Encontrar lares onde há mães e filhos é bastante comum. A figura do pai, algumas vezes, se perde no caminho.A banalização dos atos amorosos e sexuais das duas últimas décadas tornou real a crescente leva de crianças “sem pai”. Isso não existe, certo? Todo ser humano, para ser gerado, precisa da figura masculina. Para refletir sobre este assunto, a filósofa Ana Liési Thurler, doutora em Sociologia pela Universidade de Brasília, desenvolveu sua tese a partir da intersecção entre democracia e gêneros, indicando seu estudo na relação de paternidade. “O quanto nossa paternidade é cidadã e está comprometida com a afirmação da democracia”, completa. Depois de analisar mais de 180.000 registros de nascimentos, nos anos de 1961,1970,1980,1990 e 2000, em dez cartórios de Brasília, constatou que 12% das crianças nascidas não foram reconhecidas pelo progenitor, e em apenas 10% dos casos houve reconhecimento posterior.
A sociedade como geradora do problema
“Nós construímos culturalmente, coletivamente, esse pai desertor”, afirma Ana. A primeira constituição do Brasil, de 1916, proibia o reconhecimento de crianças nascidas fora do casamento. No consenso comum, pai era o marido da mãe. Uma vez a mãe não sendo casada, essa criança não tinha pai e o homem que a gerou não lhe devia nada. Em 1993, 57% dos nascimentos aconteciam fora do casamento. Hoje, estima-se que sejam 66%, nos quais um terço são de relações eventuais. Só a partir de 1988 a nova Constituição estabeleceu a igualdade entre todos os filhos e a iIgualdade de tratamento tanto do pai quanto da mãe. Outro fator foi a Lei da paternidade que deu ao Ministério Público poder de buscar o pai. Antes, somente a mãe ou a própria pessoa poderia executar essa busca. A Lei da Paternidade provou que “é interesse da sociedade e do próprio Estado que o pai se vincule ao seu filho, que o filho tenha um vínculo com seu pai, que cuide dele, o proteja e acompanhe o seu desenvolvimento”, salienta Ana.
O pai desertor é uma expressão não cidadã, não democrática. É forma de negar no cotidiano a democracia.
A relação entre IDH e paternidade
Há uma correlação entre os indicadores sociais propostos pelo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), padrões de cidadania e reconhecimento. Onde os padrões são elevados, a tendência é o reconhecimento também ser maior. Baixos índices de não reconhecimento estão presentes onde o IDH é alto. Em países como a França, somente 2% das crianças não são registradas pelo pai e pela mãe. Já no Brasil o índice sobe para 30%.
País |
Nascimentos fora do casamento |
Índice de não reconhecimento paterno |
Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) |
Posição no quadro geral |
Nível de Desenvolvimento Humano |
França |
50% |
2% |
0,932 |
17ª |
Alto Desenvolvimento Humano |
Costa Rica |
50% |
25% * |
0,832 |
42ª |
|
Brasil |
66% * |
30% ** |
0,777 |
65ª |
Médio Desenvolvimento Humano |
El Salvador |
75% |
33% * |
0,719 |
105ª |
|
Nicarágua |
75% |
33% * |
0,643 |
121ª |
* Não há produção de dados nas estatísticas oficiais. Estimativas a partir de pesquisas desenvolvidas.
Fonte: Relatório Desenvolvimento Humano. www. pnud.org, acessado em 10.08.2005. Gomáriz et allii, 2002.
** Em 2001 foram lavrados no Brasil, 3.743.651 registros civis de nascimento.
***Tabela desenvolvida pela Doutora Ana Liési Thurler e cedida à ACS.
A ausência da paternidade é a expressão de uma cidadania precária. Ana Liési conclui também que onde os índices são maiores, há mais reconhecimentos pela Justiça e menos reconhecimentos espontâneos. O acesso à justiça é fator determinante dessa estimativa, o serviço de busca pelo pai é um dos mais caros, segundo dados da OAB. Há uma interdição econômica privando a maioria.
“Faço, desfaço, refaço”
O governo brasileiro criou, em 2005, algo inédito: uma comissão para estudar a questão do aborto, formada por um terço de representantes do governo, um terço do executivo e legislativo e um terço de movimentos sociais. Foi recomendado legalizar, não o aborto, mas o direito da mulher decidir.
Gerada a polêmica, houve um recuo do governo, que decidiu não pela legalização, mas sim a descriminalização do aborto. Católicas pelo direito de decidir é um movimento nacional a favor do direito de escolha da mulher, da autonomia de decisão. Acontece hoje no Brasil um milhão de nascimentos não planejados.
Um diferencial importante entre a França e o Brasil é o fato de que as francesas têm essa autonomia, e dificilmente levariam adiante uma concepção acidental. São 40 anos de uma política que prioriza a educação, a preservação, mas garante a escolha.