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Por que meu beijo incomoda?

Os personagens Wiccano e Hulking em Vingadores: a cruzada das crianças, ilustrados por Jim Cheung

No início deste mês, o prefeito da cidade do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, determinou que a história em quadrinhos Vingadores: a cruzada das crianças fosse recolhida da Bienal do Livro. O motivo, segundo ele, é que a HQ de super-heróis, em que dois personagens homens se beijam, tem “conteúdo sexual para menores”. Além disso, o prefeito ordenou que qualquer obra com abordagem LGBTQ+ fosse embalada em plástico preto e avisada como “conteúdo impróprio”.
Mas a tentativa de censura de Crivella não deu muito certo. A resposta veio do público que, no dia seguinte, em menos de meia-hora, esgotou todos os exemplares da HQ na Bienal do Rio de Janeiro. Quando os fiscais, mandados pelo prefeito, chegaram ao festival literário, nenhum exemplar foi encontrado. Em nota, a Bienal afirmou que o espaço é democrático e reconhece todos os tipos de literatura.
O ato de censura viralizou na internet. A imagem da HQ, com os dois personagens se beijando, era encontrada facilmente nos feeds das redes sociais. O youtuber Felipe Neto comprou cerca de 14 mil livros com temáticas LGBTQ+  e distribuiu de graça na Bienal. As obras distribuídas por Neto estavam em embalagem preta, com o aviso: “este livro é impróprio para pessoas atrasadas, retrógradas e preconceituosas”, uma forma de ironizar o pedido de Crivella. Além disso, a imagem do beijo estampou a capa de um dos maiores jornais do país, a Folha de São Paulo.
Ao limitar o conhecimento e o acesso a diversidade, a atitude de Crivella demonstra a censura explicita. Desde a ditadura militar livros não são censurados dessa maneira. O prefeito simplesmente decidiu, que o beijo entre os dois personagens na HQ, era inapropriado para menores de idade e que o conteúdo era sexual. Mas desde quando beijo é pornografia? Um beijo no livro não vai influenciar uma criança, e sim mostrar outras relações afetivas, as quais uma grande massa conservadora tenta esconder.
Em minha existência, convivi e fui “influenciado” por uma sociedade heteronormativa, assistindo muito mais do que um beijo entre pessoas cis-heterossexuais na televisão, por exemplo. Quem não lembra da banheira do Gugu na década de 1990? Um programa na tardes de domingo, que seria “para a família”, exibia homens e mulheres seminus a procura de um sabonete na banheira. E vejam só, mesmo assistindo a banheira do Gugu, não sou ou “virei” heterossexual.
Crivella, ao ordenar os fiscais a retirarem livros da Bienal, nos mostra o quão difícil é ser LGBTQ+, principalmente no último ano. Nosso amor, ou o nosso beijo não machuca ninguém. Além disso, não se faz política com religião. As atitudes de Crivella em censurar o nosso beijo, estão ligadas a suas ideologias, carregadas de preconceito e com o pensamento de que ainda vivemos nos tempos em que a homossexualidade era proibida.
Censurar livros com temática LGBTQ+ é um perigo a nossa democracia e liberdade. O conservadorismo nos assombra, e as minorias são as primeiras vítimas. Vale lembrar, que esse tipo de censura contra a diversidade não é primeira vez. Em um caso mais recente, no ano de 2017, a exposição Queermuseu foi censurada em Porto Alegre, respondendo a críticas de grupos que viram nas obras “apologia a pedofilia, zoofilia e blasfêmia”.
Mas por que o nosso beijo incomoda? Ele incomoda a partir do momento em que ocupamos espaço. O conservadorismo não quer que tenhamos direitos. Para eles, nosso lugar é e sempre será no armário. Romper com padrões heteronormativos é afrontar uma estrutura baseada na opressão das minorias. Um beijo gay incomoda, pois desestabiliza uma lógica de dominação não consentida, que coloca a homossexualidade como imoral. O ato de censurar, é assegurar que as LGBTQ+ não tenham liberdade. É limitar o conhecimento.
Muito mais que a censura, o ato de Crivella é a LGBTfobia escancarada, ou melhor, mascarada como “preocupação com as crianças e a família”. A atitude só comprova um pensamento retrógrado, no qual coloca as LGBTQ+ como pessoas que não são dignas do direito ao afeto. O problema não é o beijo em si, mas o fato de serem dois homens. Por mais que o Supremo Tribunal Federal nos assegure algum tipo de direito, a política conservadora sempre acha uma brecha para ferir tudo que se refere a diversidade. A todo instante tentam nos intimidar.
A repercussão internacional desse caso, talvez seja o reflexo de um sensibilização para/com o combate a LGBTfobia. Receber o apoio de inúmeras pessoas, só nos fortalece e mostra que não estamos sozinhos. Se a tentativa é nos colocar no armário, sentimos muito, mas não vai ser dessa vez. Nunca mais. Não podemos deixar espaço para o preconceito se materializar. Nosso beijo vai continuar rompendo barreiras. Vamos ocupar os livros, a televisão, as ruas e qualquer espaço que for nosso por direito.
Amor não deve ser censurado!

 

Deivid Pazatto é jornalista egresso da UFN, pós-graduando em Estudos de Gênero na UFSM e militante do movimento LGBTQ+. Foi repórter da Agência Central Sul e monitor do Laboratório de Produção Audiovisual (Laproa) durante a graduação.

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Os personagens Wiccano e Hulking em Vingadores: a cruzada das crianças, ilustrados por Jim Cheung

No início deste mês, o prefeito da cidade do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, determinou que a história em quadrinhos Vingadores: a cruzada das crianças fosse recolhida da Bienal do Livro. O motivo, segundo ele, é que a HQ de super-heróis, em que dois personagens homens se beijam, tem “conteúdo sexual para menores”. Além disso, o prefeito ordenou que qualquer obra com abordagem LGBTQ+ fosse embalada em plástico preto e avisada como “conteúdo impróprio”.
Mas a tentativa de censura de Crivella não deu muito certo. A resposta veio do público que, no dia seguinte, em menos de meia-hora, esgotou todos os exemplares da HQ na Bienal do Rio de Janeiro. Quando os fiscais, mandados pelo prefeito, chegaram ao festival literário, nenhum exemplar foi encontrado. Em nota, a Bienal afirmou que o espaço é democrático e reconhece todos os tipos de literatura.
O ato de censura viralizou na internet. A imagem da HQ, com os dois personagens se beijando, era encontrada facilmente nos feeds das redes sociais. O youtuber Felipe Neto comprou cerca de 14 mil livros com temáticas LGBTQ+  e distribuiu de graça na Bienal. As obras distribuídas por Neto estavam em embalagem preta, com o aviso: “este livro é impróprio para pessoas atrasadas, retrógradas e preconceituosas”, uma forma de ironizar o pedido de Crivella. Além disso, a imagem do beijo estampou a capa de um dos maiores jornais do país, a Folha de São Paulo.
Ao limitar o conhecimento e o acesso a diversidade, a atitude de Crivella demonstra a censura explicita. Desde a ditadura militar livros não são censurados dessa maneira. O prefeito simplesmente decidiu, que o beijo entre os dois personagens na HQ, era inapropriado para menores de idade e que o conteúdo era sexual. Mas desde quando beijo é pornografia? Um beijo no livro não vai influenciar uma criança, e sim mostrar outras relações afetivas, as quais uma grande massa conservadora tenta esconder.
Em minha existência, convivi e fui “influenciado” por uma sociedade heteronormativa, assistindo muito mais do que um beijo entre pessoas cis-heterossexuais na televisão, por exemplo. Quem não lembra da banheira do Gugu na década de 1990? Um programa na tardes de domingo, que seria “para a família”, exibia homens e mulheres seminus a procura de um sabonete na banheira. E vejam só, mesmo assistindo a banheira do Gugu, não sou ou “virei” heterossexual.
Crivella, ao ordenar os fiscais a retirarem livros da Bienal, nos mostra o quão difícil é ser LGBTQ+, principalmente no último ano. Nosso amor, ou o nosso beijo não machuca ninguém. Além disso, não se faz política com religião. As atitudes de Crivella em censurar o nosso beijo, estão ligadas a suas ideologias, carregadas de preconceito e com o pensamento de que ainda vivemos nos tempos em que a homossexualidade era proibida.
Censurar livros com temática LGBTQ+ é um perigo a nossa democracia e liberdade. O conservadorismo nos assombra, e as minorias são as primeiras vítimas. Vale lembrar, que esse tipo de censura contra a diversidade não é primeira vez. Em um caso mais recente, no ano de 2017, a exposição Queermuseu foi censurada em Porto Alegre, respondendo a críticas de grupos que viram nas obras “apologia a pedofilia, zoofilia e blasfêmia”.
Mas por que o nosso beijo incomoda? Ele incomoda a partir do momento em que ocupamos espaço. O conservadorismo não quer que tenhamos direitos. Para eles, nosso lugar é e sempre será no armário. Romper com padrões heteronormativos é afrontar uma estrutura baseada na opressão das minorias. Um beijo gay incomoda, pois desestabiliza uma lógica de dominação não consentida, que coloca a homossexualidade como imoral. O ato de censurar, é assegurar que as LGBTQ+ não tenham liberdade. É limitar o conhecimento.
Muito mais que a censura, o ato de Crivella é a LGBTfobia escancarada, ou melhor, mascarada como “preocupação com as crianças e a família”. A atitude só comprova um pensamento retrógrado, no qual coloca as LGBTQ+ como pessoas que não são dignas do direito ao afeto. O problema não é o beijo em si, mas o fato de serem dois homens. Por mais que o Supremo Tribunal Federal nos assegure algum tipo de direito, a política conservadora sempre acha uma brecha para ferir tudo que se refere a diversidade. A todo instante tentam nos intimidar.
A repercussão internacional desse caso, talvez seja o reflexo de um sensibilização para/com o combate a LGBTfobia. Receber o apoio de inúmeras pessoas, só nos fortalece e mostra que não estamos sozinhos. Se a tentativa é nos colocar no armário, sentimos muito, mas não vai ser dessa vez. Nunca mais. Não podemos deixar espaço para o preconceito se materializar. Nosso beijo vai continuar rompendo barreiras. Vamos ocupar os livros, a televisão, as ruas e qualquer espaço que for nosso por direito.
Amor não deve ser censurado!

 

Deivid Pazatto é jornalista egresso da UFN, pós-graduando em Estudos de Gênero na UFSM e militante do movimento LGBTQ+. Foi repórter da Agência Central Sul e monitor do Laboratório de Produção Audiovisual (Laproa) durante a graduação.