Santa Maria, RS (ver mais >>)

Santa Maria, RS, Brazil

Discoteca da Memória: entre a beleza e o caos

A ideia original desta coluna era seguir uma ordem cronológica já estabelecida por mim, envolvendo 120 discos. Percebi que isso iria demorar muito, e a missão foi abortada. Esta será a última coluna a seguir este padrão. Na próxima, dividirei discos por temática, sonoridade ou algo em comum. Até porque fica mais interessante assim.

Love – Forever Changes (1967)

 Sublime. Esta é a melhor palavra que define Forever Changes. O terceiro disco do Love marca uma mudança de ares na banda. Suas raízes num rock and roll mais garageiro, sujo, mas ainda sim altamente melódico, dão espaço a um som acústico e elaborado. Na época, Arthur Lee, o líder e figura estranha do grupo, achava que ia morrer. Decidiu então gravar sua obra-prima. O clima de morbidez, e de beleza também, típicos dos anos 60, permeiam o disco. As letras de Lee são confusas, e muitas vezes não dizem nada. São fatias de fluxo de consciência, um método dos mais interessantes em que o autor busca transcorrer seus pensamentos no papel. Compôs nove das onze faixas do disco. As duas restantes são de autoria de Bryan McLean, um desses heróis esquecidos da música popular mundial. Aliás, é ele responsável pelo maior hit do Love, Alone Again Or. Suas letras diferem das de Lee pelo caráter mais padronizado. Seguem um pensamento. Enquanto à música, é um verdadeiro esplendor. A eletricidade foi substituída pelo luxo dos violões e arranjos de cordas e metais. Há alguns toques de guitarra aqui e ali. Solos bastante ácidos, agressivos. Uma atmosfera de leve desespero. A maior inovação foi o uso dos arranjos orquestrais. Casam perfeitamente com as melodias e arranjos dos instrumentos mais básicos. Geralmente o uso de cordas e metais em canções populares não agradam muitos ouvidos. Muitos acreditam que suaviza demais o som, ou o torna muito radiofônico ou apelativo. Na pior das hipóteses, barato demais. Há uma meia verdade nisso. Não aqui. As cordas e metais, esses em alguns casos, não adicionam elementos na fórmula. São parte da fórmula. Personagens em si. Em resumo, um disco suave com momentos de loucura e paranoia. Foi o último disco da formação original do Love, que não estava em seus melhores dias. E o resultado foi seu melhor disco. A desgraça influenciando a arte mais uma vez. Já Lee, só resolveu morrer quatro décadas depois, em 2006. Realmente, um cara estranho.

Destaque: The Red Telephone – A trilha sonora do fim do mundo. Um som sinistro. O título é uma referência ao famoso telefone vermelho, principal linha de contato entre Estados Unidos e União Soviética naqueles tempos de Guerra Fria. A música exala paranoia, confusão e morte por todos os lados. A primeira estrofe já anuncia o horror: ‘‘Sitting on the hillside/Watching all the people die/I’ll feel much better on the other side/I’ll thumb a ride” (Sentado no canto da colina/Observando todo mundo morrer/Me sinto muito melhor do outro lado/Vou dar um passeio). A atmosfera de sonho e pesadelo na harmonia entre melodia e arranjos. A letra desconexa de Lee deixa tudo ainda mais macabro. Ao final, um mantra sombrio que exala a opressão daqueles tempos: ”They’re locking them up today/And throwing away the key/I wonder who it’ll be tomorrow, you or me?” (Eles trancaram os outros hoje/E jogaram fora a chave/Me pergunto de quem será a vez amanhã, você ou eu?). Ou apenas um sinal de loucura. Tudo envolto em uma sequência medonha de acordes no violão. No verso final: ”We’re all normal and we want our freedom” (Somos todos normais e queremos nossa liberdade), com enfase e repetição da palavra freedom por um coro que mais parece ter saído de um limbo na terra dos pesadelos.

Cream – Disraeli Gears (1967)

 Em seu segundo disco o Cream mergulha na psicodelia da época. É o seu melhor trabalho. A perfeita definição de lisergia e melodismo. Aqui o trio mostra que sabe como ninguém fazer canções pegajosas. Não são meros improvisadores. As letras ganham colorações surreais, com bruxas, arco-íris do amor, contos de um bravo Ulisses e mulheres barbudas. A sonoridade caminha por meios luminosos e sombrios. Um blues coberto por música pop e ácido. Tudo muito dorminhoco em meio a uma lagoa em chamas. O maior hit do Cream está aqui, Sunshine of Your Love. Você com certeza já ouviu seu riff histórico em qualquer lugar que se preze. A banda está ainda mais afiada que em sua estreia. As linhas do contrabaixo de Jack Bruce ainda mais melódicas e sua voz cada vez mais forte. Ginger Baker continua com sua batida certeira e controlada. E o melhor timbre de guitarra já gravado por Eric Clapton em toda sua carreira. Algo entre uma faca e uma pista de patinação no gelo. Seus solos mantendo a veia ao vivo de sua natureza improvisadora. Riffs escorregadios e wah-wah’s, muitos wah-wah’s. E de quebra, ainda dá pra dançar tudo isso.

Destaque: World of Pain – Melancolia das cidades mais uma vez. Uma letra que reflete e questiona a dor de nossa existência por meio de imagens de uma árvore solitária sob as finas gotas de chuva londrina. Não vejo outro jeito de descrever a música a não ser como um exército de guitarras patinando no gelo em meio a uma Londres cinzenta coberta em chamas ainda mais chorosas.

The Jimi Hendrix Experience – Axis: Bold as Love (1967)

   Já o segundo disco da Experience soa como uma demo de estúdio, devido à pressa em que foi gravado, para aproveitar o sucesso do disco anterior e lucrar ainda mais o nome de Hendrix. Ainda há um incidente, ao menos é o que conta a lenda, que perturbou nosso herói, quando o próprio esqueceu as fitas master do lado A de Axis em um táxi, e tudo teve que ser feito novamente no sangue, suor e lágrimas. Na verdade, obviamente que utilizaram outros takes aceitáveis, com a habitual junção de overdubs e todo aquele processo de produção musical. Isso não prejudicou o disco em nada, apesar da desaprovação de Hendrix. Esse ar esquelético de estúdio enfatiza ainda mais as composições do guitarrista, seu maior talento ignorado. Hendrix foi um melodista nato, e aqui as baladas estão entre as melhores de sua curta vida. São o ponto alto do disco. Seguindo numa sonoridade mais soul, muito sensível e bonito demais da conta, uma forte influência de Curtis Mayfield. Suas letras também evoluem em lirismo e beleza. Ele era muito influenciado por Bob Dylan. O disco pode soar desorganizado, já que as faixas foram separadas entre rockões e baladas, rockões e baladas, e assim até o fim. Isso quebra o ritmo do disco. Mas aqui até que funciona. Mesmo o resultado final não ter ficado ao seu gosto, Axis também foi o momento em que Hendrix abusou de seu perfeccionismo, passando horas e horas trabalhando em suas composições e produções, muito obcecado por efeitos de estúdio e causando a ira de seu produtor, Chas Chandler, que pediu as contas logo após. No disco seguinte, seu mais famoso, Electric Ladyland, Hendrix assumiria a produção e sua música aumentaria em fatores produtivos.

Destaque: Little Wing – A pérola lapidada de Hendrix. Seu maior tesouro. A melhor introdução da história de todas as introduções musicais, entre o rítmico e o solo. Sua Stratocaster no mais cristalino dos timbres, elaborando uma sequência de acordes cheia de groove e carisma, belíssima e em andamento progressivo, em espiral, acompanhada de simpáticos tilintares de um sininho. Logo após, uma pequena virada de bateria e a melodia entra. Moça bonita, moça bem feita, moça formosa. E o sininho permanece. Há algo de indiano na música, influência recorrente nas melodias de Hendrix. Ao final, um solo que é o paraíso na Terra. Desculpe a repetição. Hendrix nunca mais soou tão sensível desde então. Na letra, visões de pura beleza e surrealismo descrevendo uma mulher enigmática. Quem é esta mulher? Ninguém sabe. Só sei que essa é mais uma canção milagrosa para ouvir, e sentir. A mão chega a tremer!

Blue Cheer – Vincebus Eruptum (1968)

   1968 foi o ano das revoluções. Protestos e sistemas opressores ficaram intensos no mundo inteiro e nosso planeta Terra nunca mais foi o mesmo, com violência e caos reinando em meio aos movimentos jovens nas ruas. Nada melhor então do que começar esse ano tumultuoso com peso. Muito peso! E barulho também. A revolução mais uma vez. Lançado em janeiro, a estreia do Blue Cheer abalou as estruturas da música para sempre. Parece até a própria representação de 1968. Pegue o blues e aumente a potência em tudo, em especial na amperagem, e temos o nascimento do heavy metal. Se o Black Sabbath é o pai do gênero musical, o Blue Cheer então só pode ser o avô. Nem a Jimi Hendrix Experience soou tão frenética e caótica quanto Vincebus Eruptum. Com apenas seis faixas, três autorais e três covers, o trio, ou a mais literal definição de power trio, espanca nossa cara com muito gosto. Mas não se preocupe, não dói nada. O lado primitivo do rock and roll levado ao mais intenso pé da letra. A guitarra de Leigh Stephens gritando riffs cortantes e solos agoniantes, pedindo por misericórdia, o baixo pulsante e a voz aguda quase (eu disse quase) irritante de Dickie Peterson e Paul Whaley espancando a pobre bateria, com batidas primais, quase ”George das selvas” e pratos chiando pelo espaço e tempo. Uma procissão de dores no reino do caos. Tudo ao mesmo tempo expirando musicalidade. Barulho também é música. Após sua estreia, o Blue Cheer, infelizmente, não seguiu a mesma linha e seu som perdeu a força.

Destaque: Parchment Farm – A heresia. Transformar um antigo blues de Bukka White, transformado num jazz faceiro por Mose Allison, em um caminhão nervoso deve ter feito os ouvidos dos mais puristas sangrarem de desgosto. Parchment Farm é o resumo do som do disco. Barulho, barulho e mais barulho. O riff de guitarra harmonizando com a linha de baixo, acrescentando mais raiva. Uma violência sonora de trilha de fundo para uma letra igualmente violenta sobre assassinato. Nada mais apropriado. Ou se você quiser um pouco mais de suavidade, um espetáculo de trovões numa corrida pelo domínio dos céus. No meio da música, uma pausa para acalmar os ânimos. Então, após batidas florestais na bateria, o triunfal retorno à glória. Os pelos da nuca chegam a roçar!

The Velvet Underground – White Light/White Heat (1968)

 Seguimos na onda das revoluções. Como dito na coluna anterior, os três primeiros discos do Velvet inventaram modas. Em seu segundo, já sem a influência de Andy Warhol e a presença de Nico, nossos heróis das ruas aumentam o barulho, distorção, cacofonia e coisas feias. E assim nasce o noise rock. É também um disco feio. Assim como foi o caso de Axis, parece ter sido lançado às pressas. Soa incompleto. Com apenas seis faixas, sentimos a falta de algo a mais. Todas elas diferem uma das outras. É confuso, mas faz sentido. Há uma ligação de sonoridade entre elas. Lou Reed cada vez mais inspirado na podridão e no sinistro. John Cale, em sua última participação na banda, nos presenteia pela primeira vez com sua voz em duas faixas, apresentando seu simpático sotaque galês. Na primeira delas, The Gift, recita um poema dos tempos de faculdade de Lou Reed, um conto macabro contando a trágica história de Waldo Jeffers, um simpático homem com saudades de sua namorada, há milhas de distância. Resolve então se mandar de presente pra ela. Resultado desastroso. Na outra, Lady Godiva’s Operation, canta pacificamente e num tom falado, descrevendo a cirurgia de troca de sexo da lendária figura histórica, enquanto os outros integrantes do grupo simulam com a voz barulhos de brocas e aparelhos cirúrgicos diversos. Também termina em tragédia. Tudo muito calmo, cacofônico, belo e feio. Mas o melhor está por vir…

Destaque: o lado B inteiro – ou para melhor compreensão, as duas últimas faixas. Totalizando mais de 21 minutos, é provavelmente o melhor lado B de um disco na história. O Velvet extrapola ainda mais os limites da música. Em I Heard Her Call My Name, o grupo mergulha num ritmo frenético de batidas robóticas, guitarra rítmica agressiva e Lou Reed soltando rajadas de violência cacofônica em seus solos nos nossos ouvidos, nossa cara e tudo mais. Não escute esse som num fone de ouvido. Quem avisa amigo é. Na letra, vejam só, Lou relata ouvir uma voz estranha o chamando pelo nome. É uma morta. Necrofilia também é arte. E barulho. Muito barulho. Já Sister Ray fecha o álbum com seus 17 minutos de puro caos e pavor, com direito a assassinato, drag queens, sodomia e tudo mais, resumidos num riff ainda mais cortante e num órgão de timbres agudos tão horripilante quanto. A ascensão e glória dos fritadores de cérebro. O ouvido chega a sangrar!

 

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A ideia original desta coluna era seguir uma ordem cronológica já estabelecida por mim, envolvendo 120 discos. Percebi que isso iria demorar muito, e a missão foi abortada. Esta será a última coluna a seguir este padrão. Na próxima, dividirei discos por temática, sonoridade ou algo em comum. Até porque fica mais interessante assim.

Love – Forever Changes (1967)

 Sublime. Esta é a melhor palavra que define Forever Changes. O terceiro disco do Love marca uma mudança de ares na banda. Suas raízes num rock and roll mais garageiro, sujo, mas ainda sim altamente melódico, dão espaço a um som acústico e elaborado. Na época, Arthur Lee, o líder e figura estranha do grupo, achava que ia morrer. Decidiu então gravar sua obra-prima. O clima de morbidez, e de beleza também, típicos dos anos 60, permeiam o disco. As letras de Lee são confusas, e muitas vezes não dizem nada. São fatias de fluxo de consciência, um método dos mais interessantes em que o autor busca transcorrer seus pensamentos no papel. Compôs nove das onze faixas do disco. As duas restantes são de autoria de Bryan McLean, um desses heróis esquecidos da música popular mundial. Aliás, é ele responsável pelo maior hit do Love, Alone Again Or. Suas letras diferem das de Lee pelo caráter mais padronizado. Seguem um pensamento. Enquanto à música, é um verdadeiro esplendor. A eletricidade foi substituída pelo luxo dos violões e arranjos de cordas e metais. Há alguns toques de guitarra aqui e ali. Solos bastante ácidos, agressivos. Uma atmosfera de leve desespero. A maior inovação foi o uso dos arranjos orquestrais. Casam perfeitamente com as melodias e arranjos dos instrumentos mais básicos. Geralmente o uso de cordas e metais em canções populares não agradam muitos ouvidos. Muitos acreditam que suaviza demais o som, ou o torna muito radiofônico ou apelativo. Na pior das hipóteses, barato demais. Há uma meia verdade nisso. Não aqui. As cordas e metais, esses em alguns casos, não adicionam elementos na fórmula. São parte da fórmula. Personagens em si. Em resumo, um disco suave com momentos de loucura e paranoia. Foi o último disco da formação original do Love, que não estava em seus melhores dias. E o resultado foi seu melhor disco. A desgraça influenciando a arte mais uma vez. Já Lee, só resolveu morrer quatro décadas depois, em 2006. Realmente, um cara estranho.

Destaque: The Red Telephone – A trilha sonora do fim do mundo. Um som sinistro. O título é uma referência ao famoso telefone vermelho, principal linha de contato entre Estados Unidos e União Soviética naqueles tempos de Guerra Fria. A música exala paranoia, confusão e morte por todos os lados. A primeira estrofe já anuncia o horror: ‘‘Sitting on the hillside/Watching all the people die/I’ll feel much better on the other side/I’ll thumb a ride” (Sentado no canto da colina/Observando todo mundo morrer/Me sinto muito melhor do outro lado/Vou dar um passeio). A atmosfera de sonho e pesadelo na harmonia entre melodia e arranjos. A letra desconexa de Lee deixa tudo ainda mais macabro. Ao final, um mantra sombrio que exala a opressão daqueles tempos: ”They’re locking them up today/And throwing away the key/I wonder who it’ll be tomorrow, you or me?” (Eles trancaram os outros hoje/E jogaram fora a chave/Me pergunto de quem será a vez amanhã, você ou eu?). Ou apenas um sinal de loucura. Tudo envolto em uma sequência medonha de acordes no violão. No verso final: ”We’re all normal and we want our freedom” (Somos todos normais e queremos nossa liberdade), com enfase e repetição da palavra freedom por um coro que mais parece ter saído de um limbo na terra dos pesadelos.

Cream – Disraeli Gears (1967)

 Em seu segundo disco o Cream mergulha na psicodelia da época. É o seu melhor trabalho. A perfeita definição de lisergia e melodismo. Aqui o trio mostra que sabe como ninguém fazer canções pegajosas. Não são meros improvisadores. As letras ganham colorações surreais, com bruxas, arco-íris do amor, contos de um bravo Ulisses e mulheres barbudas. A sonoridade caminha por meios luminosos e sombrios. Um blues coberto por música pop e ácido. Tudo muito dorminhoco em meio a uma lagoa em chamas. O maior hit do Cream está aqui, Sunshine of Your Love. Você com certeza já ouviu seu riff histórico em qualquer lugar que se preze. A banda está ainda mais afiada que em sua estreia. As linhas do contrabaixo de Jack Bruce ainda mais melódicas e sua voz cada vez mais forte. Ginger Baker continua com sua batida certeira e controlada. E o melhor timbre de guitarra já gravado por Eric Clapton em toda sua carreira. Algo entre uma faca e uma pista de patinação no gelo. Seus solos mantendo a veia ao vivo de sua natureza improvisadora. Riffs escorregadios e wah-wah’s, muitos wah-wah’s. E de quebra, ainda dá pra dançar tudo isso.

Destaque: World of Pain – Melancolia das cidades mais uma vez. Uma letra que reflete e questiona a dor de nossa existência por meio de imagens de uma árvore solitária sob as finas gotas de chuva londrina. Não vejo outro jeito de descrever a música a não ser como um exército de guitarras patinando no gelo em meio a uma Londres cinzenta coberta em chamas ainda mais chorosas.

The Jimi Hendrix Experience – Axis: Bold as Love (1967)

   Já o segundo disco da Experience soa como uma demo de estúdio, devido à pressa em que foi gravado, para aproveitar o sucesso do disco anterior e lucrar ainda mais o nome de Hendrix. Ainda há um incidente, ao menos é o que conta a lenda, que perturbou nosso herói, quando o próprio esqueceu as fitas master do lado A de Axis em um táxi, e tudo teve que ser feito novamente no sangue, suor e lágrimas. Na verdade, obviamente que utilizaram outros takes aceitáveis, com a habitual junção de overdubs e todo aquele processo de produção musical. Isso não prejudicou o disco em nada, apesar da desaprovação de Hendrix. Esse ar esquelético de estúdio enfatiza ainda mais as composições do guitarrista, seu maior talento ignorado. Hendrix foi um melodista nato, e aqui as baladas estão entre as melhores de sua curta vida. São o ponto alto do disco. Seguindo numa sonoridade mais soul, muito sensível e bonito demais da conta, uma forte influência de Curtis Mayfield. Suas letras também evoluem em lirismo e beleza. Ele era muito influenciado por Bob Dylan. O disco pode soar desorganizado, já que as faixas foram separadas entre rockões e baladas, rockões e baladas, e assim até o fim. Isso quebra o ritmo do disco. Mas aqui até que funciona. Mesmo o resultado final não ter ficado ao seu gosto, Axis também foi o momento em que Hendrix abusou de seu perfeccionismo, passando horas e horas trabalhando em suas composições e produções, muito obcecado por efeitos de estúdio e causando a ira de seu produtor, Chas Chandler, que pediu as contas logo após. No disco seguinte, seu mais famoso, Electric Ladyland, Hendrix assumiria a produção e sua música aumentaria em fatores produtivos.

Destaque: Little Wing – A pérola lapidada de Hendrix. Seu maior tesouro. A melhor introdução da história de todas as introduções musicais, entre o rítmico e o solo. Sua Stratocaster no mais cristalino dos timbres, elaborando uma sequência de acordes cheia de groove e carisma, belíssima e em andamento progressivo, em espiral, acompanhada de simpáticos tilintares de um sininho. Logo após, uma pequena virada de bateria e a melodia entra. Moça bonita, moça bem feita, moça formosa. E o sininho permanece. Há algo de indiano na música, influência recorrente nas melodias de Hendrix. Ao final, um solo que é o paraíso na Terra. Desculpe a repetição. Hendrix nunca mais soou tão sensível desde então. Na letra, visões de pura beleza e surrealismo descrevendo uma mulher enigmática. Quem é esta mulher? Ninguém sabe. Só sei que essa é mais uma canção milagrosa para ouvir, e sentir. A mão chega a tremer!

Blue Cheer – Vincebus Eruptum (1968)

   1968 foi o ano das revoluções. Protestos e sistemas opressores ficaram intensos no mundo inteiro e nosso planeta Terra nunca mais foi o mesmo, com violência e caos reinando em meio aos movimentos jovens nas ruas. Nada melhor então do que começar esse ano tumultuoso com peso. Muito peso! E barulho também. A revolução mais uma vez. Lançado em janeiro, a estreia do Blue Cheer abalou as estruturas da música para sempre. Parece até a própria representação de 1968. Pegue o blues e aumente a potência em tudo, em especial na amperagem, e temos o nascimento do heavy metal. Se o Black Sabbath é o pai do gênero musical, o Blue Cheer então só pode ser o avô. Nem a Jimi Hendrix Experience soou tão frenética e caótica quanto Vincebus Eruptum. Com apenas seis faixas, três autorais e três covers, o trio, ou a mais literal definição de power trio, espanca nossa cara com muito gosto. Mas não se preocupe, não dói nada. O lado primitivo do rock and roll levado ao mais intenso pé da letra. A guitarra de Leigh Stephens gritando riffs cortantes e solos agoniantes, pedindo por misericórdia, o baixo pulsante e a voz aguda quase (eu disse quase) irritante de Dickie Peterson e Paul Whaley espancando a pobre bateria, com batidas primais, quase ”George das selvas” e pratos chiando pelo espaço e tempo. Uma procissão de dores no reino do caos. Tudo ao mesmo tempo expirando musicalidade. Barulho também é música. Após sua estreia, o Blue Cheer, infelizmente, não seguiu a mesma linha e seu som perdeu a força.

Destaque: Parchment Farm – A heresia. Transformar um antigo blues de Bukka White, transformado num jazz faceiro por Mose Allison, em um caminhão nervoso deve ter feito os ouvidos dos mais puristas sangrarem de desgosto. Parchment Farm é o resumo do som do disco. Barulho, barulho e mais barulho. O riff de guitarra harmonizando com a linha de baixo, acrescentando mais raiva. Uma violência sonora de trilha de fundo para uma letra igualmente violenta sobre assassinato. Nada mais apropriado. Ou se você quiser um pouco mais de suavidade, um espetáculo de trovões numa corrida pelo domínio dos céus. No meio da música, uma pausa para acalmar os ânimos. Então, após batidas florestais na bateria, o triunfal retorno à glória. Os pelos da nuca chegam a roçar!

The Velvet Underground – White Light/White Heat (1968)

 Seguimos na onda das revoluções. Como dito na coluna anterior, os três primeiros discos do Velvet inventaram modas. Em seu segundo, já sem a influência de Andy Warhol e a presença de Nico, nossos heróis das ruas aumentam o barulho, distorção, cacofonia e coisas feias. E assim nasce o noise rock. É também um disco feio. Assim como foi o caso de Axis, parece ter sido lançado às pressas. Soa incompleto. Com apenas seis faixas, sentimos a falta de algo a mais. Todas elas diferem uma das outras. É confuso, mas faz sentido. Há uma ligação de sonoridade entre elas. Lou Reed cada vez mais inspirado na podridão e no sinistro. John Cale, em sua última participação na banda, nos presenteia pela primeira vez com sua voz em duas faixas, apresentando seu simpático sotaque galês. Na primeira delas, The Gift, recita um poema dos tempos de faculdade de Lou Reed, um conto macabro contando a trágica história de Waldo Jeffers, um simpático homem com saudades de sua namorada, há milhas de distância. Resolve então se mandar de presente pra ela. Resultado desastroso. Na outra, Lady Godiva’s Operation, canta pacificamente e num tom falado, descrevendo a cirurgia de troca de sexo da lendária figura histórica, enquanto os outros integrantes do grupo simulam com a voz barulhos de brocas e aparelhos cirúrgicos diversos. Também termina em tragédia. Tudo muito calmo, cacofônico, belo e feio. Mas o melhor está por vir…

Destaque: o lado B inteiro – ou para melhor compreensão, as duas últimas faixas. Totalizando mais de 21 minutos, é provavelmente o melhor lado B de um disco na história. O Velvet extrapola ainda mais os limites da música. Em I Heard Her Call My Name, o grupo mergulha num ritmo frenético de batidas robóticas, guitarra rítmica agressiva e Lou Reed soltando rajadas de violência cacofônica em seus solos nos nossos ouvidos, nossa cara e tudo mais. Não escute esse som num fone de ouvido. Quem avisa amigo é. Na letra, vejam só, Lou relata ouvir uma voz estranha o chamando pelo nome. É uma morta. Necrofilia também é arte. E barulho. Muito barulho. Já Sister Ray fecha o álbum com seus 17 minutos de puro caos e pavor, com direito a assassinato, drag queens, sodomia e tudo mais, resumidos num riff ainda mais cortante e num órgão de timbres agudos tão horripilante quanto. A ascensão e glória dos fritadores de cérebro. O ouvido chega a sangrar!