Vivência e resistência de pessoas trans em Santa Maria
Relatos de mulheres e homens trans a partir de suas narrativas.
Relatos de mulheres e homens trans a partir de suas narrativas.
O título desse texto poderia ser outro, direcionado apenas aos pais, mas sabemos que existem diferentes formações familiares. Por família, entende-se todo e qualquer grupo que conviva entre si sob um mesmo teto. Para além disso,
Observe estes dados: 2014: 329; 2015: 319; 2016: 343; 2017: 445; 2018: 420. Esses são os números, segundo o Grupo Gay da Bahia (GGB), de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais assassinados nos últimos cinco anos
Ocorreu neste domingo, 18, no Largo da Locomotiva a 4ª Parada LGBT Alternativa de Santa Maria. Organizado pelo Coletivo Voe, o encontro reuniu os membros da sigla LGBT+, além de simpatizantes do movimento. Trouxe como tema
O país mais transfóbico do mundo. Esse foi o título que o Brasil recebeu no ano passado, após 144 travestis e transexuais serem assassinados. Os dados assustadores de 2016 levaram o País ao primeiro lugar, num
A Agência CentralSul de Notícias faz parte do Laboratório de Jornalismo Impresso e Online do curso de Jornalismo da Universidade Franciscana (UFN) em Santa Maria/RS (Brasil).
Santa Maria, RS (ver mais >>)
Marquita segurando a bandeira trans, símbolo que representa a comunidade transgênero. Foto: Heloisa Helena.
“Eu digo que a gente foi uma geração muito resistente porque viemos de um estigma de preconceito muito grande em cima da nossa população, por causa de uma doença. Nós sobrevivemos a tudo aquilo e estamos aqui”
Era outono do ano de 1967 quando veio ao mundo um menino, julgado por seu sexo biológico. Aos 17 anos começou o processo de se reconhecer como uma pessoa trans, termo que era pouco utilizado naquela época, pois usavam a palavra travesti como definição. Assim surge Marquita Quevedo, no ano de 1985, em plena pandemia de HIV/AIDS no Brasil, em um ambiente cheio de preconceito contra a população LGBTQIA+ e desinformação sobre a doença.
Ela relata a discriminação que sofreu nos anos 1980 por conta da epidemia, era agredida, xingada e expulsa de bares. “Era muito real na nossa cidade, em pleno Calçadão tinha uns espaços que quando a gente passava ouvia gritos ‘olha a AIDS’, ‘vocês estão matando a população’.” Porém, esse não foi o primeiro preconceito em sua trajetória.
Somente há quatro anos o Ministério dos Direitos Humanos retirou a transexualidade da lista de doenças ou distúrbios mentais. Em agosto de 2018, a Organização Mundial da Saúde publicou a 11ª edição do CID (Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde), que deixou de incluir o chamado “transtorno de identidade sexual” ou “transtorno de identidade de gênero”. Desde 1952 a população trans era considerada portadora de distúrbios mentais, reforçando o estereótipo de que eram doentes.
Aos 15 anos, Cilene deu o grito de liberdade. Se reconheceu como mulher, feminina e delicada. Na infância foi apelidada de “sorriso”, o sorriso largo estava quase sempre presente em sua trajetória. Mas, aos 11 anos, seu sorriso desmanchou ao ser abusada na escola. Após ser descoberta, através de uma carta contendo uma declaração de amor para um colega de sala de aula em um colégio apenas de meninos, Cilene foi encaminhada ao psicólogo.
“Na sala dele eu tirava toda a minha roupa e ele tocava nas minhas partes íntimas. Na segunda sessão foi piorando, embora eu sentia dor, na época eu imaginava que fazia parte do tratamento. Na terceira sessão, eu parei de ir e acredito que ele iria concluir o ato.”
E nessa travessia perigosa que é a vida, Cilene começou sua caminhada em busca de ser quem realmente desejava. “Eu tenho muitos motivos para ser uma pessoa revoltada e agressiva, porque só a gente sabe o que carregamos nessa vivência toda”.
Cilene menciona uma das suas principais marcas de resistência:
É sobre o caminho difícil que Cilene fala. É sobre um caminho de perdas e abandonos. De pedras e espinhos. De preconceito e discriminação. De luta e resistência. Mesmo diante de todos os desafios, Cilene não se recolheu em si mesma. E procurando compreender o que havia nela que tanto incomodava os outros, foi construindo para si a história de sua vida.
Viver no país que mais mata travestis e transexuais é um ato de resistência. O Brasil lidera o ranking mundial de mortes por transfobia, de acordo com a ONG Transgender Europe (TGEU). Os dados são alarmantes. Segundo o dossiê anual da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), em 2021, 140 pessoas trans foram assassinadas no país, sem contabilizar os demais atos de violência física e moral. 140 vidas, 140 histórias interrompidas. A idade média das vítimas foi de 29 anos. “Nossa maior vingança será envelhecer. Qualquer travesti que passe dos 35 anos estará se vingando desse CIS-tema” – Keila Simpson Presidenta da Antra.
Cisgênero é o indivíduo que se identifica com o sexo biológico com o qual nasceu.
No começo do século 21 surgiram entidades nacionais como a Articulação Nacional de Travestis, Transexuais e Transgêneros (Antra), a Rede Trans e o Instituto Brasileiro de Transmasculinidades, com o propósito de falar sobre questões relacionadas a população tras e gerar visibilidade. Entretanto, descobrir-se neste cenário ainda possui dificuldades.
“Eu sou uma mulher trans, mas é nítido que a maioria nem me considera mulher”. Descobrir-se diferente. Reconhecer-se. Autoproclamar-se. Assumir-se enquanto mulher trans exigiu de Davina Kurkowski todo um processo de negociação, consigo mesma e com o mundo externo. “Pelo fato de eu ser transsexual, a maioria dos homens acham que eu sou alvo de sexo fácil. Já fui assediada várias vezes em Santa Maria, na rua, indo para o cursinho, quando estava trabalhando. Era algo que acontecia quase todos os dias.”
Davina relata como as pessoas reagem de forma preconceituosa ao vê-la na rua:
Sem contar com qualquer respaldo social, mulheres como Davina estão desprotegidas e se tornam extremamente vulneráveis a múltiplas formas de assédio e ataque, sendo radicalmente privadas de direitos. Neste momento, a jovem se depara com a bruta realidade de uma mulher trans na sociedade. O desconforto em utilizar o banheiro feminino do shopping, olhares que transmitem medo, nojo e ódio acompanham Davina no seu cotidiano.
“Escutei vários comentários, uma vez me chamaram de traveco. No começo da transição eu não me sentia confortável para usar vestido e saia em público mas, pela primeira vez, devido ao verão e ao calor, coloquei um vestido. Estava voltando do shopping com duas amigas, eu me sentia ótima e quando estávamos passando pelo calçadão, aquele homem que está sempre cantando música gospel e gritando com as pessoas começou a gritar olhando pra mim ‘porque vocês adoram o diabo’.”
Quando se fala em homens trans há pouco levantamento aprofundado no país sobre a população masculina, o reconhecimento das identidades de gênero desses sujeitos, a invisibilidade social e política enfrentada por eles, bem como as várias formas de violência que os atingem diariamente.
“Eu posso não ter passado nenhum confronto físico, nem moral, mas é bem humilhante e degradante não ter acesso a um direito básico. É de certa forma violento na vivência”. Cauã de Bairros tem apenas 21 anos, mas já possui uma grande bagagem de experiências e vivências. Aos 17 anos deu adeus ao gênero feminino, rótulo que foi imposto a ele ao nascer, mas que nunca o pertenceu. O direito básico a que o jovem se refere é ser reconhecido pelo nome social na documentação.
No ano de 2019 ele era calouro, no curso de licenciatura em Teatro na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e ainda não tinha modificado o nome na certidão de nascimento e RG. “Na época ainda não tinha uma política facilitada para o nome social. A maior burocracia era o nome, porque as pessoas olhavam o nome social e achavam que era enfeite. Pra mim isso foi o pior, questão do nome na carteira do Restaurante Universitário (RU), portal do aluno, matrícula e carteira de ônibus”.
O jovem conseguiu fazer a retificação do nome por conta de uma lei (Provimento n° 73 de 2018) instaurada no ano de 2018, que facilitou o processo ao retirar a obrigatoriedade do requerimento de laudos médicos para alteração. Atualmente, para mudar basta a autodeterminação da pessoa interessada em modificar o nome. “Pensa que desagradável ter que pedir para um médico olhar teu corpo e atestar aquilo, para você poder ter acesso ao nome básico. É só teu nome”. Felizmente Cauã não precisou passar pela consulta médica graças a alteração da lei.
Alguns direitos e o acesso a eles tem evoluído ao longo dos anos, mas o preconceito persiste intrínseco na sociedade como mencionado nos relatos de quem convive diariamente com essa realidade.
A realidade das pessoas trans em busca da sua independência financeira
“A falta de oportunidade e de inclusão me fez trabalhar na noite. Eu não vou dizer que todas estão na noite por necessidade, mas 95% sim […] Hoje o público trans tem muitas oportunidades, por conta de quem esteve na linha de frente batalhando pelo público LGBT.”
A noite muitas vezes não tem regra, não tem leis, não tem descanso. Mas não para Cilene, que optou por ter disciplina nos 15 anos que viveu a rotina do trabalho na prostituição. Conheceu todas as drogas na noite – ou quase todas. Mas se considera abençoada de não ter se viciado em nenhuma delas.
“Esses 15 anos para mim era um trabalho. Do qual, eu tinha horário para chegar na rua e horário para ir embora, e final de semana eu não trabalhava. O corpo precisa descansar e a alma também. Porque você sobrecarrega”
Ao falar sobre as marcas que a compõem, sobre as experiências que vivenciou, sobre a sua vida, a sua história, a sua luta, Cilene relatou as agressões, os assédios e a conquista pelo território. No mundo da prostituição, toda esquina é conquistada, assim como os clientes.
“Muitas vezes a gente apanha mas a gente revida para apanhar com dignidade. Tu não aceitou quieta, tu lutou também. Perdeu, infelizmente perdeu. Mas no mundo da noite, tu só conquista seu espaço assim, apanhando e voltando, apanhando e voltando, uma hora desistem e te permitem ficar”
De acordo com Cilene, o mundo da noite envolve muitos gritos e xingamentos. E o desejo de estar em cima de um salto alto, muitas vezes se torna um pesadelo. Há noites em que não é escolhida e noites em que o corpo implora por descanso. Quando jovem, sempre contribuiu em casa, apesar das tentações de um mundo perverso, seu objetivo sempre foi o mesmo.
“Eu nunca joguei meu dinheiro fora, sempre ajudei meus sobrinhos. Geralmente a mulher trans que trabalha na noite, elas estão vulneráveis ao álcool e a droga, uma coisa leva a outra.”
Depois de vivenciar muitos mundos, conhecer seus próprios abismos e reencontrar-se consigo mesma diversas vezes nesse caminho, uma oportunidade de emprego surgiu na Estação Rodoviária de Santa Maria contribuindo com a sua construção.
“Eu se pudesse aparecer de forma mais feminina, ótimo. Mas não é privilégio de muitas. Cilene Rossi foi toda uma construção. Antigamente as condições eram precárias, algumas já tinham sorte de nascer bonitas, conseguir clientes à noite. Chamávamos na rua de “bater portinhas”. Atualmente, Cilene tem 51 anos e exerce a profissão de assessora parlamentar da vereadora Marina Callegaro (PT). Com seu trabalho, auxiliou 23 mulheres trans a fazerem a troca do nome social. Considera esse passo como um empoderamento para que pessoas como ela se reconheçam como cidadãs e como desejam ser reconhecidas.
Definitivamente, a inclusão de pessoas trans no mercado de trabalho ainda é um desafio. Mas, como conta Marquita, a área da beleza era uma alternativa para pessoas trans trabalharem, pois o local se mostrava parcialmente receptivo a essa população.“Eu digo que a minha profissão era ser cabeleireira. Até alguns anos atrás era a profissão onde a gente se encontrava e não tinha preconceito, a gente era aceita no meio do salão”, relembra. Atualmente, Marquita trabalha com a produção cultural de eventos em Santa Maria.
Tentar se colocar no mercado de trabalho sendo uma pessoa trans pode resultar em cicatrizes profundas e desgastes emocionais. No final de 2019, logo antes da pandemia do coronavírus, Cauã estava procurando emprego, mas não havia resultados. Nas experiências para conquistar algumas vagas, houve muitos questionamentos desnecessários e nem um pouco profissionais dos colegas da empresa.
“Fiz o teste de uma semana em uma sorveteria. A moça que estava me treinando começou a me perguntar por que eu tinha cabelo comprido, se eu era gay, se eu ‘dava’, coisas bem íntimas que não tem nada a ver com o espaço de trabalho e, por causa do meu cabelo comprido, ela achou que eu era gay e ela tinha essa permissão.”
Davina também se deparou com dificuldades ao buscar por empregos. Antes da transição, ela conseguiu uma oportunidade de estágio, mas quando terminou o ensino médio, o estágio foi cancelado. De acordo com a jovem, após trocar seu nome social e começar a fazer currículo como Davina, as entrevistas de emprego nunca mais surgiram. Até o momento, seu único trabalho depois da transição foi como babá e como modelo.
Essa realidade reflete a dificuldade desse público ao tentar ingressar no mercado de trabalho. Muitas vezes não avançam sequer nos processos seletivos e não são contratados apenas por serem quem são.
O impacto do preconceito na vida da comunidade T
“O momento que sofri o primeiro preconceito foi dentro da família e aí tive que me tornar forte”
Como acontece com a grande maioria das mulheres e homens trans, Marquita não teve apoio da família. A exclusão familiar ocorreu quando tinha apenas 14 anos, foi expulsa de casa e mudou de cidade para morar com um tio, após dois anos retornou para Santa Maria apenas com a roupa do corpo. Sem lugar para morar e família para acolhê-la, dormiu nas ruas da cidade e foi amparada pelos iguais a ela.
Marquita comenta como era o preconceito na década de 80:
Na trajetória de Davina, seu pai se tornou um dos primeiros desafios preconceituosos que ela enfrentaria. Na busca por tentar encontrar uma explicação para os seus sentimentos, resolveu assumir-se, a princípio, como um homem homossexual para a família, iniciando um processo de negociação entre a sua identidade e a aceitação dos outros. Após Davina e sua mãe saírem de casa na pandemia da covid-19, a jovem começou a refletir e descobriu que haveria uma (des)construção em sua vida. No final de 2020, Davina nasceu e a relação com o pai ficou em pedaços.
Cauã, por sua vez, teve o apoio da mãe desde o começo da transição, tanto emocional quanto financeiro. Por mais que fosse difícil, ela estava sempre presente para apoiá-lo. Porém, por parte do pai houve, no início, uma certa rejeição e dificuldade durante o primeiro ano de transição. Seus avós paternos optaram por cortar relações e nunca mais falaram com o neto. Alguns familiares mais próximos de Cauã se mantiveram em sua vida, pessoas que ele chama de parceria.
“Infelizmente grande parte das mulheres trans encontram o preconceito dentro da família. Muitas são expulsas de casa, pela própria mãe ou pelo pai, geralmente pelo pai. Tem mães que também não aceitam, porque esperavam um homem que casasse e tivesse filhos. Mas também tem muitas mães que abraçaram a causa junto aos filhos, eu acho isso lindo” – Cilene
Cilene costuma dizer que foi abençoada por ter sido acolhida pela família, apesar de ter sido uma construção. Foi criada em um meio onde predominava o amor e o respeito. O pai era militar, no começo foi difícil a aceitação e compreensão, mas com a convivência ele a aceitou, embora não a chamasse de Cilene. “Ele nunca me chamou pelo nome social, e eu não esperaria isso de um homem de 80 anos”. Cilene sempre colocou a família em primeiro lugar e amou-os de forma incondicional. Infelizmente, seus pais já faleceram, mas ela recorda carinhosamente dos dois e segue a vida pregando os ensinamentos de amor e respeito que ambos a ensinaram.
Cilene fala sobre sua história com muita leveza e humor, assim como compartilha a sua vida de uma forma muito sincera, aberta e acolhedora. Apesar de ser designada ao gênero masculino ao nascer, sempre lutou pela existência da mulher que vivia dentro de si, sem perder o humor, a graça e a alegria.
De acordo com a revista Veja, aproximadamente 70% das mulheres trans se submetem a cirurgia de redesignação sexual e apenas 35% dos homens trans procuram pela cirurgia genital. Segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), as filas de acesso para a redesignação sexual superam os dez anos de espera, atualmente.
Mas apesar do índice ultrapassar a metade da população trans feminina, algumas mulheres optam por não realizá-la e se consideram satisfeitas com seu corpo. Este é o caso da Cilene, embora a aparência feminina, o cabelo longo, os seios fartos, a maquiagem, façam parte da sua personalidade. Cilene nunca cogitou realizar a cirurgia de redesignação sexual.
“Estou satisfeita com meu corpo, não pretendo me mutilar, nunca tive a idéia de cirurgia. Respeito aquelas que não aceitam o órgão, mas eu me aceito perfeitamente”.
Apesar da cirurgia ser considerada uma afirmação de gênero pela revista Veja, a mudança na forma de se vestir, de se comportar ou até mesmo de se montar, passou a ser a principal necessidade de mulheres que se descobriram trans, logo, quanto mais feminina, mais mulher aos olhos da sociedade.
No “processo da Marquita”, como ela mesma chama, começou a se montar, passar maquiagem e usar roupas femininas. Em suas próprias palavras, essa construção vem muito da heteronormatividade. “Tem que ter peito, tem que ter cabelo comprido, tem que ter uma passabilidade para poder estar inserida na sociedade e no mercado de trabalho. Independente da aparência estética que se tem, a identidade de gênero é uma coisa e a aparência é outra coisa. Em uma sociedade que julga as pessoas pelo órgão genital, isso tem de ser repensado.”
“É um processo de auto-aceitação, olhar o seu corpo e se aceitar, isso tem uma pressão muito grande. Afeta a autoestima e saúde mental da nossa população. A saúde mental é muito debilitada, por todo esse processo da pressão, da transfobia e lgbtfobia.” – Marquita
Assim como Marquita e Cilene, apesar de terem vivido as experiências em épocas diferentes, Davina também sentiu uma pressão estética ao se assumir como mulher trans. “[…] no começo eu sentia muita pressão estética, de me parecer com uma mulher cis. Sentia essa necessidade de vestir coisas femininas e me esforçar ao máximo para ter essa aparência delicada […]”.
Davina considerava seu corpo fora do padrão e vivenciou um período difícil e delicado, onde foi necessário uma constante luta por reconhecimento e aceitação. A jovem sentia muita disforia pelo próprio corpo, se sentia desconfortável com sua altura, seus ombros largos e suas mãos grossas. O verão era um incômodo, suas veias das mãos ficavam nítidas, mais um motivo para despertar a sua frustração.
“Foi complicado, no começo foi bem difícil. Eu sentia mesmo essa pressão, mas não sei se a pressão vinha das pessoas ou eu me pressionava, acredito que eu mesma. Agora eu sei que não precisa, eu aceito meu corpo, sinto falta de alguma coisa as vezes, me incomoda bastante ter pelo no rosto, odeio ter pelo no rosto, é o que mais me incomoda na verdade.”
Quando Davina iniciou a transição, ela tinha como prioridade fazer terapia hormonal, mas agora não vê mais necessidade de tomar hormônio, pois gosta bastante do seu corpo. Porém, pretende avaliar na terapia com uma psicóloga e decidir se realmente quer ou não começar o processo de hormonização.
A pressão estética não atinge só as mulheres trans, mas os homens trans também se deparam com essa realidade, e foi uma das questões para Cauã. Em 2019, quando retificou o nome, sua aparência era diferente, tinha os cabelos compridos, ele gostava, mas muitas pessoas não gostavam. Frustrado com os questionamentos sobre seu cabelo, cortou. “Certamente, teve uma pressão pra deixar essa aparência. Os endócrinos diziam para eu fazer academia pra ficar mais musculoso. Mas eu sempre caminhei ou fiz algum tipo de esporte, então aquilo não era questão de saúde, eles estavam falando sobre aparência física. Isso é cobrado, para todas as pessoas trans é cobrado, para mulheres trans com certeza é pior”.
Em 2018, ele começou a fazer o tratamento da hormonização em Porto Alegre, sua cidade natal, no sistema privado, já que em Santa Maria ainda não existiam os ambulatórios pelo SUS que hoje auxiliam a população trans no processo de transição.
“Agora que tenho cabelo curto, barba e voz, eu tenho acesso a um respeito que nunca tive na vida. Nem antes e nem durante a transição. As pessoas parecem que me ouvem mais, é surreal”
Cauã compartilha as vantagens de se parecer com uma pessoa cis:
Amar sempre foi algo complexo. Às vezes o amor não correspondido pode definir como uma pessoa vai ser daquele momento em diante. Assim como o amor muda um ser humano, a rejeição muda mais ainda. Cilene relata a sua realidade como mulher trans no mundo de relações afetivas e a dificuldade em encontrar o reconhecimento e aceitação que tanto anseia.
“Às vezes a pessoa tá com vergonha de estar do teu lado por ser quem tu é. O coração é um ponto muito fraco nosso. A gente está sempre procurando um amor, mesmo sabendo que aquele amor não vai ser correspondido e isso te frustra muito.Eu vivi quatro anos com um homem e sofri muito quando ele me deixou. Ele me trocou por uma mulher cis. Ele não estava errado, eu que estava errada de me entregar inteira”
A importância da assistência à saúde física e mental
“Utilizo o Sistema Único de Saúde (SUS), é um direito e acredito que devemos fortalecer o SUS”
Durante a transição, Marquita não teve apoio psicológico. Hoje em dia ela faz tratamento porque foi diagnosticada com Transtorno de Personalidade Borderline. Em Santa Maria, recentemente, dois ambulatórios para o público trans foram instaurados na cidade para dar auxílio a essa população: o Ambulatório Transcender e o Ambulatório Trans do Hospital Casa de Saúde.
“É muito importante esses espaços de saúde que a gente tem hoje, os ambulatórios trans, porque a saúde é fundamental e para nossa população mais ainda. Porque a nossa população não acessa a saúde facilmente, é importante ter acesso a esses locais”
O Ambulatório Trans do Hospital Casa de Saúde, inaugurado em 2022, oferece atendimento médico a pessoas que buscam iniciar ou prosseguir com a transição de gênero. O local especializado conta com atendimento clínico, psicológico, psiquiátrico e endócrino via SUS. O foco do ambulatório é dar atendimento clínico e psicossocial a pessoas que queiram fazer a transição com tratamento hormonal. Além de Santa Maria, o espaço atende também as 33 cidades da Região Central.
Destinado apenas aos residentes de Santa Maria, o Ambulatório Transcender nasceu em 2020 como um laboratório destinado à população T, mas ampliou os atendimentos a toda a população LGBTQIA+. O laboratório funciona junto à Policlínica de Saúde Mental, localizado na Rua dos Andradas, número 1.397. Os serviços oferecidos são: apoio psicológico, médico clínico e odontológico. Já os pacientes que desejam fazer a hormonização são encaminhados à Casa de Saúde. Em um ano de atendimento do ambulatório, 65 homens e mulheres trans e travestis foram acolhidos. É necessário reforçar que o atendimento é gratuito, via SUS e não é necessário agendar consulta ou ter encaminhamento de um posto de saúde, tudo para facilitar o acesso da população ao atendimento.
O ambulatório realiza uma busca ativa principalmente a pessoas Trans, Travestis e Transgêneros, para oferecer assistência. “A população T já tem historicamente uma dificuldade de acesso às Unidades Básicas de Saúde e, hoje, estamos fazendo um movimento de captação dessa população. No início, nós achamos que seria mais fácil eles aparecerem, mas não foi isso que aconteceu. A solução que encontramos é fazer visita domiciliar, vamos até as Unidades Básicas e conversamos com as agentes de saúde, elas já tem mais ou menos um mapa daquele território e das pessoas que têm interesse. A partir disso, a enfermeira vai até a casa, explica como funciona e oferece os serviços que disponibilizamos”, relata o psicólogo e coordenador do ambulatório Transcender, César Bridi, sobre a necessidade da busca ativa.
O Transcender também abre espaço para as pessoas que querem falar sobre questões de identidade. Ele tem grupos de afirmação de gênero para adultos – maiores de 18 anos – e grupos para adolescentes, dando oportunidade de se descobrir e se entender. Além do atendimento em grupo, dispõe de atendimento individual e para família, como conta Bridi: “Quando uma pessoa transiciona ou descobre sua orientação sexual, todos que estão no entorno precisam lidar com isso. A gente acolhe, explica, orienta os familiares e, caso necessário, encaminhamos para a psiquiatria da policlínica. Nós pensamos que, quando a pessoa vem pra cá, ela precisa se sentir protegida e acolhida.”
Outro espaço que acolhe vítimas de violência de gênero e tem como foco o público LGBTQIA+ e feminino é a Casa Verônica. O projeto é ligado ao Observatório de Direitos Humanos (ODH) e Pró-Reitoria de Extensão (PRE) da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). O local recebeu o nome Casa Verônica para homenagear e manter viva a luta e ativismo de Verônica Oliveira, conhecida como Mãe Loira. Ativista trans e referência na militância LGBTQIA+ na cidade, Verônica foi violentamente assassinada no ano de 2019 a facadas.
A Casa Verônica pretende promover rodas de conversa, eventos e oficinas, focalizadas na saúde mental e física do público alvo, assim como promover a inclusão de nome social, para fomentar políticas públicas voltadas para essas questões. Cauã, atualmente, faz parte da equipe e expõe a importância de existir um espaço como esse, devido a alta demanda: “É um projeto que poucas universidades têm até agora. Mas não é porque esses projetos são raros e escassos que há pouca demanda, a demanda é grande. As pessoas têm sede e fome de reconhecimento, de diálogo e de troca”.
Logo da Casa Verônica
Ilustração: Noam Wurzel / Casa Verônica.
Os atendimentos ainda não começaram, pois a Casa Verônica está trabalhando na contratação dos profissionais, processo que envolve trâmites administrativos. Mas a Casa oferece orientações sobre os serviços disponíveis na universidade e na cidade e, conforme o caso, realiza encaminhamentos para a rede.
Reportagem produzida na disciplina de Jornalismo Investigativo, no 2º semestre de 2022, sob orientação da professora Glaíse Palma.
O título desse texto poderia ser outro, direcionado apenas aos pais, mas sabemos que existem diferentes formações familiares. Por família, entende-se todo e qualquer grupo que conviva entre si sob um mesmo teto. Para além disso, a família é uma instituição que educa, orienta e influencia o comportamento social de cada indivíduo. Esse texto não aborda estruturas familiares, mas a importância do apoio familiar na vida de um LGBT+ e os reflexos de quando esses filhos são expulsos de casa.
O processo de descoberta de um LGBT+ é muito individual, mas um ponto em comum, é que desde pequenos a sociedade nos diz que pertencer a alguma dessas “letras” é errado. Se perceber LGBT+ é o primeiro passo para infinitas lutas que travamos dentro de nós. Um dos primeiros embates é o momento de “revelar” a sexualidade e/ou identidade de gênero à família. O medo da não aceitação aparece, cobranças são feitas e tudo parece desmoronar. Enquanto a vida nos ensina a sobreviver, a sociedade não faz o mesmo.
Medo. Essa é uma palavra muito presente na vida de um LGBT+. A rejeição familiar é uma das problemáticas que mais geram transtornos psicológicos nessas pessoas. Prova disso é o alto índice de suicídio na população LGBT+. Um estudo realizado na Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, com jovens entre 13 e 17 anos, concluiu que adolescentes lésbicas, gays e bissexuais são cinco vezes mais propensos a tentar suicídio do que heterossexuais. No Brasil, em 2018, o Grupo Gay da Bahia (GGB) registrou 100 suicídios de LGBT+. Os números foram coletados através de uma pesquisa feita pelo GGB, ainda assim, faltam dados oficiais para entendermos melhor a profundidade do problema.
Além de transtornos psicológicos, expulsar um filho LGBT+ de casa, muitas vezes, os coloca no mundo das drogas, na prostituição, na rua, provocando uma fragilidade gigante frente a uma sociedade que aponta o dedo a todo instante. Mas destaco os problemas emocionais, por ter sofrido isso durante a adolescência. O receio da rejeição familiar me fez, muitas vezes, rezar para que eu não fosse gay. Entre meus 12 e 15 anos, repetia essa conversa todas as noites antes de dormir. “Não quero que meu pais tenham vergonha de mim”. Meu maior medo era ser expulso de casa e não ter para onde ir; que as pessoas que eu mais amo deixassem de me amar.
Meus pais não me expulsaram de casa. Meu receio foi em vão até os 18 anos, quando eles souberam da minha sexualidade. Conto essa experiência, para conseguir expor um pouco do que é o medo da rejeição familiar enfrentado por um LGBT+. Minha história se torna pequena comparada a inúmeros casos de rejeição familiar que realmente acontecem. Mas ela poderia ter um final diferente, infeliz, devido aos problemas emocionais que me acompanharam no período da adolescência.
Esse medo não é só meu, mas também de outros LGBT+: receio da reação dos pais ao saberem que a filha é lésbica; incerteza sobre o que os avós pensarão sobre a bissexualidade de sua neta; medo que o pai nunca mais fale com o filho ao descobrir que ele é gay. Enquanto famílias rejeitam e expulsam seus filhos, outras criam uma rede de apoio. Há 10 anos, a ONG Mães Pela Diversidade, conscientiza pais e mães sobre a importância do apoio da família para com seus filhos. Presente em 23 estados brasileiros e formada por mães e pais de LGBT+, o grupo alerta sobre a LGBTfobia: “Meu filho não será estatística”.
A família é o nosso primeiro vínculo afetivo. Algumas pessoas dizem que é nosso “porto seguro”, mas o que fazer quando esse porto não está aberto para nós? Para onde vamos correr depois de uma tempestade provocada pela sociedade? A família não pode intimidar. Além de educar, ela tem o dever de acolher e dar amor. A sociedade já é muito cruel com a gente. Não precisamos de mais um mar tempestuoso que nos expulsa para fora dele.
Famílias, não expulsem seus filhos LGBT+ de casa. Ame-nos e nos respeite do jeito que somos. Não crie expectativas e nem projete um futuro para seus filhos. Tenham orgulho. Nós só queremos o seu amor.
Deivid Pazatto é jornalista egresso da UFN. Foi repórter da Agência Central Sul e monitor do Laboratório de Produção Audiovisual (Laproa) durante a graduação. É militante do movimento LGBTQ+, aborda questões pertinentes sobre essa temática em seus textos.
Observe estes dados:
2014: 329;
2015: 319;
2016: 343;
2017: 445;
2018: 420.
Esses são os números, segundo o Grupo Gay da Bahia (GGB), de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais assassinados nos últimos cinco anos no Brasil. 1.856 vítimas de uma violência estrutural. Em 2018, a cada 20 horas, um LGBT+ foi morto de forma brutal no país. Em um contexto de ascensão de um governo conservador, que estimula a violência, os números de agressões contra esse grupo vulnerável não dão indícios de que estejam próximo do fim.
Há pouco mais de um mês, o Supremo Tribunal Federal (STF) deu início ao julgamento da criminalização da LGBTfobia, uma reivindicação histórica do movimento LGBT+ no país. As duas ações julgadas, uma proposta pela Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT) e a outra pelo Partido Popular Socialista (PPS), pautam a omissão do Legislativo no que confere a crimes relacionados contra a população LGBT+.
A primeira sessão iniciada no dia 13 de fevereiro, foi retomada pela última vez no dia 21 de fevereiro. Durante quatro sessões, dos 11 ministros, apenas quatro declararam seus votos favoráveis à criminalização da LGBTfobia, que equipara a violência e a discriminação contra LGBTs ao crime de racismo. Mesmo com duas ações enfatizando a omissão do Congresso, novamente a votação no STF foi suspensa, sem uma data prevista para o retorno do julgamento. Nesse caso, não só o Legislativo foi e é omisso, mas também a Corte, por suspender uma pauta urgente da comunidade LGBT+, já que estava em debate um tema que retrata a realidade do país que mais assassina essa população no mundo. A omissão do Legislativo em levar pautas LGBTs adiante tem uma grande contribuição de forças conservadoras. Com grande empenho, a bancada fundamentalista religiosa, que só cresce a cada eleição, é uma das maiores barreiras para que a violência contra LGBTs se torne crime e que ações afirmativas em prol dessa população sigam adiante para votações.
A pauta de criminalização da LGBTfobia se torna tão polêmica devido ao entrave entre conservadores e defensores dos direitos humanos. De um lado, a grande mobilização de setores conservadores, sobretudo religiosos, defendem que a criminalização da LGBTfobia implicaria na restrição da liberdade religiosa – disfarçada, muitas vezes, de discurso de ódio e intolerância. Do outro, grupos de ativistas e a própria comunidade LGBT+, que reivindica uma pauta antiga em favor da liberdade e da vida.
Criminalizar a LGBTfobia se torna urgente diante da atual conjuntura de conservadorismo estabelecida pelo atual governo. Mas não basta apenas a criminalização, se esse mesmo governo nos tira outras alternativas que militam em busca da educação em respeito à diversidade. Ações como a retirada, nos planos de educação, de diretrizes que contribuem para o enfrentamento à discriminação de gênero e orientação sexual enfraquecem uma luta que não é de hoje e nos levam a invisibilização. Uma invisibilidade que é reforçada por programas como o Escola Sem Partido, que proíbe a discussão de gênero na educação de crianças e adolescentes nas escolas.
Levar essas pautas para as escolas é o início para a desconstrução de uma cultura preconceituosa e da violência estrutural, que ficam evidentes através dos números de crimes contra a população LGBT+ citados aqui. Números esses que só são obtidos através de manchetes ou relatos, graças ao empenho do GGB, a mais antiga associação do Brasil que luta pelos direitos LGBT+. Já que, devido ao despreparo policial e uma certa resistência desses órgãos em reconhecer o motivo específico desses crimes, muitos casos são subnotificados ou não são resolvidos.
E aponto esse despreparo com convicção. Em 2016, após receber ameaças motivadas pela homofobia, compareci a uma delegacia de Santa Maria para registrar um boletim de ocorrência. Após relatar as ameaças e apresentar provas, o policial deu risada e disse que eu não poderia fazer um registro alegando ser vítima de homofobia. “Não tem lei pra isso!”
Mas porque criminalizar a LGBTfobia? Principalmente, para que mais vidas não sejam perdidas. Para que não tenham mais casos como o da travesti Dandara, espancada e executada em praça pública, em 2017, na cidade de Fortaleza. Para que famílias não façam mais vítimas, como Itaberly, morto pela mãe e padrasto, também em 2017, no estado de São Paulo. Para que LGBTs possam sair na ruas de mãos dadas sem sofrer insultos ou ter a cabeça atingida por uma lâmpada. Mas esses casos são apenas a ponta do iceberg em uma imensidão de atrocidades que não chegam ao nosso conhecimento.
Por esses e por outros motivos é que não podemos esquecer de criminalizar a LGBTfobia. Hashtags como a #CriminalizaSTF, que ganharam força nas redes sociais próximo ao dia da votação, mostraram o grande apoio para que isso se torne realidade. Mas não podemos lembrar da criminalização da LGBTfobia apenas na semana da votação, em datas comemorativas ou na Parada LGBT+. Devemos reivindicar todos os dias, para não cair no esquecimento, não só do STF ou do Congresso, mas de toda a população.
A LGBTfobia bate em nossa porta todo dia. Amanhã pode ser eu, você, sua irmã, seu tio, algum de seus amigos, sua colega de trabalho, seu professor. Tornar essas agressões e insultos em crime é uma urgência social e que não podemos deixar para amanhã. Se em outros governos já havia dificuldades para que esses temas, não só nas escolas, mas em diversos setores fossem discutidos, o que nos reserva um governo conservador, de um presidente que diz: “Seria incapaz de amar um filho homossexual. […] prefiro que um filho meu morra num acidente do que apareça com um bigodudo por aí” ?
Criminalizar a LGBTfobia é um grito de socorro. Parem de nos matar!
Deivid Pazatto é jornalista egresso da UFN. Foi repórter da Agência Central Sul e monitor do Laboratório de Produção Audiovisual (Laproa) durante a graduação. É militante do movimento LGBTQ+, aborda questões pertinentes sobre essa temática em seus textos.
Ocorreu neste domingo, 18, no Largo da Locomotiva a 4ª Parada LGBT Alternativa de Santa Maria. Organizado pelo Coletivo Voe, o encontro reuniu os membros da sigla LGBT+, além de simpatizantes do movimento. Trouxe como tema anual a “Saúde Mental de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transgêneros e quaisquer outras identificações não heterossexuais ou não cisgêneras”.
A concentração do público começou às 15h, na Praça dos Bombeiros. Por volta das 16h, os integrantes saíram em passeata até o Largo da Locomotiva, na Avenida Presidente Vargas, onde ficaram reunidos, ao ar livre, em frente a um palco montado nos fundos da Biblioteca Pública aproximadamente até as 22h.
Para animar público, houve diversas apresentações, danças e discursos promovidos pelos integrantes do Coletivo Voe, assim como demais convidados, entre eles drags e transsexuais que manifestaram palavras de força, superação e resistência dos movimentos sociais para com o conservadorismo e o preconceito existentes na sociedade e em algumas famílias intolerantes, e também, palavras de amor e união.
A jornalista e integrante do Coletivo Voe, Carolina Bonoto, 28 anos, comentou que apesar de Santa Maria possuir uma parada LGBT oficial promovida pela prefeitura, a mesma por muitas vezes não ouviu e nem integrou os movimentos sociais. Logo, o Voe, como movimento social, resolveu criar uma Parada LGBT construída por LGBTs para os integrantes da LGBTs. A organizadora completa sua fala dizendo acreditar “na importância de ocupar o espaço público, de se reconhecer na pessoa do lado e de conhecer a pessoa ao lado”.
Surgiu então a Parada LGBT Alternativa de Santa Maria, que chegou em 2018 a sua 4ª edição, e é promovida com trabalho e mobilização do Coletivo ao longo do ano todo para que possa ocorrer. Para a realização dessa edição, foi criado um financiamento coletivo online com R$ 1.144 arrecadados, para cobrir com os gastos do evento que não recebe nenhum tipo de apoio por parte da Prefeitura Municipal.
A Parada LGBT ainda contou com a venda de batata frita, hambúrguer, pizza, chope e bebidas em geral nos diversos food trucks que se instalaram ao redor do espaço.
Produzido para as disciplinas de Jornalismo I e Jornalismo Digital I sob a orientação dos professores Sione Gomes e Maurício Dias
O país mais transfóbico do mundo. Esse foi o título que o Brasil recebeu no ano passado, após 144 travestis e transexuais serem assassinados. Os dados assustadores de 2016 levaram o País ao primeiro lugar, num ranking elaborado pela rede europeia Transgender Europe (TGEU). Porém, esses números alarmantes não param de subir. Segundo a Rede Trans Brasil – que realiza coleta de dados através de notícias e relatos que chegam a organização -, até outubro de 2017, 171 travestis e transexuais já foram assassinados no país, batendo o recorde do ano que passou.
O Brasil, novamente, se colocará num infeliz destaque. De acordo com uma projeção realizada pela equipe de reportagem, apoiada nos dados já registrados até outubro de 2017 pela Rede Trans Brasil, podemos encerrar o ano com cerca de 200 vítimas da transfobia. Os números só comprovam a onda conservadora que assola o país e a falta de políticas públicas destinadas para essa parcela da população. Em fevereiro deste ano, o caso da travesti Dandara chocou o país. Morta brutalmente por um grupo de jovens no Ceará, o vídeo de Dandara sendo assassinada a chutes e pauladas ganhou repercussão na internet.
Vulneráveis, o risco de travestis e transexuais serem assassinados é 14 vezes maior do que um homem gay. Seja por um ato físico ou verbal, a transfobia marca vidas. Essas ações transfóbicas não estão presentes só na rua, mas também em instituições públicas, sejam universidades, delegacias policiais e hospitais. Locais que deveriam acolher essas pessoas, acabam por não terem profissionais capacitados para essa população. A violência institucional está presente no cotidianos desse grupo.
VIOLÊNCIA NOS SERVIÇOS DE SAÚDE
Uma vida de negação de direitos. Assim é a trajetória de travestis e transexuais no Brasil. Além do grande números de assassinatos, agressões físicas e verbais, relatos de violências também se fazem presentes no dia-a-dia dessa população. Nos hospitais, a omissão de socorro e o desrespeito ao nome social são as declarações mais frequentes entre travestis e transexuais.
Os relatos espalham-se pelo Brasil. Em março deste ano, a assessora parlamentar Barbara Reis foi até um hospital público na cidade de Rio de Janeiro, para uma ressonância magnética dos seios, que receberam próteses de silicone. Ao ser chamada para a consulta pela médica residente, Barbara ouviu seu nome de batismo, mesmo apresentando a carteira de nome social.
“O fato de tu não respeitar o nome social, o nome que aquela pessoa escolheu, pra mim, já é transfobia. E temos um problema bem sério com os hospitais. Eles respeitam o que está nas certidão de nascimento e não como a pessoa se identifica. Esse é o grande problema que a gente tem” (Bruna de Nicol Brum, enfermeira residente em saúde mental)
Para Guilherme Dias, o que seria uma consulta de rotina na ginecologista, para um exame papanicolau, acabou em trauma. Ao explicar que era um homem trans e que iniciaria um tratamento hormonal, o carioca foi violentado pela médica após despir-se. “Ela disse que se eu era homem, deveria fazer outro exame”, conta Dias, fazendo referência ao exame de próstata.
Já em Canela, no Rio Grande do Sul, no mês de novembro, um hospital foi condenado a pagar R$ 30 mil por negar atendimento a uma travesti. Após passar mal, a travesti e seu companheiro foram até o Hospital de Caridade de Canela. Ao solicitarem atendimento, uma enfermeira se escandalizou com as roupas ditas femininas que a travesti usava e omitiu socorro, ameaçando chamar o segurança. O caso aconteceu em 2011. Após o incidente, a travesti levou o caso à justiça e o hospital reconheceu o episódio como um “ato falho” da funcionária.
No ano passado, imprensa e redes sociais divulgaram 54 casos de violação dos direitos humanos. O estado de São Paulo aparece em primeiro lugar, com 21 notificações de descumprimento dos direitos humanos. Conforme dados obtidos pelo site UOL via Lei de Acesso a Informação, o paciente não tem à disposição nenhuma ferramenta de verificação para saber se o médico que presta serviço já sofreu punição. Mesmo que o Conselho Federal de Medicina (CFM) não proteja os profissionais, após denúncias, pode levar anos para o caso ser julgado. Contudo, quando há punição, são eles os únicos com pena perpétua, como, por exemplo, cassação do registro profissional.
O direito à saúde não permite que hospitais recusem atendimento a uma pessoa, sob nenhuma justificativa. Porém, a falta de capacitação profissional pode ser considerada é um dos principais fatores para que atos transfóbicos ocorram no sistema público de saúde. “Desde a escolarização básica, a gente não tem uma educação voltada a aceitar as pessoas na sua diversidade. Está tudo errado por aí. Na graduação isso só continua, pelo fato de não termos em todos os cursos – ou, pelo menos, nos cursos de humanas e saúde – uma disciplina de gênero e sexualidade”, frisa Bruna de Nicol Brum, Enfermeira Residente em Saúde Mental pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
Segundo Bruna, o Plano de Ação Prioritário na Igualdade de Gênero 2008-2013, da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), prevê que haja uma educação permanente de profissionais da saúde em relação gênero e sexualidade. “Os estudos de gênero são muito recentes. O que se veem são ações pontuais, mas nada de uma política ou de grandes programas que possam abordar essas questões”, destaca a estudante.
A também Enfermeira Residente em Saúde Mental (UFSM), Patrícia Mattos Almeida, reforça a falta de capacitação de profissionais em Santa Maria. Patrícia fala da falta de serviços para atender essa população. “Ano passado (2016), nós tivemos uma capacitação, mas não foi para trabalhar com a transexualidade, e, sim, para falar sobre a LGBTfobia, onde discutimos as formas de acesso. Muitas vezes transexuais sofrem violência nos serviços onde são recebidos. É uma discussão que tem que ser aberta e levado a tona”.
Quando se trata de gênero e sexualidade, ainda há uma série de tabus para a sociedade. Nos últimos meses, a mídia abriu espaço para a problematização da transexualidade. A telenovela A Força do Querer, da Rede Globo, trouxe o processo de descoberta, aceitação e transformação corporal de Ivan – um garoto trans. Patrícia cita a importância de a transexualidade ser dialogada em todos os espaços, e a necessidade de políticas públicas voltadas a essa minoria. “O assunto só vai vir quando tiver uma coordenação da política das minorias no município. Essa coordenação se responsabilizará por organizar as capacitações, educação permanente em saúde que traga o viés do gênero, e que não seja só cis-gênero, para trabalhar só com mulheres, mas para trabalhar com toda a população”.
TRANSEXUAIS E O ACESSO À SAÚDE
O acesso de travestis e transexuais a hospitais, muitas vezes gera preconceito e discriminação, devido à falta de capacitação de profissionais. Uma atenção voltada a essa população no Brasil ainda é recente e precária. Até 1997, a cirurgia de redesignação sexual (adequação dos genitais ao gênero com o qual a pessoa se identifica) era proibida no País. O processo de transformação corporal, que engloba as cirurgias de redesignação sexual, a plástica mamária reconstrutiva (incluindo próteses de silicone) e mastectomia (retirada de mama), só começou a ser ofertado pelo SUS em 2008.
Atualmente, o Brasil possui apenas nove centros ambulatoriais pelo SUS, que realizam o processo transexualizador. Ele inclui a hormonioterapia e as cirurgias, entre elas a de redesignação sexual, que não é realizada em todos os ambulatórios, pois muitos apenas realizam a parte da hormonioterapia. No Rio Grande do Sul, apenas o Hospital de Clínicas de Porto Alegre realiza esses processos.
O processo de redesignação sexual ainda é muito burocrático. Um protocolo transexualizador é feito para homens e mulheres trans, para que a cirurgia seja realizada, conta Bruna. “Eles precisam passar por dois anos de terapia psiquiátrica, além de endocrinologista, psicólogo, e assistente social, para receberem um laudo, que vai atestar que estão aptos a fazer essa cirurgia”, acrescenta a enfermeira.
Desde que as medidas foram estabelecidas em 2008, a expansão da rede acontece de forma muito lenta para a demanda existente. Em 2013, foi criado a Política Nacional de Saúde LGBT, que reconhece as demandas dessa população em condição de vulnerabilidade. A inclusão de políticas voltadas para a população trans no SUS foi celebrada pelos movimentos organizados, que sempre defenderam o atendimento a essa parcela da sociedade como uma questão de direitos humanos. Porém, os relatos de transfobia no sistema de saúde confirmam que entre o que está escrito e o que se tornou realidade, há um grande abismo.
” Já ouvi inúmeros casos, como na capacitação que nós tivemos com a Verônica. Ela relatou que as meninas sofreram algum tipo de violência durante o trabalho, à noite, e buscaram serviços de emergência e tiveram um tratamento preconceituoso” (Patrícia Mattos Almeida)
Outra demanda recorrente do movimento trans, e que causa muitos constrangimentos, é o tratamento do nome social nesses ambientes. Apesar de ser um direito garantido na Carta de Direitos dos Usuários do SUS desde 2009, muitas pessoas trans ainda têm dificuldade de ser identificadas corretamente. “Desde 2013, já é possível registrar o nome social no sistema eletrônico. Ainda assim, os profissionais da saúde não estão capacitados para atender a população. As pessoas têm esse estigma: ‘como chama’, ‘é homem?’, ‘é mulher?’, ‘como eu trato?’”, conta Bruna sobre o sistema de saúde da cidade.
DESPATOLOGIZAÇÃO TRANS
Em 1997, o Conselho Federal de Medicina autorizou as chamadas cirurgias de transgenitalização. A partir de 2008, o Sistema Único de Saúde passou a oferecer serviços para o processo de transição, as chamadas tecnologias biomédicas.
Contudo, para o acesso a tratamento hormonal e cirurgias corporais, o Conselho Federal de Medicina considera pessoas transexuais como portadoras de transtornos psicológicos permanentes de identidade sexual. Além disso, conforme portaria em vigência do Ministério da Saúde, profissionais da psicologia devem fornecer laudos à equipe de atenção especializada no processo transexualizador e terapia compulsória por dois anos.
O Conselho Federal de Psicologia (CFP) já divulgou nota, na qual afirma que “a transexualidade e a travestilidade não constituem condições psicopatológicas“. Em 2015, o Órgão lançou a Campanha para Despatologização das Transexualidades e Travestilidades. No vídeo, profissionais psicólogos abordam que a transexualidade e a travestilidade não constituem nenhum tipo de transtorno do ponto de vista psíquico.
A relação entre transexuliadade e saúde mental reforça uma ideia errônea, em que condiciona pessoas trans a doentes em âmbito mundial. A Classificação Internacional das Doenças (CID), estabelecida pela Organização Mundial da Saúde, apresenta a transexualidade como transtorno de identidade de gênero; já o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) aponta a transexualidade como disforia de gênero. Essas terminologias apoiam a concepção de transexualidade como patologia.
Um fato que pode denunciar essa relação ainda feita entre transexualidade e patologia no sistema público ocorreu durante a produção desta reportagem. Ao procurar a Secretaria de Saúde, a produção foi encaminhada à Coordenação de Saúde Mental do Município. Entretanto, Bruna e Patrícia, enfermeiras residentes em saúde mental, reafirmaram o posicionamento do CFP. “Não é legal vincular saúde mental a política das minorias, por que corrobora que isso seja uma patologia, o que na verdade não é. Mas uma questão de gênero, uma orientação sexual, pessoal e individual de cada um. Não é o que os estudiosos e as pessoas que trabalham na área da saúde preconizam”, declara Patrícia.
“É bem complicado. Eu tenho, hoje, dois internados.Uma menina que internei em São Francisco de Assis, saiu daqui e perguntou ‘Posso levar minhas maquiagens? Minhas roupas? Minhas coisas?’. Aí eu comuniquei o hospital, como que eu estava internando ela em uma unidade masculina se iria levar vestidos. Então lá a gente teve sérios problemas. Tivemos que pedir alta administrativa, porque foi muito complicado” (Elieze Santos Machado, enfermeira)
Patrícia chama a atenção ainda para a associação entre transexualidade a Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs). Essa preocupação deve-se, por exemplo, ao fato de que a 16º Parada Livre da Região Centro foi realizada por meio da verba destinada a Políticas ligadas ao HIV. “Nós não podemos concordar com essas coisas, com essas patologias, ou então que essa população está vinculada ao HIV”, frisa a enfermeira.
A Parada Livre da Região Centro foi produzida com verbas ligadas ao HIV por não ter nenhum incentivo por parte de outras instituições e programas. “O que a gente tem são ações pontuais em algumas políticas, por exemplo a política do HIV, que recebe uma verba do Ministério da Saúde para realizar estratégias de redução de danos. A verba anual do Ministério da Saúde é utilizada para fazer essas estratégias e também para a promoção da parada livre do município. O que a gente ainda precisa mesmo é que seja criada uma política LGBT ou alguém que cuidasse das políticas de equidades no município. Que pudesse ter estratégias, programas definidos”, destaca Bruna.
A sociedade passa por um importante momento de visibilidade e representatividade LGBT, mas ainda há um longo caminho a percorrer. E esse caminho deve ser percorrido com muito diálogo, para assim desconstruir ideias preconceituosas, lutar contra a violência, garantir direitos, igualdade e, acima de tudo, respeito.
[dropshadowbox align=”none” effect=”lifted-both” width=”auto” height=”” background_color=”#ffffff” border_width=”1″ border_color=”#dddddd” ]Vídeo: Projeto Transformar (desenvolvido por estudantes de Publicidade e Propaganda do Centro Universitário Franciscano)[/dropshadowbox]
Por Deivid Pazatto, Emily Costa, Paola Saldanha, para a disciplina de Jornalismo Investigativo, no segundo semestre de 2017, sob a orientação da professora Carla Torres.