“A receita era sempre a mesma. Predsin, Ibuprofeno, Clavulin 500, Awamys e Busonid. Com o tempo já não precisava levar minha filha à consulta, pois já sabia exatamente o que a pediatra receitaria e a dose do remédio a administrar nela”, conta a professora Joana*, mãe de Alice* de 14 anos. A professora relata que já estava desanimada porque o tempo entre as doses de antibióticos que administrava na filha eram muito curtos até que, ao conversar com outras mães, constatou que passavam pela mesma situação. “Eram sacolas de remédios caros a cada consulta. O pior é que as crianças nunca melhoravam. Tinham de tomar antialérgicos por 6 meses seguidos, além dos antibióticos e corticoides”, desabafa.
Numa tarde, na sala de espera para consulta, ouviu uma conversa entre duas mães entusiasmadíssimas por estarem no consultório de uma das melhores pneumopediatras da América do Sul, premiada por um determinado laboratório. Naquele instante, Joana ficou desconfiada do vínculo entre a médica e o laboratório e resolveu adotar outro método para o tratamento da filha. “Na época, minha filha tinha 6 anos e já estava diagnosticada como asmática e dependente da “bombinha” por muito tempo. Resolvi colocá-la na natação, mudar hábitos alimentares e tirar tapetes, cortinas, bichos de pelúcia, perfumes e qualquer outra coisa que desencadeasse alergia respiratória nela. Assim, os remédios foram abolidos da nossa lista de compras”, relata.
Não há como afirmar que todos os médicos receitam muito remédio só pelo interesse da premiação do laboratório, mas é evidente que alguns estão empenhados em tratar o sintoma a longo (ou a todo o prazo) do que curar os pacientes. Será que há um controle de situações como essas? Até onde, esta relação entre médicos, representantes e farmácia, em busca de lucros e benefícios, pode ser prejudicial aos pacientes?
Dos representantes de medicamentos
O representante de medicamentos César* diz que a distribuidora de laboratório nada mais é do que uma revendedora dos produtos de uma indústria. Ele explica que a distribuidora compra do laboratório e revende nas farmácias. “Eu chego na farmácia e mostro todo o portfólio da empresa para a qual trabalho, exponho os diversos preços e dou opção entre ético, genérico e similar”, conta. Fialho explica que os representantes de laboratórios são chamados propagandistas que vão até o cliente (médico) apresentam sua linha e oferecem uma espécie de propina para aquele médico receitar a medicação. “No mercado funciona assim: Quando o médico dá uma receita, ele tem que prescrever o nome ético do remédio. Embora exista a possibilidade do genérico, o médico “obriga” o paciente comprar o ético, alegando que só assim o efeito é garantido. Já na farmácia, o vendedor diz que tem que ser “daquele” laboratório. Assim, o paciente gasta R$ 50 em um medicamento que poderia custar bem menos”, declara.
O representante compara a um estelionato o fato do médico dizer ao paciente que ele não pode trocar o remédio ético pelo genérico e afirma que o certo é não trocar o ético por um similar. Ele conta que as pessoas, por serem desinformadas, acabam gastando bem mais. “Neste contexto os médicos recebem cursos, viagem para o exterior, cruzeiros, notebooks, televisões e similares”, afirma.
E o paciente?
“Já fui repreendida por um médico por ter comprado o remédio em outra farmácia e não a que ele indicou”, conta a telefonista Vanessa Nunes. Ela, que faz uso de medicação contínua para esclerose múltipla e acompanha um tumor, diz que se acha vítima desse sistema. “Às vezes me ligam do laboratório para saber quem me receitou o remédio. Além disso, não me oferecem a opção de genérico”, indigna-se. Como mãe, Vanessa também passa por indignações nesse sistema, o qual ela chama de rede: “Minha filha trata dermatite e a médica diz que não tem cura. Hoje em dia nada tem cura. É remédio e mais remédio. Tudo tem que tratar para sempre, seja um câncer ou uma alergia.” Ela ainda desabafa que acaba comprando os remédios porque nenhuma mãe quer arriscar com a saúde dos filhos.
E as farmácias?
“O controle das farmácias é outra peculiaridade deste mercado. Não podemos esquecer que estamos falando de negócios. Os donos das farmácias são empreendedores”, elucida o representante de medicamento César. Ele explica que, como em todo negócio, a farmácia quer comprar mais barato e vender mais caro. “Neste mercado existe o PMC (Preço Maior ao Consumidor). Se o PMC de um remédio for R$ 20, a farmácia pode doar este medicamento ou vender entre R$ 1 e R$ 20. Então, o que eles fazem? Aproveitam as melhores ofertas, que nós representantes lhes oferecemos, e vendem pelo preço que quiserem”, declara. Fialho afirma, ainda, que nestes casos, muitas vezes impostos são sonegados e taxas são ludibriadas.
“Existem os produtos negociados onde os atendentes ganham uma porcentagem por venderem, mas isso está relacionado com o setor de compras e o laboratório”, conta. Mas a farmacêutica lembra que em algumas farmácias, principalmente as de bairros, a prática de “premiação” por vendas é constante, inclusive, com campanhas internas de vendas em troca de brindes, prêmios e dinheiro. “Tem atendentes que são capazes de enganar o cliente para conseguir fazer a venda do produto”, afirma.A farmacêutica Aline Moraes trabalha há três anos em uma rede de farmácias em Florianópolis (SC), que tem sua matriz em Caxias do Sul (RS).
Ela conta que no seu local de trabalho, a visita do representante é para ver como está o estoque dos produtos, o local em que ele está localizado e explicar a como funcionam novos produtos. Os funcionários são proibidos de receber amostras grátis diretamente dos representantes, mas ela conta que através de um “acerto” com o setor de compras, em alguns momentos é autorizada a realização de coffe breaks, onde é feita a divulgação dos produtos e são distribuídos brindes, como canetas e blocos de notas.
Na rede em que trabalha, Aline conta que não há nenhuma ligação direta com os médicos, mas ela relata que recebem várias receitas com um produto de referência prescritos e carimbado, deixando claro que a troca por outro medicamento não é permitida. “Tem muitos médicos que prescrevem os produtos que os laboratórios fazem propaganda e pagam para eles indicarem. É ruim para o cliente que fica impossibilitado de comprar um medicamente com a mesma substância, porém mais barato”.
Ainda sobre as indicações dos médicos, ela conta que na farmácia em que ela trabalha não é feita cópia da receita nem anotado o nome do profissional que receitou, mas tem conhecimento que em outros estabelecimentos, colegas adotam estas estratégias para facilitar o trabalho do representante. “Daí ele (o representante) pode ver se o médico que ele visita está prescrevendo o medicamento para, assim, retribuir com brindes, viagens e prêmios”, relata Aline.
Para a atendente de farmácia Ana*, a obrigatoriedade da receita do antibiótico nada mais é para controlar a quantidade de vendas de determinado produto. Ela conta que na ocasião dos balanços da farmácia, eles recolhem todas as receitas do mês para ver o que vendeu mais. “Na farmácia quem manda é a marca do laboratório. O que vendeu mais, beneficia a empresa com méritos e até mesmo dinheiro”, conta.
Ana relata que os representantes de laboratórios vão até a farmácia e oferecem benefícios ao gerente que passa para os atendentes a missão de persuadir o cliente a comprar determinada marca. “Tínhamos um mural com as marcas para visualizar os mais vendidos. Além disso, nome por nome dos clientes e dos médicos eram controlados no sistema, com a finalidade de cumprir as metas”, enfatiza. Ela alerta que os grandes beneficiados nisto tudo são os donos dos laboratórios e que os pacientes devem se informar mais.
O pneumologista Airton Schneider Filho nunca ficou condicionado a nenhum laboratório. “Há rumores de que este tipo de abordagem aconteça, mas o máximo que recebi foi convite para jantares de lançamento de medicações”, conta. Segundo o médico, na área dele há um consenso quanto ao receituário. “Recomendamos o remédio conforme nossa experiência de efeitos nos pacientes. O máximo que acontece é, o paciente chegar na farmácia e esta sugerir outra medicação. Isso é ruim. Portanto, tenho o costume de proibir na receita qualquer substituição daquele remédio”, enfatiza.
Schneider afirma ainda que, embora existam interesses comerciais das empresas farmacêuticas, ainda há farmácias sérias que não se submetem ao sistema do lucro acima de tudo. “Sabemos que as farmácias ganham mais com os genéricos, mas nem todas induzem à troca de medicação. Farmácia séria não faz isso”, conclui.
[dropshadowbox align=”none” effect=”lifted-both” width=”600px” height=”” background_color=”#ffffff” border_width=”1″ border_color=”#dddddd” ]Como acontece o “negócio”, conforme as palavras do representante:
1º: O propagandista divulga a mercadoria. Sua obrigação é fazer com que o médico receite o seu produto. Neste caso, quanto mais vezes, melhor para o médico.
2º: O médico deve colocar no receituário a marca, o laboratório e enfatizar o uso do ético. Conforme seu ‘desempenho’, pode ganhar viagens e outros prêmios.
3º: A farmácia deve comprar os remédios pelo preço mais barato possível, se quiser ter lucro. Além disso, guarda os receituários para controlar no sistema da empresa o ranking de vendas.
4º: O paciente, que deveria se informar melhor antes de correr para a farmácia, chega com a receita e descobre que não deve comprar o genérico, muito menos o similar.[/dropshadowbox]
Fica a dica:
A maioria das pessoas vai às farmácias em situação de medo, dor ou desespero. Neste caso, não dá tempo para contestar ou pesquisar preços e opções de medicamentos. Vale aproveitar os dias de saúde para se informar a respeito de medicações contínuas, contraindicações e também cuidar melhor da saúde com medidas preventivas, como exercícios físicos e boa alimentação. Além disso, sempre procure um médico ou farmacêutico de sua confiança.
*Nomes fictícios para manter o sigilo das fontes
Por Luisa Neves e Priscila Martini, reportagem produzida para a disciplina de Jornalismo Especializado II.