmente eram mantidos restritos pelas próprias famílias. Este asilo é que dará origem ao Hospício São Pedro, inaugurado em 1884, em Porto Alegre.
Desde seu início, uma reclamação era constante nos relatórios dos diretores do hospício: a superlotação e o encaminhamento inadequado de pacientes. Até o século XX os doentes mentais eram levados para os centros psiquiátricos por autoridades policiais, que na maioria dos casos ao menos identificavam os doentes ou ofereciam acompanhamento de seus familiares. Surge aí os “inominados”. É só em 15 de agosto de 1924, através do Decreto 3.355, que a assistência aos alienados passa a ser regulamentada.
Mas isso não foi suficiente, os centros psiquiátricos em todo o Brasil passavam por problema sérios de estrutura. No livro o Holocausto Brasileiro, é contado que alguns manicômios lucravam vendendo os cadáveres para as faculdades mineiras. De acordo com dados fornecidos pela autora da obra, Daniela Arbex, eram pelo menos 16 corpos por dia. As causas dos óbitos eram inúmeras. Morriam de fome, de frio, de doenças ou até mesmo por conta dos eletrochoques.
E, não é preciso voltarmos em um passado distante para observar o descaso com os doentes internados nos manicômios. Entre 2006 e 2009, na cidade de Sorocaba, em São Paulo, morreram 233 pessoas, com idades de 17 a 43 anos. Nesse caso, os óbitos se deram por conta das baixas temperaturas no inverno. Mesmo assim, até fevereiro de 2015, o Brasil contabilizava 25.988 leitos em 167 hospitais psiquiátricos e sem prazo para que eles sejam fechados. Todavia, o Ministério da Saúde, reafirma que está reduzindo os investimentos nessas instituições e transferindo os pacientes para uma rede substitutiva.
Coincidência ou não, foi nos anos 90 que começou uma nova Reforma Psiquiátrica no mundo. Esta tinha como objetivo acabar com o modelo de institucionalização e criação de uma rede de atendimento antes da hospitalização dos pacientes. Isso faria com que os antigos manicômios fossem fechados. O problema é que não houve a criação de redes alternativas e os pacientes ficaram sem ter a quem recorrer.
Reforma Psiquiátrica no Brasil
Proteger os direitos de pessoas com algum transtorno mental e assegurar que nenhuma delas sofra com qualquer discriminação quanto à raça, cor, sexo, orientação sexual, religião, opção política, nacionalidade, idade, família, recursos econômicos ou por conta do grau de gravidade e tempo de evolução de seu transtorno. Este é apenas o início da lei promulgada em 06 de abril de 2001 e que é mais conhecida como Reforma Psiquiátrica, já foi adotada em quase todos os países europeus tendo como referência o modelo italiano.
Considerada um processo social complexo, prevê mudanças como tratamentos menos invasivos e a proibição de internações em instituições com características asilares ou que não tenham recursos suficientes para o atendimento de pacientes portadores de transtornos mentais. Ou seja, o tratamentos destas pessoas deve ser feito na rede pública por meio dos Caps (Centros de Atenção Psicossocial). Nesses locais os pacientes chegam pela manhã e são liberados ao longo do dia para retornarem à suas residências. Em casos mais graves pode haver uma internação, mas não poderá ultrapassar o limite máximo de sete dias.
Em declaração para a revista Carta Capital, em fevereiro de 2015, o governo federal afirmou em nota que “dentro do propósito de desinstitucionalizar e garantir a livre circulação das pessoas com transtornos mentais na sociedade”. O projeto referido é o De Volta para Casa, um auxílio-reabilitação no valor de R$ 412,00 para cada um dos 4.332 pacientes que receberam alta depois de um longo histórico de internações psiquiátricas.No entanto, durante as comemorações ao Dia da Luta Antimanicomial, realizado em 18 de maio de 2015, a conselheira do CRPRS (Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul), Mariana Allgayer disse que “durante muitos anos, a atenção em saúde mental esteve centrada no modelo manicomial, em que as pessoas perdem suas referências de vida, são excluídas do convívio familiar, do trabalho, do local onde moram. A Reforma Psiquiátrica possibilitou que os antigos manicômios começassem a ser substituídos por uma rede de serviços na comunidade. Apesar disso, a lógica manicomial permanece existindo de diferentes formas”.
Modelo manicomial nos dias de hoje
Apesar de ser uma evolução positiva para a área de saúde mental, a Reforma Psiquiátrica ainda é relativamente nova e por isso possui falhas quando posta em prática. Muitos manicômios tiveram fim, mas outros tantos estão disfarçados como “casas de repouso”. A Frente de Luta Antimanicomial de Sorocaba (Flamas), faz um alerta ao revelar que com “os antigos donos de hospitais assumindo o controle das residências terapêuticas e dos centros de atendimento, há um risco do pensamento manicomial seguir ativo no tratamento dos pacientes”.
Logo, a Reforma que defende que as pessoas com necessidades de atenção em saúde mental possam permanecer em território domiciliar desde que tenham consultas regulares nas UBS (Unidades Básicas de Saúde) ou nos CAPS, e quando em crise, a internação deve ser em leitos psiquiátricos em hospitais gerais, como o HUSM, está em risco. Pois, de acordo com a jornalista, escritora, militante na luta antimanicomial e integrante da AFAB (Associação de Familiares, Amigos e Bipolares de Santa Maria), Janine Appel, “muitas vezes as famílias ou os médicos acabam colocando essas pessoas nessas “casas de repouso”, que funcionam como um depósito permanente da “loucura””.
E isso além de ser uma forma irregular de garantir lucro financeiro, por parte da administração desses manicômios disfarçados, também é uma questão política. Afinal, o ex-coordenador de saúde mental do Ministério da Saúde, Valencius Wurch, e o da Secretaria de Saúde do Rio Grande do Sul, Luiz Carlos Coronel, já se manifestaram contra a Reforma Psiquiátrica. E, fora o pensamento em comum, outra ligação entre os dois é que Wurch era diretor da Casa de Saúde Dr Eiras, no Rio de Janeiro, fechada por violação dos direitos humanos e Coronel é ex diretor do São Pedro.
Enfim, atualmente o nome não é mais hospício, manicômio, sanatório e sim, casa de repouso. Que nada mais são do que a segregação da loucura, de incapazes que longe da sociedade são muito lucrativos e por isso também se tornam motivo para brigas políticas.
E em Santa Maria?
Para os que participam ativamente de debates em torno das políticas públicas na área de saúde mental do município, por vezes tem a sensação que a Reforma Psiquiátrica ainda não chegou aqui no Coração do Rio Grande do Sul. Na cidade a principal referência é a Unidade Paulo Guedes, que pertencem ao HUSM (Hospital Universitário de Santa Maria).
Segundo Janine, o que se tem no local não é um manicômio, mas ainda apresenta algumas lógicas manicomiais, como o uso de uniforme para todos, contenção de pacientes em crises agressivas e uso de eletrochoque ou eletroconvulsoterapia com anestesia em alguns casos. “Mas em maioria, as práticas são bem mais arejadas. Participamos de oficinas de teatro, dança, horta, esportes, passeios, pintura, dobradura”, explica a jornalista que está produzindo um livro sobre os 119 dias que passou internada na unidade. E, ela ainda reforça que “o serviço no HUSM é muito bom, humanizado, eu tenho a experiência e fui muito bem cuidada pelo pessoal, mas pode melhorar. O pessoal da residência multiprofissional é quem mais batalha para qualificar o atendimento, por outro lado, tem profissionais despreparados lá dentro”.
Mas e aqui em Santa Maria? O que falta para a implementação total da Reforma Psiquiátrica? Talvez essa resposta comece com um olhar mais atento sobre o que podemos chamar de cultura manicomial. Boa parte da população teme o fechamento dos manicômios porque acredita verdadeiramente que esse modelo de atenção – baseado na segregação da pessoa doente – seja o único realmente eficaz no “tratamento” da “loucura”. Por isso, toda ação em psico-educação é importante e necessária. Para Janine, “é preciso convencer a sociedade que a doença mental não inviabiliza as pessoas para o convívio comunitário ou em família. Além, de atestar, com uso de exemplos reais, que a terapêutica aplicada nos CAPS e em outros serviços modelados pela Reforma Psiquiátrica é eficaz a ponto de garantir que pessoas com transtornos mentais sejam (re)inseridas no convívio familiar e comunitário, com saúde, para desenvolver os mais diversos papéis sociais”.
Ela ainda salienta que é necessário combater a cultura enraizada há séculos no imaginário popular de que “lugar de louco é no manicômio”. E que as políticas públicas já existentes sejam efetivadas.
Hoje em dia, temos poucos CAPS para o tamanho da demanda de atendimento. Carecemos de residenciais terapêuticos. Não temos uma rede que articule os atendimento nas Unidades Básicas de Saúde com os CAPS. O Pronto Atendimento Psiquiátrico do HUSM (o único do tipo na região) está fechado há mais de um ano. Não temos estratégias de promoção de saúde mental em nível municipal.
Ou seja, se por um lado avançamos bastante na atenção em saúde mental desde os anos 1990, ainda temos um caminho longo a trilhar na implementação total da Reforma Psiquiátrica.
Esta reportagem é uma produção da acadêmica Ticiana Leal para a disciplina de Jornalismo Especializado III, durante o segundo semestre de 2016, do Curso de Jornalismo da Unifra.