Santa Maria, RS (ver mais >>)

Santa Maria, RS, Brazil

Cria de Favela: o preconceito com o funk enquanto cultura

MC Poze do Rodo desenhado por Wander Schlottfeldt.

“Era só mais um Silva que a estrela não brilha; ele era funkeiro, mas era pai de família”. Não há quem não conheça o famoso refrão do Rap do Silva, maior hit do MC Bob Rum. Essa música reflete sobre a vida na periferia e o preconceito das classes mais altas com o funk e a cultura que o envolve. Apesar da música ter sido lançada em 1990, ainda se vê a mesma realidade quando o estilo musical é trazido à tona, quase sempre associado à criminalidade e à violência urbana.

Desenvolvido no fim da década de 70, o funk foi conceituado como a prática musical vinculada a manifestações culturais dos chamados bailes funk, que não passavam de festas organizadas por equipes de som em clubes da região suburbana. Naquela época, festas como o baile da pesada estavam apostando em um repertório com soul music para promover o movimento Black Rio, inspirado nos bailes realizados nos Estados Unidos na mesma época. Os produtores abraçaram a ideia de valorização da cultura negra e queriam produzir artistas nacionais, porém a indústria se deslocou para o estilo disco com rapidez, levando somente Tim Maia à ascensão.

O psicólogo Thiago Alves diz que a cultura brasileira engloba vários elementos internacionais e oriundos de outros países e o culturas, “e o funk, a nível internacional, têm elementos negros da sua essência, principalmente na vocalização e instrumentos”.

Ao acompanhar as tendências estadunidenses, o novo estilo musical tentava se aliar ao hip-hop da cultura negra. A concorrência entre os DJs era grande e muitos buscavam por referências viajando à Miami, nos Estados Unidos, cidade onde surgia a vertente de ­hip-hop chamada de Miami Bass. O estilo se destacava pelo ritmo rápido, bumbo frenético e letras sexualmente explícitas. Em 1987, os bailes funks cariocas eram cerca de 700 por fim de semana, agregando no mínimo um milhão de jovens no Rio de Janeiro. Nesta época, os bailes eram realizados em ginásios de esportes ou quadras de escolas de samba.

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Enquanto a classe média alta via o rock nacional como preferência, o funk incorporava músicas eletrônicas com graves pulsantes e muito dançante, se tornando o lazer da juventude pobre da cidade junto ao pagode. Entre as inovações da época, surgem os MCs, sigla para “mestre de cerimônias”, responsáveis por interpretar a letra e interagir com o público através do microfone. É então que os novos artistas deixam de tentar reproduzir as músicas estadunidenses e começam a criar suas próprias letras, falando sobre a vida cotidiana da favela e da sua comunidade, também apelando pelo pedido de um baile pacífico.

É no fim da década de 1980 que a violência nos bailes funk passa a chamar atenção da imprensa, gerando um aumento no preconceito com o estilo musical e de festa. Ao mesmo tempo que o MC Marlboro impulsionava a carreira de inúmeros artistas com coletâneas, o MC Grandmaster Raphael do Furacão 2000 propõe os festivais de galeras, no qual os próprios frequentadores dos bailes elaboravam e interpretavam as letras. Depois de 1990, as festas aconteciam em áreas de céu aberto ou ruas, e a figura dos MCs ganhava grande destaque, incitando a imagem de sucesso artístico acessível à qualquer jovem da favela. Apesar de muitos irem para os concursos dos festivais com propósitos pacíficos, a competitividade fomentava a agressividade em alguns jovens, resultando em violência. Ao serem documentados pela imprensa, a imagem do funk foi diretamente ligada aos arrastões de 1992.

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O acontecimento foi um embate entre facções rivais oriundas de bairros periféricos na Praia do Arpoador, e onde a elite carioca se chocou com ritual de luta comum da periferia. Devido ao impacto negativo causado na população dos bairros nobres e a grande divulgação da mídia, o marco ficou conhecido como arrastão e os envolvidos foram taxados de assaltantes e relacionados aos bailes funk. Assim, a imprensa começa a marginalizar o gênero perante a opinião pública, principalmente a partir de 1995, quando surgem acusações que ligavam os bailes com o comércio varejista de drogas. Segundo Alves, “o funk é mal visto pela perspectiva de onde ele vem, pois, quando ele chega na mídia, é ligado a questão da violência”. As pessoas, muitas vezes, nunca foram num baile funk, mas veem a representação social da favela na televisão, que torna mais fácil negar a desigualdade social e o lugar do funk como uma expressão da realidade.

Devido as inúmeras proibições aos bailes funk por parte do governo municipal, exigindo a vistoria policial durante os eventos, as festas foram acolhidas pelos líderes do morro e passaram a acontecer nas ruas da comunidade. É quando surge o proibidão, vertente do funk que usa palavras de baixo calão, fala de sexo explícito e sobre drogas, algumas vezes exaltando facções criminosas. Cria-se, então, o hábito de criar duas versões da música, uma aceitável para o mercado e uma para cantar nos bailes. Enquanto leis tentavam silenciar o movimento, os grandes veículos de comunicação popularizavam o ritmo fora da favela. O funk conquistou espaços na classe média e alta, e entra no século XXI com um público mais diverso.

Categorias e vertentes

Mister Catra desenhado por Wander Schlottfeldt.

No novo milênio, as letras do funk ganham uma tendência erótica e sexual, se aproximando da batida do samba e deixando o Miami Bass de lado para inserir o tamborzão. Nesse período, um dos sucessos foi o Bonde do Tigrão que, com músicas como “Cerol Na Mão”, alcançou disco platina em 2001.

Na mesma época, a MC Tati Quebra-Barraco entrava na cena como precursora feminina, lançando músicas como “Boladona” e “Sou feia, mas tô na moda”,  alcançando sucesso até no exterior.

Outro artista que subia nas paradas era o ícone do proibidão, Mister Catra. Famoso por seus 32 filhos, o artista obteve reconhecimento nacional por seus hits como “Adultério” e foi indiciado por apologia ao crime em 2002.

Começam a surgir novas tendências em São Paulo, uma vertente do funk chamada de ostentação por falar de um estilo de vida com muitos bens de consumo de alto custo e estar sempre rodeado por mulheres. Alguns dos MCs mais conhecidos nessa categoria são MC Guime com “Plaque de 100” e MC Rodolfinho com “Os mlk é Liso”.

Outra vertente foi o funk pop, canções mais populares que buscam conquistar espaço internacional, com letras suaves e batidas semelhantes ao pop. Muitos MCs escolhem deixam a nomenclatura para trás e migram para este subgênero, como Anitta, Ludmilla (antiga MC Beyoncé) e Pocah (antiga MC Pocahontas).

Importante ressaltar o brega funk, uma vertente do Recife que se enlaça aos cancioneiros românticos do Nordeste e, por fim, o 150bpm, categoria que mais fez sucesso recentemente, no qual a sigla significa “batidas por minuto”. É chamado assim por ser mais rápido que o comum, que é geralmente de 130bpm. Enquanto o brega funk tem sido exaltado por artistas como MC Loma e As Gêmeas Lacração cantando “Envolvimento” e “Xonadão”, o 150bpm vem ganhando espaço com músicas como “Eu vou pro Baile da Gaiola” do MC Kevin, O Chris e “Tô Voando Alto” do MC Poze do Rodo, além de DJs como FP Do Trem Bala e DJ Gabriel do Borel.

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Polêmicas

Ao longo dos anos, o funk sofreu com a perseguição política e com elementos controversos de sua cultura. Em linhas gerais, podemos citar uma das principais polêmicas como sendo a dança, por possuir uma certa sensualidade. O gênero musical leva os dançarinos a movimentarem o quadril e bumbum de forma sensual e, muitas vezes, são considerados vulgares. Alguns dos mais lembrados são o “passinho do romano”, “passinho” e “sarrada no ar”, sendo que o segundo foi declarado patrimônio cultural imaterial do Rio de Janeiro em 2018.

Outra preocupação comum é com a vestimenta dos frequentadores do baile funk, principalmente na “falta” de roupa das mulheres. O uso de shorts e saias curta com decotes e roupas coladas chama a atenção, e algumas pessoas ficam desconfortáveis com a exposição gerada. Apesar de algumas letras incitarem a sexualização e objetificação das mulheres, há funkeiras que gostam das vestimentas de costume e concordam com o hit da Pocah que diz “Deixa eu te lembrar que eu não sou obrigada a nada, ninguém manda nessa raba”.

Não é de se surpreender também com a polêmica sobre as letras do funk, uma vez que elas falam abertamente sobre sexo, ostentação e, algumas vezes, apologia ao crime. As músicas abordam os assuntos de formas surpreendentes, como o hitQue Tiro Foi Esse?” de Jojo Maronttinni, ou a música “Tropa do R7” na qual o DJ R7 apresenta 7 minutos de uma montagem de sons de tiro em que 11 MCs interpretam estrofes de funk proibidão. Porém, foi o sucesso “Baile de Favela” de 2015, do DJ R7 e MC João, que foi criticado por internautas  e recebeu até resposta musicais pela forma como se referiu as mulheres, como a da cantora Mariana Nolasco.

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Na mesma época que surgiu a música de Jojo Maronttinni, entrava nas paradas a “Só Surubinha de Leve”, música que levaria a internet a loucura no início de 2018, em que MC Diguinho falava claramente sobre embebedar uma mulher fácil de dominar, estupra-la e abandoná-la na rua. A violência nos versos provocou milhares de internautas que não se deram por satisfeitos quando as plataformas de streaming baniram a música e o artista publicou uma “versão light” com reformas nas letras. Antes da segunda opção da música ser lançado, o artista negou arrependimento sobre seus versos em suas redes sociais.

Ainda sobre as letras, MC Pedrinho ficou muito conhecido em 2014 por suas músicas de conotação sexual. Com apenas 12 anos o cantor já havia lançado grande sucessos como “Dom Dom Dom”, “Matemática” e “Hit Do Verão”, o que acabou chamando atenção da Vara da Infância e da Juventude, que cancelou um de seus shows no Ceará sob alegação do teor erótico das canções. O artista não deixou de lado suas criações de funk proibidão, mas produziu algumas versões lights para suas músicas. Outra criança que, aos olhos da lei, entrou muito cedo no mercado da música funk foi a Medoly. A erotização das crianças é um assunto delicado, principalmente quando elas tem oito anos e cantam funk. O Ministério Público chegou a abrir um inquérito contra o pai da antiga MC Medoly em 2015 por considerarem que suas roupas eram muito adultas, o que o levou a reformular a carreira da filha. Tanto MC Pedrinho (hoje com 17 anos) como Melody (12) seguiram suas carreiras musicais e, neste ano, lançaram um clipe juntos.

Vale destacar o assassinato do cantor paulista MC Daleste conhecido por seus funk ostentação. O cantor dos sucessos “São Paulo” e “Gosto mais do que lasanha” foi baleado na barriga na noite de 6 de julho de 2013, em Campinas, ao fim de um show gratuito com cerca de 3 mil pessoas. O cantor estava conversando com o público quando foi atingido, e chegou a ser levado ao centro cirúrgico, mas não resistiu. A policia não pegou o assassino, mas afirmou que foram três disparos e que, com certeza, o atirador queria atingir especificamente o artista.

Já para finalizar com questões mais atuais, é importante falar da prisão do DJ Rennan da Penha, um dos maiores personagens do funk atual. O idealizador do Baile da Gaiola foi levado sob a acusação de atuar como olheiro, avisando o pessoal quando a polícia ia subir o morro, e de que as músicas dele faziam apologia ao uso de drogas, incitando que o Baile da Gaiola seria uma forma de atrair as pessoas ao tráfico. O site do Kondzilla publicou uma matéria explicando o caso do funkeiro e falando de operações da polícia que aconteceram no início de 2019 para acabar com o baile funk.

[youtube_sc url=”https://www.youtube.com/watch?v=u3cl19kQJXA” autohide=”1″ fs=”1″]

Aos olhos da lei

Entre as formas de preconceitos e problemas que a Justiça encontrou com a cultura do funk, podemos destacar alguns projetos de leis que entraram em vigor. Em 2000 foi publicado o projeto da lei Álvaro Lins que proibia a realização dos bailes sem a autorização e supervisão de autoridades policiais no Rio de Janeiro, o que acabou por se estender à festas “raves” em 2007. Também vale ressaltar sobre a lei 5.544/09 sancionada em setembro de 2009 no Rio de Janeiro, que define o funk como movimento cultural e musical de caráter popular. Essa conquista em prol dos direitos dos funkeiros foi da Associação dos Profissionais e Amigos do Funk (APAFunk) e foi registrada no livro “Funk-se quem quiser: no batidão negro da cidade carioca”. Em 2017, a sugestão de um projeto de lei que criminalizava o funk atingiu 20 mil assinaturas, chegando ao número mínimo para ser encaminhada para debate dos senadores. O projeto do empresário Marcelo Alonso classificou o gênero musical como crime de saúde pública à criança, ao adolescente e à família. A Comissão dos Direitos Humanos não transformou a sugestão em projeto de lei, pois iria diretamente contra a liberdade de expressão esculpido no artigo 5º da Constituição, inciso IX.

(segue)

Reportagem produzida por Bibiana Rigão Iop e Wander Schlottfeldt na disciplina de Jornalismo Investigativo, com orientação da professora Carla Torres.

Uma resposta

  1. Na minha idade, 52 anos, seria cômodo dizer que o funk é isso, aquilo e tudo mais que evidencie minha insatisfação por não saber dançar direito o ritmo ou por não ter acesso as festas populares dos funkeiros. Mas não, eu aceito e reconheço essa importante manifestação cultural como uma revolução musical necessária no Brasil.
    Entendo que algumas letras até incitam um pouco de violência, mas só pratica violência, por causa de uma música, quem não tem noção de arte.
    Sou contra qualquer tipo de proibição em se falando de arte.
    Parabéns pela reportagem.

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MC Poze do Rodo desenhado por Wander Schlottfeldt.

“Era só mais um Silva que a estrela não brilha; ele era funkeiro, mas era pai de família”. Não há quem não conheça o famoso refrão do Rap do Silva, maior hit do MC Bob Rum. Essa música reflete sobre a vida na periferia e o preconceito das classes mais altas com o funk e a cultura que o envolve. Apesar da música ter sido lançada em 1990, ainda se vê a mesma realidade quando o estilo musical é trazido à tona, quase sempre associado à criminalidade e à violência urbana.

Desenvolvido no fim da década de 70, o funk foi conceituado como a prática musical vinculada a manifestações culturais dos chamados bailes funk, que não passavam de festas organizadas por equipes de som em clubes da região suburbana. Naquela época, festas como o baile da pesada estavam apostando em um repertório com soul music para promover o movimento Black Rio, inspirado nos bailes realizados nos Estados Unidos na mesma época. Os produtores abraçaram a ideia de valorização da cultura negra e queriam produzir artistas nacionais, porém a indústria se deslocou para o estilo disco com rapidez, levando somente Tim Maia à ascensão.

O psicólogo Thiago Alves diz que a cultura brasileira engloba vários elementos internacionais e oriundos de outros países e o culturas, “e o funk, a nível internacional, têm elementos negros da sua essência, principalmente na vocalização e instrumentos”.

Ao acompanhar as tendências estadunidenses, o novo estilo musical tentava se aliar ao hip-hop da cultura negra. A concorrência entre os DJs era grande e muitos buscavam por referências viajando à Miami, nos Estados Unidos, cidade onde surgia a vertente de ­hip-hop chamada de Miami Bass. O estilo se destacava pelo ritmo rápido, bumbo frenético e letras sexualmente explícitas. Em 1987, os bailes funks cariocas eram cerca de 700 por fim de semana, agregando no mínimo um milhão de jovens no Rio de Janeiro. Nesta época, os bailes eram realizados em ginásios de esportes ou quadras de escolas de samba.

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Enquanto a classe média alta via o rock nacional como preferência, o funk incorporava músicas eletrônicas com graves pulsantes e muito dançante, se tornando o lazer da juventude pobre da cidade junto ao pagode. Entre as inovações da época, surgem os MCs, sigla para “mestre de cerimônias”, responsáveis por interpretar a letra e interagir com o público através do microfone. É então que os novos artistas deixam de tentar reproduzir as músicas estadunidenses e começam a criar suas próprias letras, falando sobre a vida cotidiana da favela e da sua comunidade, também apelando pelo pedido de um baile pacífico.

É no fim da década de 1980 que a violência nos bailes funk passa a chamar atenção da imprensa, gerando um aumento no preconceito com o estilo musical e de festa. Ao mesmo tempo que o MC Marlboro impulsionava a carreira de inúmeros artistas com coletâneas, o MC Grandmaster Raphael do Furacão 2000 propõe os festivais de galeras, no qual os próprios frequentadores dos bailes elaboravam e interpretavam as letras. Depois de 1990, as festas aconteciam em áreas de céu aberto ou ruas, e a figura dos MCs ganhava grande destaque, incitando a imagem de sucesso artístico acessível à qualquer jovem da favela. Apesar de muitos irem para os concursos dos festivais com propósitos pacíficos, a competitividade fomentava a agressividade em alguns jovens, resultando em violência. Ao serem documentados pela imprensa, a imagem do funk foi diretamente ligada aos arrastões de 1992.

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O acontecimento foi um embate entre facções rivais oriundas de bairros periféricos na Praia do Arpoador, e onde a elite carioca se chocou com ritual de luta comum da periferia. Devido ao impacto negativo causado na população dos bairros nobres e a grande divulgação da mídia, o marco ficou conhecido como arrastão e os envolvidos foram taxados de assaltantes e relacionados aos bailes funk. Assim, a imprensa começa a marginalizar o gênero perante a opinião pública, principalmente a partir de 1995, quando surgem acusações que ligavam os bailes com o comércio varejista de drogas. Segundo Alves, “o funk é mal visto pela perspectiva de onde ele vem, pois, quando ele chega na mídia, é ligado a questão da violência”. As pessoas, muitas vezes, nunca foram num baile funk, mas veem a representação social da favela na televisão, que torna mais fácil negar a desigualdade social e o lugar do funk como uma expressão da realidade.

Devido as inúmeras proibições aos bailes funk por parte do governo municipal, exigindo a vistoria policial durante os eventos, as festas foram acolhidas pelos líderes do morro e passaram a acontecer nas ruas da comunidade. É quando surge o proibidão, vertente do funk que usa palavras de baixo calão, fala de sexo explícito e sobre drogas, algumas vezes exaltando facções criminosas. Cria-se, então, o hábito de criar duas versões da música, uma aceitável para o mercado e uma para cantar nos bailes. Enquanto leis tentavam silenciar o movimento, os grandes veículos de comunicação popularizavam o ritmo fora da favela. O funk conquistou espaços na classe média e alta, e entra no século XXI com um público mais diverso.

Categorias e vertentes

Mister Catra desenhado por Wander Schlottfeldt.

No novo milênio, as letras do funk ganham uma tendência erótica e sexual, se aproximando da batida do samba e deixando o Miami Bass de lado para inserir o tamborzão. Nesse período, um dos sucessos foi o Bonde do Tigrão que, com músicas como “Cerol Na Mão”, alcançou disco platina em 2001.

Na mesma época, a MC Tati Quebra-Barraco entrava na cena como precursora feminina, lançando músicas como “Boladona” e “Sou feia, mas tô na moda”,  alcançando sucesso até no exterior.

Outro artista que subia nas paradas era o ícone do proibidão, Mister Catra. Famoso por seus 32 filhos, o artista obteve reconhecimento nacional por seus hits como “Adultério” e foi indiciado por apologia ao crime em 2002.

Começam a surgir novas tendências em São Paulo, uma vertente do funk chamada de ostentação por falar de um estilo de vida com muitos bens de consumo de alto custo e estar sempre rodeado por mulheres. Alguns dos MCs mais conhecidos nessa categoria são MC Guime com “Plaque de 100” e MC Rodolfinho com “Os mlk é Liso”.

Outra vertente foi o funk pop, canções mais populares que buscam conquistar espaço internacional, com letras suaves e batidas semelhantes ao pop. Muitos MCs escolhem deixam a nomenclatura para trás e migram para este subgênero, como Anitta, Ludmilla (antiga MC Beyoncé) e Pocah (antiga MC Pocahontas).

Importante ressaltar o brega funk, uma vertente do Recife que se enlaça aos cancioneiros românticos do Nordeste e, por fim, o 150bpm, categoria que mais fez sucesso recentemente, no qual a sigla significa “batidas por minuto”. É chamado assim por ser mais rápido que o comum, que é geralmente de 130bpm. Enquanto o brega funk tem sido exaltado por artistas como MC Loma e As Gêmeas Lacração cantando “Envolvimento” e “Xonadão”, o 150bpm vem ganhando espaço com músicas como “Eu vou pro Baile da Gaiola” do MC Kevin, O Chris e “Tô Voando Alto” do MC Poze do Rodo, além de DJs como FP Do Trem Bala e DJ Gabriel do Borel.

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Polêmicas

Ao longo dos anos, o funk sofreu com a perseguição política e com elementos controversos de sua cultura. Em linhas gerais, podemos citar uma das principais polêmicas como sendo a dança, por possuir uma certa sensualidade. O gênero musical leva os dançarinos a movimentarem o quadril e bumbum de forma sensual e, muitas vezes, são considerados vulgares. Alguns dos mais lembrados são o “passinho do romano”, “passinho” e “sarrada no ar”, sendo que o segundo foi declarado patrimônio cultural imaterial do Rio de Janeiro em 2018.

Outra preocupação comum é com a vestimenta dos frequentadores do baile funk, principalmente na “falta” de roupa das mulheres. O uso de shorts e saias curta com decotes e roupas coladas chama a atenção, e algumas pessoas ficam desconfortáveis com a exposição gerada. Apesar de algumas letras incitarem a sexualização e objetificação das mulheres, há funkeiras que gostam das vestimentas de costume e concordam com o hit da Pocah que diz “Deixa eu te lembrar que eu não sou obrigada a nada, ninguém manda nessa raba”.

Não é de se surpreender também com a polêmica sobre as letras do funk, uma vez que elas falam abertamente sobre sexo, ostentação e, algumas vezes, apologia ao crime. As músicas abordam os assuntos de formas surpreendentes, como o hitQue Tiro Foi Esse?” de Jojo Maronttinni, ou a música “Tropa do R7” na qual o DJ R7 apresenta 7 minutos de uma montagem de sons de tiro em que 11 MCs interpretam estrofes de funk proibidão. Porém, foi o sucesso “Baile de Favela” de 2015, do DJ R7 e MC João, que foi criticado por internautas  e recebeu até resposta musicais pela forma como se referiu as mulheres, como a da cantora Mariana Nolasco.

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Na mesma época que surgiu a música de Jojo Maronttinni, entrava nas paradas a “Só Surubinha de Leve”, música que levaria a internet a loucura no início de 2018, em que MC Diguinho falava claramente sobre embebedar uma mulher fácil de dominar, estupra-la e abandoná-la na rua. A violência nos versos provocou milhares de internautas que não se deram por satisfeitos quando as plataformas de streaming baniram a música e o artista publicou uma “versão light” com reformas nas letras. Antes da segunda opção da música ser lançado, o artista negou arrependimento sobre seus versos em suas redes sociais.

Ainda sobre as letras, MC Pedrinho ficou muito conhecido em 2014 por suas músicas de conotação sexual. Com apenas 12 anos o cantor já havia lançado grande sucessos como “Dom Dom Dom”, “Matemática” e “Hit Do Verão”, o que acabou chamando atenção da Vara da Infância e da Juventude, que cancelou um de seus shows no Ceará sob alegação do teor erótico das canções. O artista não deixou de lado suas criações de funk proibidão, mas produziu algumas versões lights para suas músicas. Outra criança que, aos olhos da lei, entrou muito cedo no mercado da música funk foi a Medoly. A erotização das crianças é um assunto delicado, principalmente quando elas tem oito anos e cantam funk. O Ministério Público chegou a abrir um inquérito contra o pai da antiga MC Medoly em 2015 por considerarem que suas roupas eram muito adultas, o que o levou a reformular a carreira da filha. Tanto MC Pedrinho (hoje com 17 anos) como Melody (12) seguiram suas carreiras musicais e, neste ano, lançaram um clipe juntos.

Vale destacar o assassinato do cantor paulista MC Daleste conhecido por seus funk ostentação. O cantor dos sucessos “São Paulo” e “Gosto mais do que lasanha” foi baleado na barriga na noite de 6 de julho de 2013, em Campinas, ao fim de um show gratuito com cerca de 3 mil pessoas. O cantor estava conversando com o público quando foi atingido, e chegou a ser levado ao centro cirúrgico, mas não resistiu. A policia não pegou o assassino, mas afirmou que foram três disparos e que, com certeza, o atirador queria atingir especificamente o artista.

Já para finalizar com questões mais atuais, é importante falar da prisão do DJ Rennan da Penha, um dos maiores personagens do funk atual. O idealizador do Baile da Gaiola foi levado sob a acusação de atuar como olheiro, avisando o pessoal quando a polícia ia subir o morro, e de que as músicas dele faziam apologia ao uso de drogas, incitando que o Baile da Gaiola seria uma forma de atrair as pessoas ao tráfico. O site do Kondzilla publicou uma matéria explicando o caso do funkeiro e falando de operações da polícia que aconteceram no início de 2019 para acabar com o baile funk.

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Aos olhos da lei

Entre as formas de preconceitos e problemas que a Justiça encontrou com a cultura do funk, podemos destacar alguns projetos de leis que entraram em vigor. Em 2000 foi publicado o projeto da lei Álvaro Lins que proibia a realização dos bailes sem a autorização e supervisão de autoridades policiais no Rio de Janeiro, o que acabou por se estender à festas “raves” em 2007. Também vale ressaltar sobre a lei 5.544/09 sancionada em setembro de 2009 no Rio de Janeiro, que define o funk como movimento cultural e musical de caráter popular. Essa conquista em prol dos direitos dos funkeiros foi da Associação dos Profissionais e Amigos do Funk (APAFunk) e foi registrada no livro “Funk-se quem quiser: no batidão negro da cidade carioca”. Em 2017, a sugestão de um projeto de lei que criminalizava o funk atingiu 20 mil assinaturas, chegando ao número mínimo para ser encaminhada para debate dos senadores. O projeto do empresário Marcelo Alonso classificou o gênero musical como crime de saúde pública à criança, ao adolescente e à família. A Comissão dos Direitos Humanos não transformou a sugestão em projeto de lei, pois iria diretamente contra a liberdade de expressão esculpido no artigo 5º da Constituição, inciso IX.

(segue)

Reportagem produzida por Bibiana Rigão Iop e Wander Schlottfeldt na disciplina de Jornalismo Investigativo, com orientação da professora Carla Torres.