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Santa Maria, RS, Brazil

MA, a travessia

Mover-se é estar entre. Foto: Neli Mombelli

 

O espaço em branco na pintura, o silêncio que antecede o refrão, o corredor que leva ao templo, o tempo de “não-ação” da coreografia, o terceiro elemento na dualidade do “ser ou não ser”. Nem o primeiro, nem o segundo: a fronteira entre eles, o lugar “vazio”. Nem um, nem o outro: o “entre”, a vida que habita o “nada”. Esse é o Ma, elemento que permeia toda a cultura e boa parte da estética japonesa. Mais que um conceito, um senso comum que contraria o Ocidente e sua obsessão pela dualidade, uma possibilidade que abraça a contradição e o excluído. Mais que verdadeiro ou falso, passado ou presente, céu ou inferno, vida ou morte. É o que dá sentido ao todo: sem a parte branca, a pintura não faz sentido; sem o hiato no momento certo, a música não encanta; sem um caminho de preparação, a energia do templo não será absorvida; sem a pausa, a dança não tem ritmo; sem o terceiro elemento, eis a questão.

O Ma é apaixonante para quem já não vê a menor graça no 8 e no 80 e há tempos não se emociona com a declaração escancarada e com a janela completamente aberta. Não é sobre gostar do morno, pelo contrário, é buscar intensidade no que está além do óbvio. Nem desconhecido, nem apresentado; eu quero o que é preciso reconhecer, aquilo que depende mais da minha sensibilidade em ver do que da habilidade do outro em mostrar. Precisamos falar sobre o meio – se o “completo” é o copo cheio, o “vazio” é o copo ilimitado. Se o completo é parte, o vazio é inteiro. Incorporar o terceiro e entender o excluído como um elemento necessário é admitir que o ápice da nossa última conversa foram os 10 minutos de silêncio entre as tuas e as minhas palavras. E quando um entende o silêncio do outro, já não importa se não estamos completos. O que importa é que somos inteiros.

A tua ausência está sentada ao meu lado no avião, a tua falta deixa a casa cheia e o teu sumiço me visita todos os dias. Onde não há nada é que o tudo se esconde. O amor não faz milagres, não preenche vazios, não dá beijos no pescoço. O amor não é tempo, não é espaço, não é presença ou saudade. Ao descobrir que as respostas e certezas não estão no primeiro beijo, alimentamos a esperança de que elas estejam no último. Não estão! Quem não presta atenção no universo entre um e outro talvez nunca se encontre, por isso eu celebro o teu ir e vir. Quando você pega a sua mochila, entra no táxi e diz “rápido, antes que eu desista de ir embora”, o amor assume a sua afinidade com o Ma: nem chegada, nem partida; o amor é travessia. Eu deixo a janela entreaberta, descubro que é melhor ser inteira que estar completa, reconheço as lições pelo caminho e te digo, sem precisar falar nada, que a tua travessia para sempre, sempre, sempre… me atravessará.


Manuela Fantinel tem 22 anos e é jornalista egressa da UFN. É coautora do livro Cronicaria e atualmente mora em Goiânia.

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Mover-se é estar entre. Foto: Neli Mombelli

 

O espaço em branco na pintura, o silêncio que antecede o refrão, o corredor que leva ao templo, o tempo de “não-ação” da coreografia, o terceiro elemento na dualidade do “ser ou não ser”. Nem o primeiro, nem o segundo: a fronteira entre eles, o lugar “vazio”. Nem um, nem o outro: o “entre”, a vida que habita o “nada”. Esse é o Ma, elemento que permeia toda a cultura e boa parte da estética japonesa. Mais que um conceito, um senso comum que contraria o Ocidente e sua obsessão pela dualidade, uma possibilidade que abraça a contradição e o excluído. Mais que verdadeiro ou falso, passado ou presente, céu ou inferno, vida ou morte. É o que dá sentido ao todo: sem a parte branca, a pintura não faz sentido; sem o hiato no momento certo, a música não encanta; sem um caminho de preparação, a energia do templo não será absorvida; sem a pausa, a dança não tem ritmo; sem o terceiro elemento, eis a questão.

O Ma é apaixonante para quem já não vê a menor graça no 8 e no 80 e há tempos não se emociona com a declaração escancarada e com a janela completamente aberta. Não é sobre gostar do morno, pelo contrário, é buscar intensidade no que está além do óbvio. Nem desconhecido, nem apresentado; eu quero o que é preciso reconhecer, aquilo que depende mais da minha sensibilidade em ver do que da habilidade do outro em mostrar. Precisamos falar sobre o meio – se o “completo” é o copo cheio, o “vazio” é o copo ilimitado. Se o completo é parte, o vazio é inteiro. Incorporar o terceiro e entender o excluído como um elemento necessário é admitir que o ápice da nossa última conversa foram os 10 minutos de silêncio entre as tuas e as minhas palavras. E quando um entende o silêncio do outro, já não importa se não estamos completos. O que importa é que somos inteiros.

A tua ausência está sentada ao meu lado no avião, a tua falta deixa a casa cheia e o teu sumiço me visita todos os dias. Onde não há nada é que o tudo se esconde. O amor não faz milagres, não preenche vazios, não dá beijos no pescoço. O amor não é tempo, não é espaço, não é presença ou saudade. Ao descobrir que as respostas e certezas não estão no primeiro beijo, alimentamos a esperança de que elas estejam no último. Não estão! Quem não presta atenção no universo entre um e outro talvez nunca se encontre, por isso eu celebro o teu ir e vir. Quando você pega a sua mochila, entra no táxi e diz “rápido, antes que eu desista de ir embora”, o amor assume a sua afinidade com o Ma: nem chegada, nem partida; o amor é travessia. Eu deixo a janela entreaberta, descubro que é melhor ser inteira que estar completa, reconheço as lições pelo caminho e te digo, sem precisar falar nada, que a tua travessia para sempre, sempre, sempre… me atravessará.


Manuela Fantinel tem 22 anos e é jornalista egressa da UFN. É coautora do livro Cronicaria e atualmente mora em Goiânia.