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Hamburgergate

Observatório da mídia CS-02Pouquíssimas coisas conseguem atrair mais interesse que uma história bem contada, daquelas que detêm a capacidade de aglomerar pessoas ao redor do narrador, de forma que permaneçam até o desfecho. O ser humano é um ser curioso, e o gatilho que aciona essa curiosidade pode variar. Mas as histórias, arrisco dizer, são uma unanimidade. Mistério, morte ou uma reviravolta envolvendo um personagem são os pontos altos de uma boa trama, e isso tudo é potencializado quando ela é real. A realidade tem nuances que ficção nenhuma consegue imprimir.

No Washington Post, em 1972, uma dupla de jornalistas iniciava uma investigação que revelaria o Caso Watergate e determinaria o processo de impeachment do presidente republicano Richard Nixon dois anos mais tarde. Bob Woodward e Carl Bernstein seriam vividos por Robert Redford e Dustin Hoffman no filme “Todos os Homens do Presidente” (1976), multipremiado e aclamado pela crítica, baseado no livro homônimo de ambos. Novamente, a realidade estava um passo à frente da ficção. O processo todo tornou aquele um momento célebre para o Jornalismo; não é sempre que a mídia trabalha de forma transparente e ética em meio a um processo de destituição de um presidente, se é que vocês me entendem. E agora, diante de um processo de impeachment à brasileira, eis que surge o Hamburgergate.

Para quem esteve em coma nas últimas semanas, os amigos Zé (Soares, dono do blog “Do Pão ao Caviar”), Bel (Pesce, empreendedora) e Léo (Young, vencedor da última temporada do reality show culinário Masterchef) resolveram apostar no crowdfunding como forma de financiamento do projeto do trio: a hamburgueria Zebeléo. O que deveria ser um sucesso de publicidade por utilizar como garoto propaganda Léo Young, um dos queridos do público e vencedor do Masterchef há menos de uma semana até aquele momento, acabou se transformando em um colossal tiro no pé, tendo viralizado em poucas horas. As críticas ao trio foram várias: desde ao fato de não terem demonstrado um projeto consistente durante o longo vídeo de apresentação, passando pelas informações desnecessárias nele contidas, pelas formas polpudas de financiamento com premiações esquisitas aos contribuintes descritas no site Kickante, até ao fato de que eles não precisariam utilizar o sistema crowfunding pela boa condição financeira de todos ali. A internet não haveria de perdoar tamanha patacoada. Mas o capítulo mais interessante ainda estava por vir.

Após ter feito um vídeo a respeito do fiasco da hamburgueria em seu canal, o youtuber Izzy Nobre recebeu uma enxurrada de comentários como resposta, entre críticas e incentivos a pesquisar mais sobre a figura da empresária, que, para algumas pessoas mais desconfiadas, soava como uma charlatã do empreendedorismo de palco. Referências sobre ela na internet não faltam: digitar “Bel Pesce” no Youtube, por exemplo, levará, antes mesmo do canal da jovem, às suas entrevistas em programas de rádio, em vlogs sob empreendedorismo e até mesmo no talk show The Noite, do SBT, apresentado por Danilo Gentili. Não é para menos: há algum tempo Bel vem se destacando no ramo sob a alcunha de A Menina do Vale. Palestras, coaching, livros, toda a reputação profissional dela se deve, em grande parte, ao currículo obtido no Vale do Silício, o maior polo tecnológico mundial situado no estado norte-americano da Califórnia. Lá, consta em seu currículo que foi co-fundadora de algumas empresas após ter se graduado no Massachussets Institute of Technology (MIT), onde teria angariado cinco diplomas, segundo ela mesma, entre majors e minors.

Durante a pesquisa, alguns detalhes chamaram a atenção de Izzy: o principal deles tinha a ver justamente com os diplomas. Morando há alguns anos no Canadá, o vlogueiro é familiarizado com o processo adotado na América do Norte para o ensino superior. Aqui está a explicação do mesmo em um de seus textos: “Nos EUA/Canadá, o processo de formação acadêmica permite que as disciplinas eletivas (ou seja, aquelas que não são diretamente fundamentais para o seu diploma) se agreguem de forma que você pode ser dito um mini-especialista num determinado assunto que foge da sua área principal, mas é também do seu interesse. Por exemplo: tenho um amigo que é formado em Biologia (ou seja, esse é o seu ‘major’; ele é biólogo, essa é a área de enfoque da sua carreira acadêmica e seu título), com um ‘minor’ em Psicologia. Ele não é um psicólogo e nem pode se meter a diagnosticar ninguém; ele tem apenas conhecimento superficial dos fundamentos da psicologia”. Por que Bel dizia então ser graduada em cinco áreas diferentes, sendo que não o era? E não era um simples engano cometido uma vez: fora dito em todas as suas entrevistas, constava em seu site pessoal. Constava inclusive no site da UNICAMP. Foi o alerta vermelho.

Izzy Nobre não é jornalista. Segundo o seu blog pessoal, sequer é formado. Descreve-se apenas como “nerd”, sendo games, tecnologia e cotidiano os temas recorrentes de seus vídeos no Youtube. Algumas vezes se aventura ao falar sobre Política e polêmicas na internet. Possui uma característica comum aos “nerds”: a curiosidade e a dúvida próprias do método racionalista científico. Através disso, percebeu o óbvio: não poderia confiar nas informações que Bel Pesce fornecia sobre ela mesma e que, até então, era a única fonte que atestava o seu currículo, por inacreditável que possa parecer. Foi quando descobriu o que já suspeitava: Bel não fundou a Lemon, – como também constava em seu currículo – empresa que foi vendida por milhões de dólares sem que ela recebesse qualquer fatia do bolo. E, a partir daqui, o castelo de cartas ruiu violentamente: ela também não trabalhou em diversos lugares que disse ter trabalhado. Foram tantas as farsas descobertas nessa investigação simples, que passou a ser mais fácil descrever o que Bel Pesce realmente fez.

O resultado de toda essa polêmica foi quase que instantâneo, como manda o figurino da internet, e bastante destrutivo para a jovem. Passado um mês desde o dossiê levantado por Izzy Nobre, a página pessoal de Bel Pesce no Facebook continua a receber uma avalanche de críticas nos comentários de cada nova postagem, inclusive de antigos admiradores da moça. Todas as tentativas de explicar os acontecimentos – sem um mea culpa explícito, diga-se de passagem – foram um fracasso, só pioraram a situação. Para ela, a moral da história parece um tanto quanto óbvia: é bem mais fácil trabalhar com a verdade. Para o Jornalismo, no entanto, é ambígua. É difícil fazer um panorama generalizado, mas parece que, como área social que é, de estabelecimento de conexões, volta e meia recorre à crença no que está posto. A quantidade de informações disponíveis no banco de dados da internet se choca com o imediatismo, com o prazo, com a impaciência. A investigação minuciosa e cuidadosa do jornalismo de excelência é praticada por uma minoria, até porque a condenação antecipada é também uma marca do quarto poder. Nessa terra de ninguém que é a sociedade super conectada, a busca pela informação deixa lacunas que serão, volta e meia, preenchidas por sujeitos fora do meio jornalístico. O que já se viu com os furos de reportagem poderá e deverá acontecer com o processo investigativo. O limite é a curiosidade humana.

Matheus Oliveira

Texto produzido para a disciplina de Legislação e Ética em Jornalismo