Uma história real em frente às telas do cinema
Melina Guterres
JULHO 2002
Em 2002, estava frente ao I Festival de Vídeo e Mostra de Cinema de Santa Maria – RS, sentada em uma mesa ao lado do Rodacine (telão na praça com mostra de filmes e vídeos), na praça Saldanha Marinho, tomando um refrigerante e esperando uma amiga. De repente, ao me lado se senta a minha frente um menino de rua, de uns 10 anos aproximadamente.
– Oi, sabia que tu é muito bonita?
Educadamente respondi "obrigada".
– Tu vai ser minha namorada, dizia ele inocentemente.
Aquele, garoto tão extrovertido e sorridente me intrigava e o meu lado Madre Thereza, se fortalecia quando ele pedia 25 centavos que faltavam para comprar um pastel.
Em seguida chegou um outro garoto dizendo:
– Não dá dinheiro pra ele que ele vai gastar tudo em droga
O menino ficou quieto e um pouco amedrontado, percebi que o diziam tinha um fundo de verdade e que ambos tinham fome.Para me livrar de qualquer dúvida, resolvi ir comprar o pastel. Logo eles se tornaram meus "amigos" e continuamos a sentados na mesa, dividindo o mesmo refrigerante.
Já como "amiga", me contaram histórias de todas as pessoas e garotos da rua que circulavam pela praça. Estas variavam apenas entre duas alternativas: tráfico e prostituição, em sua maioria tráfico.Ouvia coisas do tipo:
– Aquele lá é o fulano, tá vendo aquela mochila, pois é ta cheia de cola e agora ele tá vendendo prós pia.
Pensei:
– Meu deus, imagina se eu fosse da polícia, eles nem sabe para quem estão contando essas coisas.
Continuei a ouvir:
– Aquela guria, só tem 13 anos e já se vende pra comprar drogar.
"Meu Deus", pensei novamente, essa realidade tão próxima e nunca "vista".
Estavam todos na praça, traficantes, prostitutas, crianças, burgueses ,….todos reunidos no mesmo local. Logo senta, um dos garotos que vende cola. Muito tímido e "cheirado", quase não falava. Certamente não teria se aproximado se os amigos não o chamassem. Tentei conversar e consegui até tirar um sorriso do rosto daquele adolescente, que deveria ter no máximo uns 16 anos.
Descobri que o "meu namorado" e o garoto que o censurava eram irmãos, e que o "censurador", mais velho, não usava drogas e condenava o uso dos amigos e do irmão. Perguntei sobre suas famílias e o maior dizia apenas que iria a noite para casa o menor nunca, pois seu padrasto batia nele. Dormiam todos em um "mocó" que variava a cada noite.
A praça tava agitada, havia palhaços e pernas de paus, gente bonita, feia, gorda, magra, feliz, triste. Percebi que para os moradores daquele local, crianças drogadas e prostituídas, receber toda aquele povo era uma festa.
No teatro 13 de Maio eram exibidos alguns curtas e no Rodacine, eram exibidos outros que não estavam em competição. Os dois irmãos me fizeram diversas perguntas sobre o que estava acontecendo, o que era cinema, por que estava ocorrendo aquilo tudo, o que tinha no teatro, se tinha que pagar, etc. Respondi todas as perguntas possíveis e logo chegou a minha amiga esbanjando todo o contraste social, embora nem pareça tanto.
– Acabei de gastar 10 reais em uma loja de um real. – Ria
Logo ela começou a mostrar, cinto, batons e outras bugigangas. O meu "namoradinho" olhou pra ela e disse:
– Tu gastou 10 reais ?
– Sim – respondeu ela
Percebi nos olhos dele, o espanto. Não tardou chegou outra amiga minha, que apesar de ser também de origem muito humilde, parecia mais preocupada e preconceituosa com a presença dos meninos, que a toda hora se somavam.
A única coisa que me incomodava no momento não eram eles e sim os assuntos fúteis que ambas conversavam aumentando o alarme das diferenças sociais. Logo se levantaram e me convidaram para sair, como se eu quisesse achar um pretexto para sair daquele local.
Obviamente preferi ficar, disse que ia esperar e que em breve entraria no teatro para assistir a mostra competitiva. Elas disseram que logo voltariam.
Para mim, naquele momento, era muito interessante ouvir aquela realidade e falar de cinema do que ficar sabendo o que cada uma delas fez, ou quem ficou com quem.
Os meninos ficavam cada vez mais curiosos sobre o cinema e o "meu namorado" era o que mais queria entrar ao teatro.
Quando vi, já estava na hora, as minhas amigas não voltaram, e o convite de uma delas estava comigo, pensei em levar comigo o meu suposto namorado, mas gelei:
Pensei …ele fala demais, agita demais, não vai ficar em silêncio e além do que, o que os outros vão pensar:?
Já estava frente ao teatro e o meu namorado já flertava uma garotinha burguesa que acompanhava sua mãe. Logo, tentou brincar com a garota, que até respondia a suas travessuras, porém a mãe os afastou.
As portas estavam quase fechando, a minha amiga não voltou. Olhei o "namorado", ele agora brincava com os palhaços de pernas de pau.
Guardei a minha "madre Thereza", junto com o bilhete no meu bolso, que poderia ter dado aquele garoto, e entrei no teatro.
No outro dia vi, na TV, que todos os meninos da praça eram os primeiros da fila, no Rodacine. E por amigos do meio, que eles tentaram entrar no teatro, mas foram barrados no primeiro dia com a desculpa de que haviam de levar um kilo de alimento, apesar da entrada ser franca. Nos dias seguintes, eles passaram todo o tempo que podiam assistindo o Rodacine e a até que conseguiram entrar no teatro, pois já estava ficando constrangedor os barrar, uma vez que a entrada era franca e o cinema para todos.
Após o fim do festival, ouvi que entraram uns oito garotos, todos na primeira fila e diferente do que pensei: todos em silêncio.
Lembrei da minha atitude e suas contradições.
Glória ao cinema para todos, pois durante aqueles dias ou aquelas horas daqueles dias, aquelas crianças e adolescentes deixaram de ser traficantes, prostitutas ou usuárias de drogas, para simplesmente conhecer e apreciar, mais que todos nós, o cinema nacional.
– Oi, sabia que tu é muito bonita?
Educadamente respondi "obrigada".
– Tu vai ser minha namorada, dizia ele inocentemente.
Aquele, garoto tão extrovertido e sorridente me intrigava e o meu lado Madre Thereza, se fortalecia quando ele pedia 25 centavos que faltavam para comprar um pastel.
Em seguida chegou um outro garoto dizendo:
– Não dá dinheiro pra ele que ele vai gastar tudo em droga
O menino ficou quieto e um pouco amedrontado, percebi que o diziam tinha um fundo de verdade e que ambos tinham fome.Para me livrar de qualquer dúvida, resolvi ir comprar o pastel. Logo eles se tornaram meus "amigos" e continuamos a sentados na mesa, dividindo o mesmo refrigerante.
Já como "amiga", me contaram histórias de todas as pessoas e garotos da rua que circulavam pela praça. Estas variavam apenas entre duas alternativas: tráfico e prostituição, em sua maioria tráfico.Ouvia coisas do tipo:
– Aquele lá é o fulano, tá vendo aquela mochila, pois é ta cheia de cola e agora ele tá vendendo prós pia.
Pensei:
– Meu deus, imagina se eu fosse da polícia, eles nem sabe para quem estão contando essas coisas.
Continuei a ouvir:
– Aquela guria, só tem 13 anos e já se vende pra comprar drogar.
"Meu Deus", pensei novamente, essa realidade tão próxima e nunca "vista".
Estavam todos na praça, traficantes, prostitutas, crianças, burgueses ,….todos reunidos no mesmo local. Logo senta, um dos garotos que vende cola. Muito tímido e "cheirado", quase não falava. Certamente não teria se aproximado se os amigos não o chamassem. Tentei conversar e consegui até tirar um sorriso do rosto daquele adolescente, que deveria ter no máximo uns 16 anos.
Descobri que o "meu namorado" e o garoto que o censurava eram irmãos, e que o "censurador", mais velho, não usava drogas e condenava o uso dos amigos e do irmão. Perguntei sobre suas famílias e o maior dizia apenas que iria a noite para casa o menor nunca, pois seu padrasto batia nele. Dormiam todos em um "mocó" que variava a cada noite.
A praça tava agitada, havia palhaços e pernas de paus, gente bonita, feia, gorda, magra, feliz, triste. Percebi que para os moradores daquele local, crianças drogadas e prostituídas, receber toda aquele povo era uma festa.
No teatro 13 de Maio eram exibidos alguns curtas e no Rodacine, eram exibidos outros que não estavam em competição. Os dois irmãos me fizeram diversas perguntas sobre o que estava acontecendo, o que era cinema, por que estava ocorrendo aquilo tudo, o que tinha no teatro, se tinha que pagar, etc. Respondi todas as perguntas possíveis e logo chegou a minha amiga esbanjando todo o contraste social, embora nem pareça tanto.
– Acabei de gastar 10 reais em uma loja de um real. – Ria
Logo ela começou a mostrar, cinto, batons e outras bugigangas. O meu "namoradinho" olhou pra ela e disse:
– Tu gastou 10 reais ?
– Sim – respondeu ela
Percebi nos olhos dele, o espanto. Não tardou chegou outra amiga minha, que apesar de ser também de origem muito humilde, parecia mais preocupada e preconceituosa com a presença dos meninos, que a toda hora se somavam.
A única coisa que me incomodava no momento não eram eles e sim os assuntos fúteis que ambas conversavam aumentando o alarme das diferenças sociais. Logo se levantaram e me convidaram para sair, como se eu quisesse achar um pretexto para sair daquele local.
Obviamente preferi ficar, disse que ia esperar e que em breve entraria no teatro para assistir a mostra competitiva. Elas disseram que logo voltariam.
Para mim, naquele momento, era muito interessante ouvir aquela realidade e falar de cinema do que ficar sabendo o que cada uma delas fez, ou quem ficou com quem.
Os meninos ficavam cada vez mais curiosos sobre o cinema e o "meu namorado" era o que mais queria entrar ao teatro.
Quando vi, já estava na hora, as minhas amigas não voltaram, e o convite de uma delas estava comigo, pensei em levar comigo o meu suposto namorado, mas gelei:
Pensei …ele fala demais, agita demais, não vai ficar em silêncio e além do que, o que os outros vão pensar:?
Já estava frente ao teatro e o meu namorado já flertava uma garotinha burguesa que acompanhava sua mãe. Logo, tentou brincar com a garota, que até respondia a suas travessuras, porém a mãe os afastou.
As portas estavam quase fechando, a minha amiga não voltou. Olhei o "namorado", ele agora brincava com os palhaços de pernas de pau.
Guardei a minha "madre Thereza", junto com o bilhete no meu bolso, que poderia ter dado aquele garoto, e entrei no teatro.
No outro dia vi, na TV, que todos os meninos da praça eram os primeiros da fila, no Rodacine. E por amigos do meio, que eles tentaram entrar no teatro, mas foram barrados no primeiro dia com a desculpa de que haviam de levar um kilo de alimento, apesar da entrada ser franca. Nos dias seguintes, eles passaram todo o tempo que podiam assistindo o Rodacine e a até que conseguiram entrar no teatro, pois já estava ficando constrangedor os barrar, uma vez que a entrada era franca e o cinema para todos.
Após o fim do festival, ouvi que entraram uns oito garotos, todos na primeira fila e diferente do que pensei: todos em silêncio.
Lembrei da minha atitude e suas contradições.
Glória ao cinema para todos, pois durante aqueles dias ou aquelas horas daqueles dias, aquelas crianças e adolescentes deixaram de ser traficantes, prostitutas ou usuárias de drogas, para simplesmente conhecer e apreciar, mais que todos nós, o cinema nacional.
JULHO 2006
Este ano, aconteceu mais um Festival de Vídeo e Mostra de Cinema de Santa Maria, dessa vez no seu quinto ano e lá estava o RodaCine presente mais uma vez.
Este ano, no momento que estive na praça, não vi mais aqueles adolescentes pedintes. Este ano, vi crianças pedindo. Não vi e nem ouvi falar em drogas ou prostituição, mas vi duas meninas pequenas brincando com a produção do festival e pedindo meu caderno e caneta, ao qual em breve usaria numa entrevista, para desenhar.
– Tia, olha essa é você, agora vou desenhar aquele moço! – dizia a criança que buscava atenção.
Elas ainda estavam com o pessoal quando saí.
Este ano, não estive presente todos os dias, mas quando uma criança chegou a mesa para pedir dinheiro, todos se entre olharam e um perguntou:
– para que você quer?
– para comer – respondeu o menino
– Então quando você comprar, volta aqui, queremos ver se comprou mesmo o pastel
Cada um deu alguma moeda e ainda assim faltava para completar a compra. Antes já se falava que às vezes eles pedem, e gastam em drogas ou dão a outros maiores que eles, etc. Ele teria que ir pedir mais em outras mesas.
Era uma criança, e talvez nem tivesse noção do quanto levava. Seu primeiro passo, foi até o moço que vendia o pastel, ele abriu a pequena mãozinha, já acompanhado de uma outra menina, da mesma idade, mostrou o quanto tinha. O moço, creio que penalizado, não se recusou e deu um pastel a ele.
Uma colega, após perceber que o menino realmente tinha fome, foi lá e pagou o restante ao vendedor.
O segundo passo do menino, foi sentar-se na frente da tela da praça, e ao comer, assistir até o final de uma animação.
Bom, esses foram meu momentos na praça este ano. Como disse anteriormente, não estive presente durante todo o festival, mas continuo a perceber que o cinema atinge a todos, e a alguns, talvez, tanto quanto aqueles que realmente o fazem. É lindo demais levar, mesmo que por uma tela, uma outra perspectiva, um outro mundo e quem sabe até porque não, uma nova vida. O que será que poderá ter passado na mente daqueles meninos da primeira fila do teatro e espectadores mais presentes do RodaCine durante o 1º Festival?
Gostaria de poder dizer que o cinema pode ter mudado suas vidas, mas me contento pelo fato deles terem "lutado" para entrarem no teatro e assistirem a mostra competitiva como qualquer outro cidadão.
Lavo a minha consciência de ter guardado o bilhete em 2002. Se tivesse dado, não estariam todos eles pedindo ao invés de esmolas, bilhetes de teatro a quem entrava? Poderia ser até mais bonito dizer que sim, mas prefiro acreditar no que fizeram, ou seja, reclamaram na portaria todos juntos, na administração todos juntos, entraram todos juntos, sentaram todos juntos e sairam todos juntos e para no dia seguinte todos juntos retornarem.
Espero que o Rodacine e os Festivais, continuem sempre levando o cinema e este despertando atitudes, sonhos.