O país mais transfóbico do mundo. Esse foi o título que o Brasil recebeu no ano passado, após 144 travestis e transexuais serem assassinados. Os dados assustadores de 2016 levaram o País ao primeiro lugar, num ranking elaborado pela rede europeia Transgender Europe (TGEU). Porém, esses números alarmantes não param de subir. Segundo a Rede Trans Brasil – que realiza coleta de dados através de notícias e relatos que chegam a organização -, até outubro de 2017, 171 travestis e transexuais já foram assassinados no país, batendo o recorde do ano que passou.
O Brasil, novamente, se colocará num infeliz destaque. De acordo com uma projeção realizada pela equipe de reportagem, apoiada nos dados já registrados até outubro de 2017 pela Rede Trans Brasil, podemos encerrar o ano com cerca de 200 vítimas da transfobia. Os números só comprovam a onda conservadora que assola o país e a falta de políticas públicas destinadas para essa parcela da população. Em fevereiro deste ano, o caso da travesti Dandara chocou o país. Morta brutalmente por um grupo de jovens no Ceará, o vídeo de Dandara sendo assassinada a chutes e pauladas ganhou repercussão na internet.
Vulneráveis, o risco de travestis e transexuais serem assassinados é 14 vezes maior do que um homem gay. Seja por um ato físico ou verbal, a transfobia marca vidas. Essas ações transfóbicas não estão presentes só na rua, mas também em instituições públicas, sejam universidades, delegacias policiais e hospitais. Locais que deveriam acolher essas pessoas, acabam por não terem profissionais capacitados para essa população. A violência institucional está presente no cotidianos desse grupo.
VIOLÊNCIA NOS SERVIÇOS DE SAÚDE
Uma vida de negação de direitos. Assim é a trajetória de travestis e transexuais no Brasil. Além do grande números de assassinatos, agressões físicas e verbais, relatos de violências também se fazem presentes no dia-a-dia dessa população. Nos hospitais, a omissão de socorro e o desrespeito ao nome social são as declarações mais frequentes entre travestis e transexuais.
Os relatos espalham-se pelo Brasil. Em março deste ano, a assessora parlamentar Barbara Reis foi até um hospital público na cidade de Rio de Janeiro, para uma ressonância magnética dos seios, que receberam próteses de silicone. Ao ser chamada para a consulta pela médica residente, Barbara ouviu seu nome de batismo, mesmo apresentando a carteira de nome social.
“O fato de tu não respeitar o nome social, o nome que aquela pessoa escolheu, pra mim, já é transfobia. E temos um problema bem sério com os hospitais. Eles respeitam o que está nas certidão de nascimento e não como a pessoa se identifica. Esse é o grande problema que a gente tem” (Bruna de Nicol Brum, enfermeira residente em saúde mental)
Para Guilherme Dias, o que seria uma consulta de rotina na ginecologista, para um exame papanicolau, acabou em trauma. Ao explicar que era um homem trans e que iniciaria um tratamento hormonal, o carioca foi violentado pela médica após despir-se. “Ela disse que se eu era homem, deveria fazer outro exame”, conta Dias, fazendo referência ao exame de próstata.
Já em Canela, no Rio Grande do Sul, no mês de novembro, um hospital foi condenado a pagar R$ 30 mil por negar atendimento a uma travesti. Após passar mal, a travesti e seu companheiro foram até o Hospital de Caridade de Canela. Ao solicitarem atendimento, uma enfermeira se escandalizou com as roupas ditas femininas que a travesti usava e omitiu socorro, ameaçando chamar o segurança. O caso aconteceu em 2011. Após o incidente, a travesti levou o caso à justiça e o hospital reconheceu o episódio como um “ato falho” da funcionária.
No ano passado, imprensa e redes sociais divulgaram 54 casos de violação dos direitos humanos. O estado de São Paulo aparece em primeiro lugar, com 21 notificações de descumprimento dos direitos humanos. Conforme dados obtidos pelo site UOL via Lei de Acesso a Informação, o paciente não tem à disposição nenhuma ferramenta de verificação para saber se o médico que presta serviço já sofreu punição. Mesmo que o Conselho Federal de Medicina (CFM) não proteja os profissionais, após denúncias, pode levar anos para o caso ser julgado. Contudo, quando há punição, são eles os únicos com pena perpétua, como, por exemplo, cassação do registro profissional.
O direito à saúde não permite que hospitais recusem atendimento a uma pessoa, sob nenhuma justificativa. Porém, a falta de capacitação profissional pode ser considerada é um dos principais fatores para que atos transfóbicos ocorram no sistema público de saúde. “Desde a escolarização básica, a gente não tem uma educação voltada a aceitar as pessoas na sua diversidade. Está tudo errado por aí. Na graduação isso só continua, pelo fato de não termos em todos os cursos – ou, pelo menos, nos cursos de humanas e saúde – uma disciplina de gênero e sexualidade”, frisa Bruna de Nicol Brum, Enfermeira Residente em Saúde Mental pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
Segundo Bruna, o Plano de Ação Prioritário na Igualdade de Gênero 2008-2013, da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), prevê que haja uma educação permanente de profissionais da saúde em relação gênero e sexualidade. “Os estudos de gênero são muito recentes. O que se veem são ações pontuais, mas nada de uma política ou de grandes programas que possam abordar essas questões”, destaca a estudante.
A também Enfermeira Residente em Saúde Mental (UFSM), Patrícia Mattos Almeida, reforça a falta de capacitação de profissionais em Santa Maria. Patrícia fala da falta de serviços para atender essa população. “Ano passado (2016), nós tivemos uma capacitação, mas não foi para trabalhar com a transexualidade, e, sim, para falar sobre a LGBTfobia, onde discutimos as formas de acesso. Muitas vezes transexuais sofrem violência nos serviços onde são recebidos. É uma discussão que tem que ser aberta e levado a tona”.
Quando se trata de gênero e sexualidade, ainda há uma série de tabus para a sociedade. Nos últimos meses, a mídia abriu espaço para a problematização da transexualidade. A telenovela A Força do Querer, da Rede Globo, trouxe o processo de descoberta, aceitação e transformação corporal de Ivan – um garoto trans. Patrícia cita a importância de a transexualidade ser dialogada em todos os espaços, e a necessidade de políticas públicas voltadas a essa minoria. “O assunto só vai vir quando tiver uma coordenação da política das minorias no município. Essa coordenação se responsabilizará por organizar as capacitações, educação permanente em saúde que traga o viés do gênero, e que não seja só cis-gênero, para trabalhar só com mulheres, mas para trabalhar com toda a população”.
TRANSEXUAIS E O ACESSO À SAÚDE
O acesso de travestis e transexuais a hospitais, muitas vezes gera preconceito e discriminação, devido à falta de capacitação de profissionais. Uma atenção voltada a essa população no Brasil ainda é recente e precária. Até 1997, a cirurgia de redesignação sexual (adequação dos genitais ao gênero com o qual a pessoa se identifica) era proibida no País. O processo de transformação corporal, que engloba as cirurgias de redesignação sexual, a plástica mamária reconstrutiva (incluindo próteses de silicone) e mastectomia (retirada de mama), só começou a ser ofertado pelo SUS em 2008.
Atualmente, o Brasil possui apenas nove centros ambulatoriais pelo SUS, que realizam o processo transexualizador. Ele inclui a hormonioterapia e as cirurgias, entre elas a de redesignação sexual, que não é realizada em todos os ambulatórios, pois muitos apenas realizam a parte da hormonioterapia. No Rio Grande do Sul, apenas o Hospital de Clínicas de Porto Alegre realiza esses processos.
O processo de redesignação sexual ainda é muito burocrático. Um protocolo transexualizador é feito para homens e mulheres trans, para que a cirurgia seja realizada, conta Bruna. “Eles precisam passar por dois anos de terapia psiquiátrica, além de endocrinologista, psicólogo, e assistente social, para receberem um laudo, que vai atestar que estão aptos a fazer essa cirurgia”, acrescenta a enfermeira.
Desde que as medidas foram estabelecidas em 2008, a expansão da rede acontece de forma muito lenta para a demanda existente. Em 2013, foi criado a Política Nacional de Saúde LGBT, que reconhece as demandas dessa população em condição de vulnerabilidade. A inclusão de políticas voltadas para a população trans no SUS foi celebrada pelos movimentos organizados, que sempre defenderam o atendimento a essa parcela da sociedade como uma questão de direitos humanos. Porém, os relatos de transfobia no sistema de saúde confirmam que entre o que está escrito e o que se tornou realidade, há um grande abismo.
” Já ouvi inúmeros casos, como na capacitação que nós tivemos com a Verônica. Ela relatou que as meninas sofreram algum tipo de violência durante o trabalho, à noite, e buscaram serviços de emergência e tiveram um tratamento preconceituoso” (Patrícia Mattos Almeida)
Outra demanda recorrente do movimento trans, e que causa muitos constrangimentos, é o tratamento do nome social nesses ambientes. Apesar de ser um direito garantido na Carta de Direitos dos Usuários do SUS desde 2009, muitas pessoas trans ainda têm dificuldade de ser identificadas corretamente. “Desde 2013, já é possível registrar o nome social no sistema eletrônico. Ainda assim, os profissionais da saúde não estão capacitados para atender a população. As pessoas têm esse estigma: ‘como chama’, ‘é homem?’, ‘é mulher?’, ‘como eu trato?’”, conta Bruna sobre o sistema de saúde da cidade.
DESPATOLOGIZAÇÃO TRANS
Em 1997, o Conselho Federal de Medicina autorizou as chamadas cirurgias de transgenitalização. A partir de 2008, o Sistema Único de Saúde passou a oferecer serviços para o processo de transição, as chamadas tecnologias biomédicas.
Contudo, para o acesso a tratamento hormonal e cirurgias corporais, o Conselho Federal de Medicina considera pessoas transexuais como portadoras de transtornos psicológicos permanentes de identidade sexual. Além disso, conforme portaria em vigência do Ministério da Saúde, profissionais da psicologia devem fornecer laudos à equipe de atenção especializada no processo transexualizador e terapia compulsória por dois anos.
O Conselho Federal de Psicologia (CFP) já divulgou nota, na qual afirma que “a transexualidade e a travestilidade não constituem condições psicopatológicas“. Em 2015, o Órgão lançou a Campanha para Despatologização das Transexualidades e Travestilidades. No vídeo, profissionais psicólogos abordam que a transexualidade e a travestilidade não constituem nenhum tipo de transtorno do ponto de vista psíquico.
A relação entre transexuliadade e saúde mental reforça uma ideia errônea, em que condiciona pessoas trans a doentes em âmbito mundial. A Classificação Internacional das Doenças (CID), estabelecida pela Organização Mundial da Saúde, apresenta a transexualidade como transtorno de identidade de gênero; já o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) aponta a transexualidade como disforia de gênero. Essas terminologias apoiam a concepção de transexualidade como patologia.
Um fato que pode denunciar essa relação ainda feita entre transexualidade e patologia no sistema público ocorreu durante a produção desta reportagem. Ao procurar a Secretaria de Saúde, a produção foi encaminhada à Coordenação de Saúde Mental do Município. Entretanto, Bruna e Patrícia, enfermeiras residentes em saúde mental, reafirmaram o posicionamento do CFP. “Não é legal vincular saúde mental a política das minorias, por que corrobora que isso seja uma patologia, o que na verdade não é. Mas uma questão de gênero, uma orientação sexual, pessoal e individual de cada um. Não é o que os estudiosos e as pessoas que trabalham na área da saúde preconizam”, declara Patrícia.
“É bem complicado. Eu tenho, hoje, dois internados.Uma menina que internei em São Francisco de Assis, saiu daqui e perguntou ‘Posso levar minhas maquiagens? Minhas roupas? Minhas coisas?’. Aí eu comuniquei o hospital, como que eu estava internando ela em uma unidade masculina se iria levar vestidos. Então lá a gente teve sérios problemas. Tivemos que pedir alta administrativa, porque foi muito complicado” (Elieze Santos Machado, enfermeira)
Patrícia chama a atenção ainda para a associação entre transexualidade a Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs). Essa preocupação deve-se, por exemplo, ao fato de que a 16º Parada Livre da Região Centro foi realizada por meio da verba destinada a Políticas ligadas ao HIV. “Nós não podemos concordar com essas coisas, com essas patologias, ou então que essa população está vinculada ao HIV”, frisa a enfermeira.
A Parada Livre da Região Centro foi produzida com verbas ligadas ao HIV por não ter nenhum incentivo por parte de outras instituições e programas. “O que a gente tem são ações pontuais em algumas políticas, por exemplo a política do HIV, que recebe uma verba do Ministério da Saúde para realizar estratégias de redução de danos. A verba anual do Ministério da Saúde é utilizada para fazer essas estratégias e também para a promoção da parada livre do município. O que a gente ainda precisa mesmo é que seja criada uma política LGBT ou alguém que cuidasse das políticas de equidades no município. Que pudesse ter estratégias, programas definidos”, destaca Bruna.
A sociedade passa por um importante momento de visibilidade e representatividade LGBT, mas ainda há um longo caminho a percorrer. E esse caminho deve ser percorrido com muito diálogo, para assim desconstruir ideias preconceituosas, lutar contra a violência, garantir direitos, igualdade e, acima de tudo, respeito.
https://www.facebook.com/projetotransformarsm/videos/134255107135410/
[dropshadowbox align=”none” effect=”lifted-both” width=”auto” height=”” background_color=”#ffffff” border_width=”1″ border_color=”#dddddd” ]Vídeo: Projeto Transformar (desenvolvido por estudantes de Publicidade e Propaganda do Centro Universitário Franciscano)[/dropshadowbox]
Por Deivid Pazatto, Emily Costa, Paola Saldanha, para a disciplina de Jornalismo Investigativo, no segundo semestre de 2017, sob a orientação da professora Carla Torres.