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pautas sociais

Apesar de existirem desde 1994, os mandatos coletivos não são legalizados no país. Desde 2017, uma PEC que busca viabilizar os coletivos no Poder Legislativo está parada na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara de Deputados

Denzel Valiente, Laura Gomes e Vitória Gonçalves*

Coletivos Eleitos em 2020 para o Legislativo Municipal

As instituições políticas brasileiras são consideradas as menos confiáveis pela população. Na última pesquisa do Datafolha (07/2019) sobre o tema, 58% dos cidadãos afirmaram não confiar nos partidos políticos, e 45% informaram que não confiam no Congresso Nacional. Esse cenário coloca em debate novas formas de pensar e fazer política. Uma das alternativas para essa crise da democracia representativa são os mandatos coletivos. 

Essas iniciativas aparecem no Brasil a partir de 1994. Desde então, foram 351 candidaturas coletivas nas eleições federais, estaduais e municipais, de acordo com os dados da Rede de Ação Política para Sustentabilidade (RAPS). Esse tipo de mandato é caracterizado pela atuação de um(a) parlamentar em conjunto com coparlamentares que debatem e deliberam coletivamente acerca das decisões políticas tomadas nas casas legislativas. 

Apesar do crescimento das candidaturas coletivas nos últimos anos, ainda não existe uma regulamentação na área. Em 2017, a deputada Renata Abreu (PODE-SP) ingressou com uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC 379/17) para inserir, no art.14 da Constituição Federal, a possibilidade dos mandatos coletivos no âmbito do poder Legislativo. A PEC, porém, está parada na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) desde o ano que foi proposta.

O pós-doutorando em Direito na Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI), doutor em Educação nas Ciências pela Unijuí e professor do curso de Direito da Universidade de Cruz Alta (Unicruz), Domingos Benedetti Rodrigues, aponta uma razão para esse cenário. Segundo ele, a regulamentação ainda não ocorreu pois os mandatos coletivos não surtiram um efeito abrangente na sociedade capaz de efetivar uma pressão nos parlamentares brasileiros para regulamentar a questão. No entanto, o professor acredita que o cenário está mudando. “A repercussão dos mandatos coletivos e a experiência positiva que eles vão mostrar servirá de pressão para que o parlamento o regulamente”, afirma Domingos.

O professor ainda acredita que esse tipo de representação política fortalece o exercício da democracia representativa, pois, ao contrário do parlamentar que após a eleição rompe o contato com as suas bases eleitorais, as candidaturas de grupos pressupõem um estreitamento das relações de diálogo com a população. “Penso que a proposta do mandato coletivo é incipiente e está nascendo. Mas, eu diria que com o debate e o amadurecimento, a evolução do projeto vai se concretizar. A democracia não é estática, a democracia é evolutiva, e progride de acordo com as necessidades da sociedade”, reitera Domingos.

O crescimento dos mandatos coletivos pode ser observado nas eleições municipais de 2020: foram 257 candidaturas e 16 coletivos eleitos no Brasil.

Utilize a barra lateral para visualizar todos os coletivos.

*O primeiro nome corresponde à pessoa que representa o coletivo na Câmara Municipal.

Eleitos mas não regulamentados. Como será a atuação?

Na prática, apenas o titular dos mandatos coletivos atuará na Câmara Municipal. Os (as) covereadores serão nomeados (as) nos gabinetes parlamentares como auxiliares, assistentes ou assessores. Desse modo, os coletivos adotaram diferentes formas de organização com relação à gestão e à distribuição de funções e tarefas.

 A Coletiva de Mulheres (PT – SP), por exemplo, possui 18 integrantes. Na Câmara Legislativa do município de Ribeirão Preto é possível designar apenas duas pessoas para o gabinete. O coletivo nomeará, assim, duas covereadoras como assessoras. Os coletivos Nossa Cara (PSOL – CE), Candidatura Coletiva (PCdoB – RS), Nossa Voz (PT – MG) e Pretas por Salvador (PSOL – BA) também pretendem nomear os (as) covereadores (as) como assessores (as) de acordo com as cotas de cada município.

Algumas cidades permitem um número maior de pessoas no gabinete. Assim, além da representação política, os coletivos Representa Taubaté (Cidadania – SP), Nossa Cara (PSOL – CE), Bancada Feminista (PSOL – SP), e Coletivo Nós (PT – MA) planejam compor o gabinete com pessoas que não estão, necessariamente, dentro do coletivo. 

O processo de tomada de decisão também é diversificado nos mandatos coletivos. Na Coletiva de Mulheres (PT – SP), devido ao número elevado de covereadoras (18), a deliberação das decisões políticas ocorrerá por meio de votações. Já a Candidatura Coletiva (PCdoB – RS) defende uma construção ampla e plural. “Cada uma tem 1/5 da decisão nos temas que se apresentarem para votação – mas não só isso, também queremos trazer um sexto elemento para essas decisões: a opinião popular sobre cada tema”, comentam as covereadoras.

O coletivo Todas as Vozes (PSOL – SP) possui um regimento interno que estabelece o funcionamento do mandato e as tarefas desempenhadas por cada covereador (a). Segundo o coletivo, os princípios que orientam a atuação do grupo são a governança compartilhada, a participação popular e o estímulo a decisões dentro da coletividade. Na prática, os temas são discutidos e deliberados por todos (as). Além disso, pretendem debater assuntos polêmicos com a população por meio de audiências públicas, reuniões de bairro e conselhos de moradores. 

O Coletivo Nós (PT – MA) estabeleceu no estatuto do regimento do mandato um processo de tomada de decisão em três etapas. “A primeira instância de decisão são os próprios covereadores e vereadoras, que também incidirão sobre as pautas prioritárias do mandato; a segunda é a coordenação geral do Coletivo Nós, que atua para além do mandato; e um terceiro espaço são as plenárias populares nos polos, que vão ouvir as demandas das comunidades. Será apresentado na tribuna as demandas que o povo definir como prioridade”, explica o coletivo.

Além disso, o coletivo planeja propor alterações no regimento da casa legislativa para que todos (as) os (as) covereadores (as) tenham direito de falar na tribuna e participar das comissões especializadas. Outro coletivo que já relata intenções de indicar mudanças na Câmara Municipal é o Nossa Voz (PT – MG). Para o coletivo, os discursos da pauta do dia podem ser escritos por qualquer um dos quatro covereadores, assim como, durante as votações podem ser utilizados termos como “após deliberação do Coletivo, entendemos que sim/não”, ou “eu co-vereadora Andressa, voto junto aos covereadores Bruno, Hernane e Priscila que sim/não”.

O professor Domingos entende que a regulamentação dos mandatos poderia auxiliar nessas questões reivindicadas pelos coletivos. Contudo, a Lei nº 9.504/97, que estabelece as normas para as eleições, ainda não incorporou essas novas demandas. “Para que a candidatura seja aceita, deve ser uma candidatura única, de apenas uma pessoa. O mandato coletivo é um grupo de pessoas que escolhem e candidatam um membro do grupo, registram ele em um partido e realizam a candidatura. Mas, legalmente apenas um candidato participa”, sinaliza Domingos.

Outra questão presente no debate é referente aos salários. Alguns grupos eleitos este ano propõem a divisão do salário do parlamentar entre os (as) membros (as) do mandato coletivo. A Coletiva das Mulheres (PT – SP) lembra que a divisão de salário é considerada crime, dessa forma, apenas a vereadora titular vai receber o salário integralmente. O coletivo Nossa Cara (PSOL – CE)  relata que apenas a representante Adriana Gerônimo receberá o salário como vereadora, e o restante como assessoras parlamentares. Além dos coletivos que não definiram qual será a remuneração de cada representante (3), outros afirmaram que o salário não será compartilhado (3).

Uma solução que busca contemplar todos (as) foi adotada pelo coletivo Todas as Vozes (PSOL – SP), composto por nove pessoas. Cinco covereadores (as) serão nomeados (as)  para o gabinete do vereador. “Equiparamos ao máximo o salário das pessoas que atuam dentro da Câmara, que originalmente não são iguais, e ainda remuneramos mais três pessoas. Vale ressaltar que no nosso caso serão seis pessoas na Câmara (trabalhando 40hs semanais) e três pessoas alocadas nos bairros (trabalhando 20hs semanais), portanto elas receberão um salário menor”, explica o coletivo.

O Representa Taubaté (CIDADANIA – SP) afirmou que não haverá divisão de salário da vereadora, cada um (a) terá sua função e serão contratados (as) como funcionários do gabinete. O mandato também verifica possibilidades, dentro da legalidade, para tornar essa questão mais igualitária possível. O coletivo Pretas por Salvador (PSOL – BA) pretende usar a verba para fazer o pagamento dos funcionários, enquanto as duas principais representantes receberão o salário igualitário. 

A Coletiva Bem Viver (PSOL – SC) relatou que o salário da parlamentar será dividido entre as cinco covereadoras da mesma maneira. O grupo Fany das Manas (PT – PE) pretende dividir o salário igualmente entre a representante e as assessoras. Embora a intenção da divisão dos ganhos seja manter os parâmetros igualitários dos coletivos, a partilha salarial é considerada um esquema de rachadinha, na qual ocorre uma transferência de parte ou de todo salário do servidor para o parlamentar ou secretários a partir de um acordo anteriormente estabelecido. 

Segundo o professor Domingos Benedetti, a lei proíbe que o parlamentar eleito pela teoria do mandato coletivo divida o seu salário entre correligionários. “Ele vai ter o número de assessores que é permitido por lei, que irão receber o salário do parlamento”, relata o professor. Ele também reforça que o papel dos assessores é desenvolver funções de assessoramento ao desenvolvimento do mandato parlamentar. Mas apenas um candidato vai subir na tribuna, para defender e apresentar o projeto de lei. 

Por questões legais, a partilha de salário deve ser analisada juridicamente visto que há diversos casos ilegais em relação a divisão salarial. Assim, a questão pode causar confusão entre o que é ou não legal por parte dos tribunais eleitorais. Por outro lado, os custos de campanha eleitoral são regulados pela legislação eleitoral, sem grandes complicações do ponto de vista da estratégia de compartilhamento dos gastos. 

Embora os mandatos coletivos não sejam regulamentados juridicamente no Brasil, o método tem pretensões de alcançar outros níveis institucionais e se fortalecer no legislativo. Para o professor Domingos Benedetti, a proposta oferece um grande exercício de democracia participativa e contribui com a reaproximação dos desejos da população aos espaços institucionais.

Espaço das mulheres

O crescimento dos mandatos coletivos nas eleições acompanhou a luta pelo espaço das mulheres na política, que, nas últimas eleições foram eleitas nas Câmaras Municipais de todas as capitais do país. Apesar disso, a maior parcela da população feminina permaneceu ausente no Legislativo municipal de 17% dos municípios brasileiros, segundo o levantamento do Instituto Update

Por outro lado, os mandatos coletivos avançam na questão da representatividade. Ao todo, 93 pessoas compõem os 16 grupos eleitos. Destes, 71 são mulheres e 22 são homens. Apenas um coletivo não possui mulheres na composição. As mulheres ainda estão à frente da representação parlamentar em 13 coletivos. 

Disposição geográfica

A região sudeste concentra a maioria dos mandatos coletivos (oito). Em seguida, vem a região nordeste com eleição de quatro coletivos. No sul, três Câmaras Municipais serão ocupadas por coletivos. Na região centro-oeste, apenas um coletivo foi eleito. No nordeste, a reportagem não encontrou coletivos eleitos.

O que defendem?

Quando o assunto são as bandeiras defendidas pelos coletivos, todos possuem diversas frentes de atuação. Entre as pautas mais frequentes estão a defesa dos direitos das mulheres, da educação, da cultura, da população negra e periférica e LGBTQIA+. 

No nordeste, que em 2017 era a região com maior número de homicídios no Brasil segundo o Atlas da Violência – levantamento de homicídios relatados pelo Sistema Único de Saúde (SUS), pautas com o enfrentamento a violência contra a mulher e ao extermínio da juventude negra se destacam em comparação às outras regiões. Os coletivos Pretas por Salvador (PSOL – BA), Fany das Manas (PT – PE) e Nós (PT – MA), possuem entre suas bandeiras de luta o combate a violência e a defesa dos direitos das populações, o que evidencia uma realidade enfrentada na região.

Além disso, pautas relacionadas à gestão das cidades, meio ambiente e agricultura familiar estão presentes tanto nos coletivos da região nordeste como nas regiões sudeste e sul.

A reportagem entrou em contato com todos os coletivos eleitos. 12 retornaram e quatro não haviam respondido até o encerramento da matéria: Teremos Vez (RS), Mandato Popular Coletivo (SP), Quilombo Periférico (SP) e Mandato Coletivo de Machado (MG). 

*Reportagem produzida para a disciplina de Jornalismo Investigativo sob a orientação do professor Mauricio Dias