Uma doença infecciosa passou a ser assunto na Cidade no fim de março deste ano e, desde então, pauta as principais discussões que envolvem a saúde pública em Santa Maria. O que não se fala tanto – mas que deveria ser mais comentado – é como o surto de Toxoplasmose mudou a vida das pessoas, que passaram a gastar mais gás para ferver a água, ou a comprá-la nos mercados sob preços elevados. Esta matéria se propõe a mostrar o lado da sociedade que, fragilizada, busca informações e ajuda nos pronto-atendimentos, e frequentemente tem como retorno muita espera e desinformação.
O surto
Em 19 de abril, uma quinta feira, após algumas semanas de curiosidade quanto a veracidade dos rumores sobre um possível surto de toxoplasmose na Cidade, a médica infectologista da prefeitura, Paula Martinez, confirma a informação, após um documento da Prefeitura estar sendo veiculado nas redes sociais durante toda a manhã. No material havia a citação da existência de uma “situação epidêmica de toxoplasmose no município” e de “surto” da doença.
Em uma conferência feita às pressas para esclarecer os rumores e o documento vazado, o prefeito, Jorge Pozzobom, confirmou que o Laboratório Central de Saúde Pública (Lacen), de Porto Alegre, analisou 59 casos registrados, dos quais, 14 deram positivo para a doença. Nesta conferência, foi dito que os grupos de risco eram gestantes, crianças com menos de dois anos, e pacientes imunodeprimidos – pessoas com o sistema imunológico fraco. E a orientação para esse grupo é de que consumam, preferencialmente, água mineral. E que a população em geral, fervesse a água por pelo menos 10 minutos, pois havia a possibilidade do surto está se dando por meio da rede de abastecimento de água.
Ainda nesse mesmo dia, surge uma corrente no whatsApp com uma lista de sintomas que deixou a população ainda mais apreensiva, por se tratarem de sintomas comuns para várias outras situações:
- Dor de cabeça (cefaléia) e garganta
- Febre
- Ínguas (linfonodos aumentados, ou seja, gânglios espalhados pelo corpo)
- Manchas pelo corpo (vermelhidão em forma de pequenas manchas e pápulas)
- Confusão mental
- Convulsões
- Dificuldade para enxergar que pode evoluir para cegueira
Durante esse dia, já houve movimentação intensa nos mercados em busca de água mineral. Os donos respondiam às equipes de reportagem que estavam trabalhando com uma demanda 10 vezes maior do que o de costume, mas que os preços seguiam os mesmos. Assim como os distribuidores de gás de cozinha.
Os cuidados
Uma vez que a situação de surto foi estabelecida, é preciso informar essa população sobre cuidados para evitar o contágio. Então, através do Diário de Santa Maria, veiculou-se um pequeno e bem resumido encarte sobre cuidados com a doença. Nele constavam perguntas frequentes, sobre a forma de contágio e a periculosidade da doença. Uma das mais comuns formas de contrair a toxoplasmose é pelo consumo de alimentos mal lavados, como legumes e frutas, ou carnes mal cozidas. A transmissão também pode ocorrer por meio do contato com a terra contaminada por fezes de gatos doentes, sendo essa última opção, uma das formas mais raras de contágio. Por essas razões, havia uma série de indicações e cuidados:
- Lavar as mãos com água corrente e sabão ou detergente antes e depois de manipular alimentos
- Evitar tomar água não filtrada em qualquer ambiente
- Não comer alimentos crus, frutas e vegetais produzidos no solo por jardinagem
- Não consumir carnes cruas ou mal cozidas, incluindo quibe cru e embutidos (linguiça, salame, copa e outros)
- Congelar a carne a -12ºC por 24 horas
- Evitar manuseio direto com solo, incluindo jardins, parques. Caso seja necessário, usar luvas e lavar bem as mãos após a atividade
- Evitar o contato direto com fezes de gato
- Após manusear carne crua, lavar bem as mãos e toda a superfície que entrou em contato com o alimento, inclusive os utensílios utilizados
- Não consumir leite e seus derivados crus não pasteurizados
- A caixa de areia de gatos deve ser limpa preferencialmente por outra pessoa, todavia se não possível, deve-se limpá-la e trocá-la diariamente, utilizando luvas e pá de lixo
- Alimentar os gatos com carne cozida ou ração, não permitindo que os mesmos façam a ingestão de animais caçados.
A preocupação das autoridades estava focada nos grupos de risco, e principalmente nas grávidas, pois em 23 de abril, já haviam mais 7 casos confirmados, e dentre eles, 5 eram gestantes, que estão no grupo de risco porque a doença pode ser transmitida ao feto durante a gravidez. Durante o primeiro trimestre, pode ocorrer o aborto espontâneo, parto prematuro, e má formação do feto. Após o nascimento, o bebê pode sofrer alterações no tamanho da cabeça, pneumonia, inflamação do coração, retardo mental, entre outras complicações.
Por conta disso, em 5 de maio, o Hospital Universitário de Santa Maria (HUSM) divulgou uma nota recomendando que as mulheres evitassem a gravidez durante o surto, que nessa época, já estava em 176 casos confirmados, e outros 219 possíveis. Às que já se encontravam gestantes, foi indicado que fizessem o exame para a identificação da toxoplasmose de 15 em 15 dias, segundo o infectologista Reinaldo Ritzel. Na rede pública, o exame é gratuito e leva de 2 a 3 dias úteis para ficar pronto. Pelo menos, é a informação que era veiculada, pois devido à imensa procura, as clínicas ficaram sobrecarregadas, e muitos desses exames levaram semanas para ficarem prontos.
Não é a água!
No dia 20 de abril, véspera de feriado, o engenheiro químico e diretor de operações da Corsan, Eduardo Barbosa de Carvalho saiu em defesa da qualidade da água oferecida aos consumidores, ao ponto de recomendar à população para que não fervesse a água por dez minutos antes de consumi-la. O argumento era de que ao ferver a água, são anulados os agentes que eliminam a possível presença de toxinas nocivas, inclusive o protozoário causador da infecção.
Em 11 de maio, uma sexta-feira, a Corsan entrega à prefeitura de Santa Maria os resultados das análises realizadas na água da cidade pelo Laboratório de Zoonoses/Saúde Pública e Protozoologia da Universidade de Londrina. O órgão, que é especializado nesses ensaios, finalizou os resultados no dia anterior, e as análises comprovavam a ausência de toxoplasma nas amostras da água tratada e distribuída em Santa Maria.
Ainda que refutada a hipótese do contágio pela água, em uma conferência realizada pela Prefeitura logo após a entrega dos resultados das análises da Corsan, os cuidados indicados ainda seguiam os mesmos e, em 15 de maio, treze médicos infectologistas de Santa Maria divulgam uma nota técnica a respeito do surto na cidade. No documento, que foi entregue ao Ministério Público Federal (MPF), os profissionais questionavam o posicionamento da Prefeitura e da Corsan diante da divulgação dos laudos com os resultados das análises da água. Eles demonstram forte preocupação, principalmente no que se refere às gestantes, pois já haviam sido confirmadas duas mortes de fetos e dois abortos com suspeita de toxoplasmose como causa. Segundo eles, não há teste para a água que possa exclui-la como causa do surto. Ao afirmar a ausência do vírus na água, a empresa estaria incentivando o consumo sem cuidado, o que poderia aumentar ainda mais o contágio, que – até então – estava em 271 casos confirmados, e 230 em investigação. A nota ainda solicita à prefeitura um reforço no quadro de profissionais médicos (oftalmologistas, obstetras, infectologistas e pediatras) e a melhora no acesso aos medicamentos, além de sugerir novas análises da água na cidade e mais “persistência de investigar o foco”. Confira notícia.
Maior do mundo
A Prefeitura, duramente criticada pela população sobre a falta de informação e ações, publica – após exatos 40 dias do início do surto – uma campanha para a prevenção da toxoplasmose. Até então, as informações eram veiculadas apenas por releases, e coletivas de imprensa. A ausência de campanhas de prevenção já vinha sendo alvo de críticas por todos os cantos, quando em sua página no Facebook, o Poder Público da cidade se manifestou.
Em 28 de maio, quando Santa Maria vivia há 2 meses sob o maior surto de toxoplasmose do mundo, a cada boletim divulgado, a preocupação aumentava. Ao total, já somavam-se 460 casos confirmados, e outros 766 eram investigados. Com um total de 1.116 casos notificados até então, a Prefeitura divulgou um mapa do contágio na Cidade. A maioria dos casos atinge o sexo feminino, e o maior número de casos confirmados encontra-se na região Oeste.
Em 28 de maio, quando Santa Maria vivia há 2 meses sob o maior surto de toxoplasmose do mundo, a cada boletim divulgado, a preocupação aumentava. Ao total, já somavam-se 460 casos confirmados, e outros 766 eram investigados. Com um total de 1.116 casos notificados até então, a Prefeitura divulgou um mapa do contágio na Cidade. A maioria dos casos atinge o sexo feminino, e o maior número de casos confirmados encontra-se na região Oeste.
A cidade pode ficar sem remédios para tratar a infecção
Na primeira semana de junho, os casos confirmados estavam em 480 e, baseado nesses números, os cálculos sobre a necessidade de medicamentos foram feitos, e os pedidos enviados. Acontece que, nessa semana, o número de casos pulou para 510, sendo que desse grupo, a maioria, 133, são gestantes. Diante da ameaça da falta de remédios, o Ministério Público Federal ingressou com uma ação civil pública para que o Ministério da Saúde garanta a compra dos medicamentos. O professor da UFSM, Alexandre Schwarzbold, explica que não são todos os pacientes que necessitam do medicamento, mas para alguns grupos a terapia é considerada essencial, como no caso das gestantes. Sem remédio, há um risco expressivo de o protozoário ser transmitido para o embrião.
No último dia 12, o jornal Estadão publicou um vídeo com o alerta de os indicadores de toxoplasmose devem aumentar, e que a cidade pode ficar sem remédio.
O que dizem os especialistas?
Reinaldo Ritzel, graduado em Medicina pela UFSM, com ênfase em Doenças Infecciosas e Parasitárias, afirma “a toxoplasmose é uma doença muito prevalente no nosso meio. A maioria dos pacientes que adquirem não apresentam sintomas. O que nós estamos vendo representa somente 10% dos pacientes que estão com a infecção aguda”. Segundo o infectologista, todos os grandes surtos do mundo tiveram sua origem esclarecida, e percebeu-se que foi a água encanada a causadora. O médico explica que “o toxoplasma chega no nosso organismo pela boca. Sempre pela ingestão do oocisto de toxoplasma. Vegetais mal lavados e crus, carnes mal cozidas ou cruas e água contaminada são as vias comuns de infecção. Vegetais cozidos e verduras bem lavadas não transmitem. Carnes ‘bem passadas’ ou congeladas por pelo menos 2 dias a 12 graus negativos também não transmitem. Água fervida e filtrada com filtros revisados também não transmitem”. Para saber se o paciente está infectado ou já teve a doença, deve-se fazer exames de sangue. Reinaldo ainda avisa que “quem adquiriu a doença deve fazer exames oftalmológicos, tendo em vista que – mesmo assintomática – a toxoplasmose pode afetar os olhos.” Em sua página do Facebook, logo no início do surto, ele fez uma publicação que já passa de 1.300 interações; nela, explica seu ponto de vista e suas preocupações a respeito do assunto.
A população
Apesar da intensificação das notícias sobre o surto na cidade, a população ainda clama por esclarecimentos e ajuda. Se a origem for mesmo a água, moradores como os do Bairro Carlos Gomes correm um risco em contrair a doença. O motivo? O recebimento de água inapropriada para consumo.
Uma moradora do bairro desabafa: “Recebemos a água assim toda vez que a Corsan faz alguma operação na rua, agora eles estão fazendo obras para saneamento, mas o problema é frequente”. Claudia Silva postou em sua página no Facebook as fotos do que recebeu quando ligou a torneira de sua casa, e sobre o descaso com o abastecimento de água em época de toxoplasmose.
Saindo em direção aos outros bairros de Santa Maria, moradores que contraíram a doença queixam-se da falta de assistência da Prefeitura. “Tudo começou com a minha filha e minha neta, que estavam doentes, com os mesmos sintomas da toxoplasmose, depois veio pra mim. Fui no posto e fizeram exames de sangue, nada ficou constatado. A princípio, era apenas uma virose. Era ainda no início do surto, ninguém sabia mais ou menos o que estava acontecendo e como prosseguir, muito menos os médicos”, relata a moradora do Bairro São José, Valeria Cortes Lopes.
Além da falta de amparo por parte dos médicos, uma das maiores queixas dos pacientes com suspeita de toxoplasmose é a ausência de preparo dos servidores públicos de saúde sobre como prosseguir com a população. O que resulta em uma demora maior ainda para o diagnóstico correto e um tratamento eficiente. “Nos dias que estava doente, fiquei entre idas e vindas no posto de saúde. Após 40 dias, fui encaminhada para o oftalmologista, primeira coisa que deve ser feita após contrair a doença, pois depois de muita insistência resolveram tratar meu caso como toxoplasmose”, acrescenta Valeria.
Utilizando as mídias sociais para reivindicar direitos básicos
O estudante de jornalismo, já graduado em produção editorial, André Polga utilizou seu Facebook para reclamar sobre a demora e ineficiência do seu atendimento na rede pública, o post, que chega a quase 200 interações, o fez conseguir a atenção dos maiores veículos de comunicação da cidade, o Diário de Santa Maria, e a RBS Tv. Ele conta que ainda quando não se falava sobre a possibilidade de um surto de toxoplasmose na cidade, e a hipótese ainda pairava sobre o nome de síndrome febril, André foi até um posto de saúde, e quando indagado sobre a demora para buscar atendimento, respondeu que não havia feito antes pois temia que lhe fosse apenas receitado algum remédio para garganta e febre. “A enfermeira ficou indignada com o meu comentário, mas foi exatamente isso que aconteceu”, lembra o estudante.
Após o surto ter sido confirmado na Cidade, André ainda continuava com uma febre que os remédios até amenizavam, mas que sempre acabava voltando. Ainda nessa época, ele passou por dois tratamentos bem caros para tratar a dor de garganta e febre. “Isso acabou me prejudicando financeiramente, pois nessas idas à farmácia, eu não gastava menos do que 150 reais, e não recebia auxílio nenhum durante ess
e processo”, observa. Logo em seguida ele foi encaminhado para o exame, que acusou a infecção pelo vírus da toxoplasmose. E foi aí que finalmente ele recebeu um atendimento de qualidade, quando o médico lhe explicou tudo o que era preciso saber sobre a doença.
Ao ser indagado sobre a sua exposição na mídia, o estudante comenta que ainda que não houvesse réplica, ele notou uma melhora expressiva no seu tratamento. “O que aconteceu foi que depois que caí em cima deles (responsáveis pela cidade) com a mídia do meu lado, tudo começou a se resolver mais rapidamente pra mim. Já fazia quase um mês que eu esperava pelo meu encaminhamento, o prazo já estava estourado, achei até que tinham me esquecido. E foi eu aparecer na Tv, que me chamaram bem dizer, de um dia pro outro. Então, ajudou muito nesse sentido de ter sido adiantada muita coisa, e também uma visível melhora no atendimento, pois quando eu voltei para novos exames, eles já me reconheciam, provavelmente por causa da Tv”, lembra André.
Durante o seu tratamento, o produtor editorial comenta que não ingeriu água direto da torneira. Quando ele não pegava do poço artesiano do tio, seus pais lhe ajudavam comprando alguns galões. Pois segundo ele, os gastos com o gás triplicaram enquanto ele fazia o processo de ferver por 10 minutos. Quando perguntado sobre a sua opinião quanto ao atendimento recebido, ele declara sentir que a cidade não está estruturada para um surto desse tamanho, pois “apesar de ter profissionais muito competentes e bem capacitados, há uma demora muito grande no encaminhamento de consultas e na fila de espera. E também, eu acredito que sim, o surto é muito maior do que a mídia veicula, e eu acredito que a fonte já foi descoberta e que só não foi divulgada ainda para não deixar a sociedade em um estado maior de pânico. É como o médico falou: tem gente que teve infecção pelo vírus e nem sabe. Passa como gripe batido. E só vai apresentar efeitos piores no futuro por não ter sido tratado em tempo, como por exemplo a retina, e aí a pessoa nem vai saber do motivo. É uma doença que precisa ser esclarecida! Todo e qualquer tipo de informação referente à ela, porque esses tempos uma amiga minha não queria me abraçar por pensar que era contagioso, e existe muito mito que precisa ser sanado, e a sociedade precisa ter isso muito claro”, desabafa André.
Falta informação
Após toda a pesquisa, fica claro que a população carece é de mais informação. Seja sobre o que está causando o surto; seja sobre os cuidados que se deve tomar após o contágio, ou sobre os exames que precisam ser feitos para a identificação da intensidade da infecção. É preciso, acima de tudo, que as informações sejam precisas. E ainda que não se saiba exatamente a causa que deu origem ao surto, é preciso seguir as indicações dos infectologistas para que não aumente o número de atingidos.
A reportagem foi produzida pelas alunas Luiza Rorato e Thayane Rodrigues para a disciplina de Jornalismo Investigativo, durante o 1º semestre de 2018, sob orientação da profª Carla Torres.