Eu não sentiria falta da pontada do barulho que os morcegos fazem na minha janela. Não sentiria falta daquela peça encrustada de poeira que vejo da mesa da cozinha com a cabeça bêbada escorada no azulejo.
Sinto muita falta do que meus braços já não podem alcançar. Do que me é privado pelo espaço, pelo tempo, pela geografia e pela dimensão. Sinto falta da minha mãe, do meu pai e do meu gato xadrez. Do barulho da rua. Do barulho da minha rua. Da batida da bola murcha no chão, da bolita que sumia entre as folhas. De bater e ser batido no esconde-esconde. Dos cabelos compridos das meninas que cheiravam a creme com suor inocente da corrida do pega-pega. Das conversas intermináveis em volta da quadra.
Dar a volta na quadra quando a gente é pequeno demora.
Quando a gente é pequeno, tudo é grande, comprido, demorado. Os irmãos mais velhos são bem mais velhos, as avós, então, nem se fala. Os muros altos são paredões espartanos. Intransponíveis até que o primeiro descubra a “manha”. Depois a gente sobe, cria aventuras, brinca de “siga o mestre”. Cipó em arvore vira desafio, separa os guris dos guris que merecem respeito na turma.
Quantos carrinhos quebramos em nossas pistas imaginárias feitas de papelão e tijolos? Quantos carrinhos recriamos? Aqueles com rodinhas desproporcionais? Quantos perderam a fricção?
Gostaria de reunir todas as bolas furadas e fazer um mar de lembranças dos tempo em que jogar bola era recreio, era rasgar calça, esfolar joelho, cortar o braço. Fazer gol e imitar o Bebeto e o Romário. Todos éramos Romários e Bebetos. Cada um com seu sonho, suas micagens, suas delícias e malemolências. Seríamos médicos, pilotos de caça, heróis de guerra, jogadores de futebol em copas do mundo.
Hoje, quase não temos direito de fazer castelos de areia na praia, nossos momentos são efêmeros. Hoje, lutamos de verdade com a vida.
Ainda somos filhos, sempre seremos, mas hoje somos pais, tios de verdade e emprestados. Somos por aí. Por lá e por aqui. Caímos às vezes, mas como antes, sempre resta um para ajudar a levantar. Ou dois, ou três.
Hoje somos órfãos num mundo caótico que nos transforma em máquina.
Somos máquina o tempo todo. Nos vemos máquinas, nos falamos máquinas. Ser máquina é o que nos permite viver e nos permite a possibilidade de não sermos máquinas por um dia no máximo.
Perdemos o direito de jogar bolita. O telefone celular é o que nos permite ouvir nossas vozes mesmo que rapidamente para não gastar muito crédito. Se não formos máquinas, a vida nos come, nos consome e ficamos para trás.
Por Rodrigo Ricordi, formando em jornalismo pela Unifra. Crônica produzida na disciplina de Jornalismo Literário, orientada pela professora Sílvia Niederauer.