O artigo A reconstrução do corpo homossexual em tempos de SIDA, de Ricardo Llamas [1] é dividido em oito tópicos, discorrendo sobre a construção e reconstrução do corpo homossexual ao longo da história da humanidade e suas implicações a partir do surgimento do vírus HIV/AIDS.
Optamos por destacar os que nos pareceram mais importantes, tentando estabelecer relações entre as idéias do autor e os acontecimentos midiáticos que abordam a homossexualidade. Llamas deixa claro logo no início que vai abordar o processo histórico de constituição de um “corpo homossexual” e a reorganização destes postulados no contexto da pandemia da AIDS.
Para tanto, faz uma rápida viagem no tempo, apresentando os precedentes deste corpo homossexual.. Ele parte de Aristóteles e seus discípulos, passa pelos corpos dos escravos como objeto de compra e venda e aborda o destino social estabelecido para as mulheres naquelas sociedades: a maternidade. As possibilidades de existência são a mulher-mãe, a mulher-esposa, a mulher-feminina (adornada para o outro) e o gozo máximo: a mulher-do homem. [2]
Para ele, as mulheres, assim como os escravos só adquirem importância na manifestação de sua realidade corporal. Seja no matrimônio, na prostituição (o corpo como bem negociável), na publicidade (mulher vende cerveja, carro e sabonete) e na pornografia (onde, segundo Llamas, é a única representação possível da realidade lésbica).
Não há necessidade de voltar no tempo para perceber que esta concepção ainda é vigente, sobretudo na mídia e, ao que parece, na cabeça do autor. O que causa estranheza é o fato de que, mesmo morando em Madrid e ter escrito este texto na década de 90, Llamas não contextualize as informações. Os movimentos gay e lésbico existem há mais de 10 anos na Europa, Estados Unidos e no Brasil. Assim como existem filmes que abordam o tema: Almas Gêmeas, sobre a atração sensual entre duas adolescentes, é de 94.
Por outro lado, alguns setores da imprensa no Brasil ainda não sabem como lidar com a sexualidade alheia nem na ficção. O jornalista Francisco Dalcol, em sua coluna no Diário de Santa Maria de 7 de março de 2006, associa lesbianismo e criminalidade em tons nada delicados:
Não foi só por causa do vestido que Charlize Teron chamou a atenção no Oscar. A atriz sul-africana que concorria ao prêmio de melhor atriz por Terra Fria, mostrou por que é uma das mais lindas de Hollywood. E pensar que ela virou aquela machona feiosa e de dentes encardidos no filme Monster – Desejo Assassino.
A impressão que se tem é que os processos desenvolvidos no século XIX na Europa a fim de estabelecer novas categorias humanas ainda são vigentes. Naqueles tempos idos, além da delinqüência e da loucura, surge um terceiro espaço de desvio privilegiado: a sexualidade. Há uma rígida distinção entre homens e mulheres. A primeira delas é anatômica, não podendo haver um nível “intermediário” entre os sexos. Este regime estabelece um sistema de exclusão que agrega todas as anormalidades ou desvios, incluindo-se a perversão e o terceiro sexo. É a instituição da heterossexualidade.
O termo homossexual foi cunhado em 1869 por um advogado alemão. Até então não havia catalogação possível para este desvio de conduta sexual. Existiam os libertinos (romantizados por Casanova e Dom Juan) e os pervertidos, de sexualidade suspeita, os sodomitas. O corpo homossexual que nasce passa a ser um objeto da ciência. O médico francês Ambroise Tardieu escrevia em 1857 que estes podiam ser identificados por sinais que manifestavam a prática da penetração anal e da felação.
As técnicas de identificação da homossexualidade se tornaram mais sofisticadas. Apelou-se para Freud e o complexo de Édipo, frustrações na juventude, sedução de um adulto e outras hipóteses absurdas. O que importa não são os métodos de prospecção, mas sim o regime de controle a fim de manter a ordem estabelecida e impedir a integração de gays e lésbicas com o resto da sociedade.
Llamas proclama que “os encontros entre gays são fugazes, anônimos e clandestinos, porque não é possível articular um outro modelo de relação”.Se ele se refere à determinada época , deveria ter deixado claro no texto. Se está abordando as relações contemporâneas, mais uma vez parece que o autor desconhece em profundidade as relações homoafetivas e homoeróticas – termos usados em contraponto à homossexualidade, que remete de imediato à relações sexuais.
É verdade que os papéis significativos na sociedade (forças armadas, política, ensino) são construídos a partir de um princípio de imperativo heterossexual. No entanto, mudanças já vêm ocorrendo. Paris e Berlim são capitais que elegeram prefeitos gays. A polícia inglesa, além de permitir o exercício da sexualidade de seus integrantes, dá visibilidade a este fato. Escolas públicas e privadas de ensino superior no Brasil têm gays e lésbicas nos seus quadros.
O século XIX determinava que o destino dos loucos era o manicômio e dos delinqüentes , a prisão. A descoberta do vírus HIV, causador da AIDS, na década de 80 do século XX era a pedra que faltava para sedimentar o caminho da expulsão dos gays: a morte. Preconceito, desconhecimento ou manipulação, podem ter sido algumas das explicações para a cobertura da mídia sobre o mal que assolou o século passado. Termos como Câncer Gay e Peste Rosa infestaram as redações. Llamas acredita que a manipulação da pouca informação então disponível contribuiu para criar no imaginário coletivo a equação Homossexual = AIDS. [3]
Os grupos de risco identificados quando do surgimento do HIV/AIDS eram os haitianos, os hemofílicos, os heroinômanos e os homossexuais. No entanto, a infeliz associação e redução feita pela imprensa na época, superdimensionou o último grupo. Surge a homossexualização da AIDS. Em outras palavras: o amor que não ousa dizer o nome, de Wilde, também mata. As campanhas de prevenção estabeleceram os gays como público-alvo. E a resposta foi rápida. Os grupos de discussão e apoio se alastraram pelo mundo. A partir destes núcleos a guerra contra o HIV/AIDS foi ganhando corpo e as estatísticas comprovam a diminuição da incidência na população homossexual.. Em contrapartida, outros grupos até então considerados imunes passaram a ser atingidos: bissexuais, heteros, mulheres, crianças e idosos.
Esta estratégia de campanha alertou os gays, mas prejudicou uma boa parcela da sociedade. As campanhas de utilização de preservativo, por sua vez, têm centrado seu foco nos adolescentes aqui no Brasil, nos últimos anos. Ainda existem alguns entraves: os heteros (convictos ou não) ainda vêem o uso da camisinha como símbolo confesso de infidelidade e negação da masculinidade. Um exemplo: em filmes pornôs heteros, os homens não usam preservativo. Nos gays, é obrigatório.
Em filmes não-pornôs, até pouco tempo, o amor entre homens sempre teve a nuvem negra da AIDS pairando sobre suas cabeças. Philadelphia, Antes que Anoiteça, Cazuza são alguns dos exemplos. Já o francês Cyril Collard foi dos mais ousados: portador do vírus, relatou sua história em livro, depois escreveu o roteiro, dirigiu e interpretou seu próprio papel em Noites Felinas (1991). Pena que Llamas tenha utilizado um subterfúgio reducionista ao se referir ao filme, descontextualizando-o.
Se Philadelphia deu o Oscar a um Tom Hanks soropositivo, Brokeback Moutain surpreende por contar a história de amor entre dois homens rudes em tempos pré-AIDS. Não há personagens estereotipados, pervertidos, nem libertinos. Pode parecer pouco, mas é uma das poucas vezes que a possibilidade de uma relação afetiva desta natureza surge na tela sem a onipresença da Moira, ou drag-queens, travestis e bichas loucas.
Este exemplo da indústria cinematográfica poderia ser seguido pelo restante da mídia, mas seria pedir muito. Na ausência de categorias específicas (mais uma volta ao século XIX) o filme tem sido rotulado de “a história entre dois cowboys gays”. O relacionamento entre iguais ainda assusta, pois ataca os padrões heterossexuais vigentes. Aos futuros jornalistas e publicitários, é destinada a tarefa de respeitar as opções de uns e outros e lutar por um mundo onde o direito de amar e ser amado seja livre. De fato.
Bebeto Badke é professor do Jornalismo e da Publicidade e Propaganda da UNIFRA e Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação
da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS
[2] Ver também SPENCER, Collin. Histoire de l’homosexualité. (Paris: Le Pré aux Clercs, 1998)
[3] Sobre a atuação da mídia brasileira nesta época, ver a entrevista da jornalista Roseli Tardelli à Revista Imprensa, nº 183, julho/agosto de 2003, pp. 10-14.