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Silvia Niederauer

Silvia Niederauer

Era uma vez, a vida em seu início. Ainda sem graça, meio perdido entre animais, plantas, águas e surpresas, o ser humano foi criando o seu universo, distinto da perfeição, mas organizando-o a sua vontade e semelhança. De tanto andar, olhar, observar, o homem deu-se conta que sua interferência na terra poderia, e deveria, ser maior, mais influente e determinante para que tudo fluísse com mais graça.

Assim foi feito: surgiram as casas, as ruas, o comércio, as diversões, ainda rústicas, mas que alegravam a população que crescia a olhos vistos. E o mundo, como tal, foi ficando cotidiano demais, simples demais – a origem de tudo estava a cansar aqueles homens, já desejosos de novidades. A pasmaceira provocou uma onda de invenções que, então, passaram a agradar e a serem requisitadas em toda a parte – rádio, TV, vídeo games, aparelhos de CD, DVD, MP3, e toda a parafernália de mecanismos de última geração devolveram à população, agora mais numerosa ainda, a alegria de viver. E tempo foi bom e animado.

Mas, como havia acontecido antes, os homens cansaram dos novos brinquedos; já não havia mais o sentimento de alegria inicial; e a terra voltou a ficar sem sorrisos e encantamento.

Alguns inventores até tentaram criar outros brinquedos, mais sofisticados que os antigos, mais rápidos, mais engenhosos; entretanto, nada mais agradava, nada mais devolvia a alegria de viver… e o cinza ganhou espaço, mais do que merecia.

E a terra e seus habitantes calaram-se, fecharam-se por mais tempo que imaginavam. Até que uma noite, ouvem uma voz ainda tímida, vinda de um homem simples, que cantava histórias, muito diversas daquelas a que estavam acostumados a ouvir. Eram histórias de outros tempos, de outros povos, de outras paragens, mas que dizia de coisas tão conhecidas e de modo tão inovador, que o mundo passou a se metamorfosear aos olhos dos homens: tudo agora ganhavam uma luz mais límpida, uma grandiosidade inexplicável, uma doçura delicada, uma sacudida bem vinda, um desacomodar necessário. E os homens rodearam este homem para ouvi-lo melhor, para compreender suas palavras, para olharam a seu redor com outro olhar e, assim, entenderem-se mais e mais. E a noite fez-se dia, resplandecente, alegre, cheio de vida e energia. Surgiam as narrativas de ficção, inventadas, criadas ao sabor da imaginação e de um olhar calcado na realidade e com um sopro de interpretações diversas. E os homens gostaram. E descobriram que havia, na terra, gente que produzia este encantamento e que o disponibilizava em um formato novíssimo: o livro! As páginas guardavam as mais diversas histórias, rimadas ou não, de sabor doce ou nem tanto, de guerras, de amor, de conquistas, de perdas, de frustrações, de viagens, de povos outros, distintos uns dos outros, mas tudo com o sabor mais delicioso que jamais haviam provado.

E o mundo andou de mãos dadas com o mais antigo divertimento, mas novo nas mãos daquelas pessoas que, até então, só queriam saber de tecnologias. E ninguém cansou de ler, de ouvir, de comentar, de dividir suas descobertas a partir da leitura dessas histórias. E o azul e o amarelo voltaram a rodar, o vermelho e o verde não pararam de cantar, o branco ficou mais branco e as outras cores e músicas voltaram a brincar com mais liberdade. E a terra voltou a ser harmoniosa, clara, limpa e cheia de graça.

O milagre? Simples assim: a arte da literatura ganhou os corações dos que se deixaram ser tocados por aquela voz de pássaro e de mel e foram, finalmente, felizes para sempre.

Mas, um cético perguntou: – é só isso? Alguém chega, traz uma história e o mundo vive feliz para sempre? E o amigo respondeu: – não é simples; mas para que se possa conhecer o outro, dividir com ele as vozes tantas e de tantas histórias, e que se eleja o mundo como um lugar feito à nossa semelhança, necessário é que se reparta a leveza da escuta, o gesto da partilha, a trilha feita por outros, o rio que ainda não conhecemos, as vozes que ainda não ouvimos e tudo o mais que uma boa história é capaz de contar. Só assim, o homem será completo e poderá, então, ser o criador do mundo que sempre sonhou.

Sílvia Niederauer é doutora em Teoria da Literatura, professora no curso de Letras e Jornalismo da Unifra.