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Santa Maria, RS, Brazil

Brincar de consumir é coisa séria: veja o que diz a regulamentação

No último dia 20 de novembro foram comemorado os 55 anos da Declaração Universal dos Direitos das Crianças. Poucos dias antes, a publicidade infantil foi escolhida como tema da redação do Enem a partir dessa matéria de autoria das jornalistas Paula Adamo Idoeta e Mariana Della Barba, publicada no site da BBC Brasil em 25 de abril de 2014. Apesar de parecer nova, essa discussão acontece há anos e ainda não existe uma solução concreta, uma vez que a indústria trata as crianças como consumidores e não como cidadãos que são desde a Declaração, em 1959.

De acordo com a Resolução n. 163 da Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente) publicada no Diário Oficial da União em 04 de abril de 2014, “a prática do direcionamento de publicidade e comunicação mercadológica à criança com a intenção de persuadi-la para o consumo de qualquer produto ou serviço” é considerada ilegal perante ao Código de Defesa do Consumidor. A resolução proíbe o direcionamento de anúncios impressos, comerciais televisivos, spots de rádio, banners e sites, embalagens, promoções, merchandising, ações em shows e apresentações e nos pontos de venda ao público infantil.

 

Os abusos na prática da publicidade dos pequenos

Apesar da proibição, centenas de produtos licenciados de todos os personagens imagináveis em produtos que vão de material escolar a roupas de cama, além de brinquedos, estão por aí. Eles aparecem nos anúncios em intervalos comerciais, contrariando todos os aspectos que a Resolução considera abusivos na prática da publicidade infantil, tais como:

  • Linguagem infantil, efeitos especiais e excesso de cores;
  • Trilhas sonoras de músicas infantis ou cantadas por vozes de criança;
  • Representação de criança;
  • Pessoas ou celebridades com apelo ao público infantil;
  • Personagens ou apresentadores infantis;
  • Desenho animado ou de animação;
  • Bonecos ou similares;
  • Promoção com distribuição de prêmios ou brindes colecionáveis ou com apelos ao público infantil;
  • Promoção com competições ou jogos com apelo ao público infantil.

Quase oito meses se passaram desde que a resolução foi oficializada e é notável que pouco ou quase nada tenha mudado na prática. Enquanto a Associação Nacional de Jornais e outras associações reconhecem a legitimidade constitucional da resolução, a Abrinq (Associação Brasileira de Fabricantes de Brinquedos) e a Abral (Associação Brasileira de Licenciamento) são contrárias à essa lei e emitiram em notas distintas que a proibição “tira da criança o acesso à informação” e que “o setor precisa unir forças e atuar conjuntamente para defender nossos interesses”, respectivamente.

O Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária), órgão responsável por policiar a publicidade no país, também se posicionou contra a medida da Conanda, alegando que a pesada decisão do Poder Legislativo é uma ofensa à liberdade de expressão e despreza o direito “que cada família tem de criar seus filhos da maneira que achar correta”. O Conar contraria um dos códigos da própria entidade, que “proíbe o apelo imperativo de consumo infantil e propõe que os anúncios devam refletir cuidados especiais em relação à segurança”.

 

A regulamentação da publicidade infantil pelo mundo

Veja a diferença entre o Brasil e outros catorze países sobre a regulamentação da publicidade infantil:

Créditos: Folha de São Paulo
Ao redor do mudo: a publicidade de alimentos para as crianças. Fonte: Folha de São Palo
  • SUÉCIA
  • Proibida a publicidade televisiva dirigida às crianças menores de 12 anos antes das 21h;
  • INGLATERRA:
  • Proibida a publicidade de alimentos com alto teor de gordura, açúcar e sal dentro  durante a programação televisiva para o público menor de 16 anos;
  • BÉLGICA:
    Proibida a publicidade infantil nas regiões flamencas;
  • ESTADOS UNIDOS:
    Limite de 10 minutos e 30 segundos de publicidade por hora nos finais de semana e de 12 minutos por hora em dias de semana. Proibido o merchandising testemunhal;
  • ALEMANHA:
    Os programas infantis não podem ser interrompidos pela publicidade;
  • CANADÁ:
    Proibida a publicidade de produtos destinados às crianças em programas infantis. Em Quebéc, é proibida qualquer publicidade destinadas às crianças de até 13 anos em qualquer mídia;
  • DINAMARCA:
    Proibida qualquer publicidade durante os programas infantis e, ainda, por 5 minutos antes e depois dos programas;
  • IRLANDA:
    Proibida qualquer publicidade durante programas infantis na televisão aberta;
  • HOLANDA:
    Não é permitido publicidade dirigida às crianças com menos de 12 anos na televisão pública;
  • ÁUSTRIA:
    Proibido qualquer tipo de publicidade nas escolas;
  • ITÁLIA:
    Proibida a publicidade de qualquer produto ou serviço durante desenhos animados;
  • GRÉCIA:
    Proibida a publicidade de brinquedos entre 7h e 22h;
  • PORTUGAL:
    Proibida qualquer tipo de publicidade nas escolas;
  • NORUEGA:
    Proibida qualquer publicidade direcionada à crianças com menos de 12 anos. Proibida qualquer publicidade durante os programas infantis.

 

Presentes para compensar a ausência

Por passarem pouco tempo de qualidade com os filhos, alguns pais preferem fazer a vontade dos pequenos consumidores que, por vezes, ditam as regras de consumo em casa. Os pais não negam o acesso dos filhos a determinados “desejos” e chegam a se endividar. Os presentes não compensam a falta de tempo e ausência dos pais. É o que esclarece a psicóloga Fabiane Bortoluzzi Angelo: “O consumo exagerado não vai em absoluto saldar a necessidade de convívio, apesar de por alguns breves momentos possa essa sensação parecer existir”.

A psicóloga complementa que negar algo e expor os motivos pelos quais a criança não poderá ter acesso à determinado objeto é fundamental para a saúde psíquica e o desenvolvimento infantil. Presentes ganham valor ao invés de significado, muito se perde nesse câmbio irresponsável. Fabiane afirma que é possível ter, mas que é fundamental sabermos porque desejamos e por que podemos ou não ter algo. Esse comportamento é desenvolvido desde a infância e são os adultos que devem ensinar isso às crianças.

Considerando que as crianças brasileiras são as que mais assistem televisão no mundo (cerca de 5 horas e 20 minutos por dia) e que a a propaganda destinada ao público infantil é totalmente desregulada no país, os pequenos são bombardeados com desejos condicionados graças à prática da publicidade abusiva e ilegal.

Ao serem encorajadas pela publicidade abusiva a desejar sem motivo e a consumir, as crianças, ainda incapazes de discernir o precisar do querer, sequer sabem por que querem determinado brinquedo. Lentamente, esse comportamento substitui o natural (e esperado) que é brincar por uma competição acirrada de “quem tem mais” e uma sensação de poder, de sentir-se mais por ter mais, além de colaborar com a adultização, obesidade infantil e desenvolvimento precoce enquanto ainda são muito imaturos. E aí pode morar um perigo importante.

“Quando a inexistência ou ineficiência do brincar se apresenta, o risco de termos alguma dificuldade também se apresenta”, relata Fabiane. Isso acontece porque é brincando que a criança é exposta ao sentimento de frustração, por exemplo. Ela aprende a lidar com isso ao observar outras pessoas, sejam adultos ou outras crianças.

“No momento que uma criança pede exageradamente por algo, não é disso que ela está precisando. Um brinquedo pode faze-la passar algum tempo com ele, o que oferta essa falsa sensação de que todos fizeram sua parte”, explica a psicóloga.

O pediatra e psicanalista D.W. Winnicott, em seu vasto estudo sobre o brincar, aponta que um brinquedo em si não faz uma criança , de fato, brincar. O brinquedo é pensar e ter um desejo realizado enquanto o brincar é responsável pelo processo criativo, incentivando o desenvolvimento do pensar, conhecer e aprender.

“É imprescindível analisar e exercitar a sensibilidade e o cuidado para com nossas crianças. Elas precisam e dependem de nós, adultos, para terem um desenvolvimento esperado e se tornarem adultos capazes de cuidar, amar e educar outras crianças”, encerra a psicóloga, relembrando algo que jamais deveria ser esquecido. A boa notícia é que existe uma maneira de amenizar essa situação.

Para assistir ao documentário “Criança, a alma do negócio”, clique aqui.

Leia mais: Parte II – A brincadeira deve recomeçar

 

Por Bibiana Campos, para a disciplina de Jornalismo Online

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No último dia 20 de novembro foram comemorado os 55 anos da Declaração Universal dos Direitos das Crianças. Poucos dias antes, a publicidade infantil foi escolhida como tema da redação do Enem a partir dessa matéria de autoria das jornalistas Paula Adamo Idoeta e Mariana Della Barba, publicada no site da BBC Brasil em 25 de abril de 2014. Apesar de parecer nova, essa discussão acontece há anos e ainda não existe uma solução concreta, uma vez que a indústria trata as crianças como consumidores e não como cidadãos que são desde a Declaração, em 1959.

De acordo com a Resolução n. 163 da Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente) publicada no Diário Oficial da União em 04 de abril de 2014, “a prática do direcionamento de publicidade e comunicação mercadológica à criança com a intenção de persuadi-la para o consumo de qualquer produto ou serviço” é considerada ilegal perante ao Código de Defesa do Consumidor. A resolução proíbe o direcionamento de anúncios impressos, comerciais televisivos, spots de rádio, banners e sites, embalagens, promoções, merchandising, ações em shows e apresentações e nos pontos de venda ao público infantil.

 

Os abusos na prática da publicidade dos pequenos

Apesar da proibição, centenas de produtos licenciados de todos os personagens imagináveis em produtos que vão de material escolar a roupas de cama, além de brinquedos, estão por aí. Eles aparecem nos anúncios em intervalos comerciais, contrariando todos os aspectos que a Resolução considera abusivos na prática da publicidade infantil, tais como:

  • Linguagem infantil, efeitos especiais e excesso de cores;
  • Trilhas sonoras de músicas infantis ou cantadas por vozes de criança;
  • Representação de criança;
  • Pessoas ou celebridades com apelo ao público infantil;
  • Personagens ou apresentadores infantis;
  • Desenho animado ou de animação;
  • Bonecos ou similares;
  • Promoção com distribuição de prêmios ou brindes colecionáveis ou com apelos ao público infantil;
  • Promoção com competições ou jogos com apelo ao público infantil.

Quase oito meses se passaram desde que a resolução foi oficializada e é notável que pouco ou quase nada tenha mudado na prática. Enquanto a Associação Nacional de Jornais e outras associações reconhecem a legitimidade constitucional da resolução, a Abrinq (Associação Brasileira de Fabricantes de Brinquedos) e a Abral (Associação Brasileira de Licenciamento) são contrárias à essa lei e emitiram em notas distintas que a proibição “tira da criança o acesso à informação” e que “o setor precisa unir forças e atuar conjuntamente para defender nossos interesses”, respectivamente.

O Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária), órgão responsável por policiar a publicidade no país, também se posicionou contra a medida da Conanda, alegando que a pesada decisão do Poder Legislativo é uma ofensa à liberdade de expressão e despreza o direito “que cada família tem de criar seus filhos da maneira que achar correta”. O Conar contraria um dos códigos da própria entidade, que “proíbe o apelo imperativo de consumo infantil e propõe que os anúncios devam refletir cuidados especiais em relação à segurança”.

 

A regulamentação da publicidade infantil pelo mundo

Veja a diferença entre o Brasil e outros catorze países sobre a regulamentação da publicidade infantil:

Créditos: Folha de São Paulo
Ao redor do mudo: a publicidade de alimentos para as crianças. Fonte: Folha de São Palo
  • SUÉCIA
  • Proibida a publicidade televisiva dirigida às crianças menores de 12 anos antes das 21h;
  • INGLATERRA:
  • Proibida a publicidade de alimentos com alto teor de gordura, açúcar e sal dentro  durante a programação televisiva para o público menor de 16 anos;
  • BÉLGICA:
    Proibida a publicidade infantil nas regiões flamencas;
  • ESTADOS UNIDOS:
    Limite de 10 minutos e 30 segundos de publicidade por hora nos finais de semana e de 12 minutos por hora em dias de semana. Proibido o merchandising testemunhal;
  • ALEMANHA:
    Os programas infantis não podem ser interrompidos pela publicidade;
  • CANADÁ:
    Proibida a publicidade de produtos destinados às crianças em programas infantis. Em Quebéc, é proibida qualquer publicidade destinadas às crianças de até 13 anos em qualquer mídia;
  • DINAMARCA:
    Proibida qualquer publicidade durante os programas infantis e, ainda, por 5 minutos antes e depois dos programas;
  • IRLANDA:
    Proibida qualquer publicidade durante programas infantis na televisão aberta;
  • HOLANDA:
    Não é permitido publicidade dirigida às crianças com menos de 12 anos na televisão pública;
  • ÁUSTRIA:
    Proibido qualquer tipo de publicidade nas escolas;
  • ITÁLIA:
    Proibida a publicidade de qualquer produto ou serviço durante desenhos animados;
  • GRÉCIA:
    Proibida a publicidade de brinquedos entre 7h e 22h;
  • PORTUGAL:
    Proibida qualquer tipo de publicidade nas escolas;
  • NORUEGA:
    Proibida qualquer publicidade direcionada à crianças com menos de 12 anos. Proibida qualquer publicidade durante os programas infantis.

 

Presentes para compensar a ausência

Por passarem pouco tempo de qualidade com os filhos, alguns pais preferem fazer a vontade dos pequenos consumidores que, por vezes, ditam as regras de consumo em casa. Os pais não negam o acesso dos filhos a determinados “desejos” e chegam a se endividar. Os presentes não compensam a falta de tempo e ausência dos pais. É o que esclarece a psicóloga Fabiane Bortoluzzi Angelo: “O consumo exagerado não vai em absoluto saldar a necessidade de convívio, apesar de por alguns breves momentos possa essa sensação parecer existir”.

A psicóloga complementa que negar algo e expor os motivos pelos quais a criança não poderá ter acesso à determinado objeto é fundamental para a saúde psíquica e o desenvolvimento infantil. Presentes ganham valor ao invés de significado, muito se perde nesse câmbio irresponsável. Fabiane afirma que é possível ter, mas que é fundamental sabermos porque desejamos e por que podemos ou não ter algo. Esse comportamento é desenvolvido desde a infância e são os adultos que devem ensinar isso às crianças.

Considerando que as crianças brasileiras são as que mais assistem televisão no mundo (cerca de 5 horas e 20 minutos por dia) e que a a propaganda destinada ao público infantil é totalmente desregulada no país, os pequenos são bombardeados com desejos condicionados graças à prática da publicidade abusiva e ilegal.

Ao serem encorajadas pela publicidade abusiva a desejar sem motivo e a consumir, as crianças, ainda incapazes de discernir o precisar do querer, sequer sabem por que querem determinado brinquedo. Lentamente, esse comportamento substitui o natural (e esperado) que é brincar por uma competição acirrada de “quem tem mais” e uma sensação de poder, de sentir-se mais por ter mais, além de colaborar com a adultização, obesidade infantil e desenvolvimento precoce enquanto ainda são muito imaturos. E aí pode morar um perigo importante.

“Quando a inexistência ou ineficiência do brincar se apresenta, o risco de termos alguma dificuldade também se apresenta”, relata Fabiane. Isso acontece porque é brincando que a criança é exposta ao sentimento de frustração, por exemplo. Ela aprende a lidar com isso ao observar outras pessoas, sejam adultos ou outras crianças.

“No momento que uma criança pede exageradamente por algo, não é disso que ela está precisando. Um brinquedo pode faze-la passar algum tempo com ele, o que oferta essa falsa sensação de que todos fizeram sua parte”, explica a psicóloga.

O pediatra e psicanalista D.W. Winnicott, em seu vasto estudo sobre o brincar, aponta que um brinquedo em si não faz uma criança , de fato, brincar. O brinquedo é pensar e ter um desejo realizado enquanto o brincar é responsável pelo processo criativo, incentivando o desenvolvimento do pensar, conhecer e aprender.

“É imprescindível analisar e exercitar a sensibilidade e o cuidado para com nossas crianças. Elas precisam e dependem de nós, adultos, para terem um desenvolvimento esperado e se tornarem adultos capazes de cuidar, amar e educar outras crianças”, encerra a psicóloga, relembrando algo que jamais deveria ser esquecido. A boa notícia é que existe uma maneira de amenizar essa situação.

Para assistir ao documentário “Criança, a alma do negócio”, clique aqui.

Leia mais: Parte II – A brincadeira deve recomeçar

 

Por Bibiana Campos, para a disciplina de Jornalismo Online