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Violência contra a mulher: o relato de Ana

Antes da homologação da Lei Maria da Penha, 11.340, os casos de violência doméstica nem eram reconhecidos como violência contra mulher como é atualmente. A Lei reconheceu que as vítimas vivem sob dependência econômica e que

Maria da penha (Série de reportagens)-01Antes da homologação da Lei Maria da Penha, 11.340, os casos de violência doméstica nem eram reconhecidos como violência contra mulher como é atualmente. A Lei reconheceu que as vítimas vivem sob dependência econômica e que ela vive com o agressor. Hoje, as mulheres que denunciam casos de violência doméstica recebem auxílio do governo, programas de assistência e acompanhamento psicológico. Porém, antes de 2006, os casos de agressão ficavam debaixo dos panos, pois a vítima não tinha esse aparato de proteção e justiça.
Na série de testemunhos de mulheres sobre as violências sofridas captados pela  repórter-aprendiz Amanda Souza, diferentes idades, experiências, dor, lucidez e alívio. Os nomes foram trocados por decisão da equipe de edição da ACS.

[dropshadowbox align=”none” effect=”lifted-both” width=”600px” center=”” background_color=”#ffffff” border_width=”1″ border_color=”#dddddd” ]Metade dos relatos ao Ligue 180 feitos no ano passado tratou de violência física. Em 72% dos casos, as agressões foram cometidas por homens com quem as vítimas mantêm ou mantiveram uma relação afetiva. Do total de relatos de violência registrados pelo serviço, 50,16% foram de violência física; 30,33%, de violência psicológica; 7,25%, violência moral; 2,10%, violência patrimonial; 4,54%, violência sexual; 5,17%, cárcere privado; e 0,46% referiram-se a tráfico de pessoas.[/dropshadowbox]

Ana e a naturalização da violência doméstica 

Ana conheceu o ex-marido, Otávio, em Santa Maria, no ano de 1991. Dois meses depois de começarem o namoro, casaram e mudaram de cidade.  O casamento logo mostrou o caráter de Otávio. Os abusos psicológicos já eram recorrentes no casamento, mesmo antes da gravidez do primeiro filho do casal. As brigas, no início do casamento, se davam por causa do filho mais velho, do primeiro relacionamento de Ana. “ – Quando ele judiava do meu filho mais velho, eu brigava muito. Era um ciúme horrível dos meus primos, sobrinhos e do meu próprio filho. Não podia ficar perto dele”, conta ela.

As agressões continuaram e, quando o primeiro filho do casal, Léo, fez quatro meses, Ana ateou fogo no próprio corpo, em um meio a um abuso psicológico marcado por uma violência verbal intensa. Era o auge da depressão e da negligência. Otávio achava  “bobagem” os sintomas da esposa e continuava a proibi-la de sair, conversar, visitar parentes e amigos. “Nós nunca saíamos, para viajar, de férias, ou ir ao parque, numa praça… ele odiava… nas apresentações de colégio dos meninos, ele não queria ir”, relata.

A vida em família ficou insustentável, porque o marido também não conseguia os manter financeiramente. Era Ana quem assegurava as contas. Ela conta que sempre trabalhou muito para dar o melhor aos filhos, enquanto Otávio trabalhava quando queria. Nessa época, Ana narra ter ouvido ofensas várias: “-Tu não consegue criar teus filhos”; “ – Minha ex-mulher era melhor que tu”; “ – Esse menino (o mais velho) é bastardo”; “ – Te conheci na rua, tu é ‘uma qualquer’ ”.

O casal se separou diversas vezes. Quando a família retornou para Santa Maria, Ana começou a trabalhar numa lancheria própria e, voltou a morar com o marido por ter muito medo de ficar sozinha.  “Nos separamos umas 10 vezes, mas ele aparecia, entrava na minha casa como se nada tivesse acontecido depois de quatro meses fora”. Ela conta que ele trazia flores e presentes, mas nunca realmente pediu desculpas. “Eu tinha um medo de que meu filho mais velho fizesse algo, porque meu marido vivia destratando ele. Não deixava ele comer sem pedir, dizia que ele ia se drogar… então eu estava sempre em volta, cuidando e nervosa”.  O filho mais novo cresceu e o filho mais velho saiu de casa quando casou. No entanto, as brigas e agressões continuaram. Ana praticamente sustentava Otávio. E além do sustento da casa, pagava as viagens dele à trabalho.

Violência física e psicológica

Relato de Ana (Mat ACS)[dropshadowbox align=”none” effect=”lifted-both” width=”600px” height=”” background_color=”#ffffff” border_width=”1″ border_color=”#dddddd” ]3 em cada 5 mulheres jovens já sofreram violência em relacionamentos, aponta pesquisa realizada pelo Instituto Avon em parceria com o Data Popular (nov/2014). [/dropshadowbox]

Quando a mãe de Ana faleceu, há 5 anos, deixou  a casa como herança. Ana e o filho mais novo, Léo,  foram morar nela, deixando Otávio sozinho da moradia antiga.  Abalada pela perda da mãe, Ana deixou na antiga casa parte dos equipamentos de trabalho. Quando ela voltou para buscá-los para voltar à lancheria, o ex-marido não queria devolvê-los. “Tive que obrigá-lo a me dar meus equipamentos e, ainda,  vi que ele acabou perdendo todos os meus clientes, pois não conseguiu manter o negócio”. Otávio, então, foi embora para Passo Fundo, e ainda telefonava  regularmente para saber da vida de Ana e de Léo.  Nessas ocasiões estava diferente, bem-humorado, calmo. No entanto, Otávio voltou de Passo Fundo sem dinheiro, e implorou para Ana aceitá-lo em casa por uns três meses, até arranjar um emprego. “Conversei com o Léo, perguntei o que ele achava de o aceitarmos de volta, e então decidimos ajudar. Deixei ele ficar na minha casa”. Ela conta que levou em consideração o fato de que quando ele trabalhava e tinha dinheiro, ficava bem. “Otávio era carinhoso apenas quando bebia. Brincava com o filho, era tranquilo, porém, no outro dia voltava a ser implicante, arrogante e agressivo” , conta. Após dois meses, a agressividade começou novamente.

A fragilidade mental em que o agressor colocava Ana era intensa. Ela engravidou novamente do marido, mas perdeu o bebê algumas horas depois do nascimento, no hospital, ela estava arrasada, e nem podia externalizar sua tristeza. “Eu não podia ficar triste, ou chorar, ele (Otávio) me impedia disso, não podia expressar meus sentimentos. Quando minha mãe faleceu, as vezes me recordava dela e chorava, e ele dizia ‘não chora!’, quando perdi meu bebê também, nem no hospital, ele falava com rispidez ‘tu não chora!’ ”.
Há um ano e meio, antes da separação definitiva do casal, eles estavam discutindo e Otávio jogou um balde com pedras contra Ana, porque ela disse algo que o incomodou. “Era assim, qualquer coisa que eu falasse quando ele estava agressivo, coisas eram arremessadas contra mim ou ele me batia“.   Ana saiu de sua casa com o filho e, algum tempo depois, foi até lá (onde o agressor mora). Mais uma vez, Otávio a agrediu e ameaçou. Foi quando Ana decidiu mudar de atitude. Registrou ocorrência e deixou registrado que ele estava morando na residência que era herança da mãe dela. 

A superação

[dropshadowbox align=”none” effect=”lifted-both” width=”600px” height=”” background_color=”#ffffff” border_width=”1″ border_color=”#dddddd” ]56% dos homens admitem que já cometeram alguma dessas formas de agressão: xingou, empurrou, agrediu com palavras, deu tapa, deu soco, impediu de sair de casa, obrigou a fazer sexo. Saiba mais sobre as “Percepções do Homem sobre a Violência Contra a Mulher” (Data Popular/Instituto Avon 2013). [/dropshadowbox]

Depois de sete anos do episódio em que Ana ateou fogo contra o próprio corpo, ela decidiu se separar e refazer sua história de vida. “Nem que eu fique passando necessidade, vou embora”. Ela continua na casa que alugou e se mudou com Léo. Otávio está até hoje morando na residência de Ana, pagando aluguel para ela. “Mas ele ainda vêm aqui (na nova casa) com alguma desculpa, para saber como o Leozinho está, ou qualquer outro pretexto para se aproximar. Hoje, com minha vida refeita, meu trabalho, meu carro, não dependo mais dele. Eu cuido da minha vida, sou dona da minha vida. E não tenho como voltar, tenho certeza, porque ninguém muda se não quer. Ele não vai mudar, só tenho pena dele“.  Ana fez tratamento para ansiedade, com medicamentos, fez cursos, arrumou o bar na frente da sua casa atual e continuou trabalhando. Ela conseguiu iniciar o tratamento só depois de separada, pois durante o casamento nunca pôde sair para consultas ou mesmo para comprar os remédios.

Ana disse que resgatou sua vida de volta com muita força de vontade, e precisou ter muita determinação para superar tudo que Otávio fez.  Ela considera a lei Maria da Penha muito importante, porque  antes as vítimas denunciavam e nada acontecia. Os homens não tinham medo.  Segundo ela, apesar de ainda ter muitas vítimas de violência doméstica, hoje os homens têm medo da lei, do que possa acontecer com eles. “Antes mesmo da lei, não se dava importância para abuso psicológico. Meu marido usava o fato de ler e conhecer mais assuntos do que eu contra mim, ele trabalhava com revista jurídica, então essa ‘cultura’ era algo que utilizava também para me atingir“.

Ana acredita que deveria ter análise psicológica nos agressores, um tratamento com eles, para interromper o ciclo de violência. Ela ressalta que poderia ter um amparo psicológico maior às vítimas, porque a violência psicológica é algo muito forte e que prejudica a mente da vítima, seu raciocínio, sua moral. “Pensei em me matar muitas vezes depois, mesmo separada, por causa de todos os danos emocionais que meu ex-marido causou. Eu pensava ‘por que eu vivo?’, não tinha razão para viver. Hoje eu consigo seguir por mim mesma, quero ver meu filho formado, se Deus quiser“.