Eu tenho um sonho. Foi com essas palavras que Martin Luther King Jr. tornou-se um dos mais importantes ativistas na luta contra a segregação racial nos Estados Unidos. O discurso proferido em 1963 inspirou o movimento dos direitos civis no país, e ainda é utilizado como referência nos movimentos de luta contra o racismo. Outro ativista e – posteriormente – líder político, Nelson Mandela, também recorreu a discursos que instigavam a movimentação política e reivindicavam o fim do Apartheid na África do Sul. Não apenas discursos que demandam o fim da violência e a luta por igualdade foram marcantes na história: Adolf Hitler apostou na oratória para fomentar a superioridade da “raça ariana” e a construção dos campos de concentração.
Hoje, os discursos ainda ocupam espaço na política. A recorrência a prática discursiva é visível na pandemia do coronavírus, já que líderes políticos precisam aumentar a comunicação e a transparência com a população. Porém, os discursos proferidos durante a pandemia também expõem os conflitos inerentes da sociedade contemporânea. Eliane Brum explica que a crise da palavra, resultado da era da pós-verdade é um exemplo. Nesse momento, as emoções e as crenças pessoais assumem maior relevância diante de fatos objetivos, e as consequências não tem respaldo apenas no processo político, mas também na saúde pública.
De acordo com Jonivan de Sá, argumentar e discutir sobre ideias e opiniões é um mecanismo natural e essencial da condição humana. Nesse sentido, quando se traduz essa atividade para a política, o cientista político explica: “o que chamamos corriqueiramente por “discurso” é a alma da política, diz respeito à ideologia, a posicionamento e a tudo aquilo que vise à obtenção de consenso dentro de um determinado grupo”.
O contexto brasileiro: O Coronavírus por Bolsonaro
Desde o início da pandemia, Jair Bolsonaro tem demonstrado em discursos um ceticismo em relação às recomendações das instituições de saúde e organismos internacionais. Em pronunciamento na rádio e na televisão (24/03), o presidente utiliza os termos “gripezinha” e “resfriadinho” para se referir ao coronavírus, e declara que a mídia produziu uma “histeria” ao tratar da propagação do vírus e da necessidade de isolamento social. Em outro momento, quando questionado por jornalistas sobre as mortes por coronavírus no Brasil, Bolsonaro respondeu: “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Sou Messias, não faço milagre”.
O sociólogo Francis Moraes de Almeida entende que Bolsonaro utiliza os discursos como forma de agressão, promovendo, assim, um estado de constante embate. Além disso, revela a apreensão do presidente com o cenário eleitoral. “A preocupação parece ser mais com a sua condição de presidente e a continuidade do exercício de poder, do que necessariamente com o enfrentamento da crise”, interpreta Francis.
Cleber Martins entende que as posições adotadas por Bolsonaro têm o objetivo de gerar controvérsias e reforçar uma política de confronto com grupos políticos adversários e com a ideia de estabilidade e produção de consenso. O professor de ciência política ainda lembra que essa postura fez parte da carreira do presidente: “A lógica do confronto permanente, característica da carreira de cerca de três décadas de Bolsonaro, é reveladora dos interesses e concepções políticas que defende. Todas elas têm como base um processo centralizado de tomada de decisões, de caráter conservador e, em parte, reacionário, com baixa capacidade de gerar diálogo e negociação. Acima de tudo estão os interesses de seus apoiadores, setores empresariais e religiosos”.
O jornalista político Celso Schroder também acredita que as declarações de Bolsonaro como deputado federal já demonstravam posições controversas na prática política. A mídia, segundo Schroder, acabou naturalizando e acolheu este discurso como uma possibilidade de ser aceito socialmente. “Ao negar a pandemia e assumir o risco de produzir um verdadeiro genocídio, Bolsonaro está concretizando o que alguns pensadores chamam de necropolítica, ou seja, a compreensão de que os recursos são escassos, e a humanidade precisa decidir quem viverá e quem morrerá”, conclui Celso.
Outro aspecto presente em discursos de Bolsonaro são declarações falsas ou contraditórias sobre o coronavírus. Não apenas o presidente brasileiro fez uso destas falas. De acordo com reportagem da BBC News Brasil, o discurso de Donald Trump, presidente dos Estados Unidos, compartilha semelhanças com as declarações de Bolsonaro. Ambos minimizaram a doença no estágio inicial e apontaram para o uso de medicamentos ainda não comprovados eficazes para o combate a Covid-19, como a cloroquina e a hidroxicloroquina. Trump, assim como Bolsonaro, promoveu ataque à cobertura da mídia, denominada “mídia fake news” pelo presidente americano. Ainda rejeitam as indicações de especialistas sobre medidas de tratamento e isolamento, e defendem a reabertura do comércio.
Os pronunciamentos dos líderes políticos resultaram em diferentes reações da população. No Brasil, empresários realizaram passeatas para pressionar a abertura do comércio, e apoiadores de Jair Bolsonaro participaram de manifestações pró-governo. Nos Estados Unidos, também ocorreram manifestações com apoio do governo. Além disso, está sendo investigada a morte de um homem que ingeriu cloroquina após ouvir discurso em que Trump reiterou os benefícios do medicamento.
Outra consequência dos discursos adotados pelos presidentes é o desrespeito à quarentena. Em telejornais, são frequentes as reportagens que demonstram aglomerações de pessoas que não estão utilizando máscaras. Na Argentina, uma das medidas adotadas pelo presidente Alberto Fernández, foi o pagamento de multa por descumprimento da quarentena. O país é um dos poucos países que está conseguindo conter o avanço do coronavírus.
Neste sentido, é possível observar que os discursos políticos têm poder de influência, como explana Jonivan de Sá: “Na mesma medida em que discursamos, somos influenciados pelas ideias e opiniões que os outros expressam. Penso que a partir daí já conseguimos supor a relevância disso tudo na política atual, por exemplo, em que nem sempre os discursos fazem sentido, mas mesmo assim têm o poder de convencimento”.
O contexto europeu: A postura de diferentes líderes frente à pandemia
Os discursos políticos também são empregados para a promoção de coalizão social durante a pandemia. É possível observar isso, nos discursos de lideranças políticas europeias. Referências nacionalistas são recorrentes nos pronunciamentos de Emmanuel Macron. O presidente francês citou a expressão “estamos em guerra” inúmeras vezes em pronunciamentos. O primeiro presidente a comparar o momento atual com um estado de guerra foi Xi Jinping, chefe de Estado da China, que denominou o coronavírus como um “inimigo invisível”.
Angela Merkel também incluiu referências nacionalistas nos discursos. A presidente alemã destacou que o combate a Covid-19 se caracteriza como o maior desafio desde a Segunda Guerra Mundial. Nos pronunciamentos, Merkel ainda recorreu a fatos científicos para explicar à população que o isolamento social é necessário para achatar a curva de contágio.
Discursos: Do atual cenário ao posicionamento pós-pandemia
Para Jonivan, a argumentação nacionalista pode variar de acordo com as prioridades e as agendas dos grupos políticos em questão. “Os atores políticos, de uma forma geral, usam o discurso nacionalista como suporte para seus programas, independentemente de posicionamento ideológico. Quando se fala, por exemplo, ‘pelo bem da nação’ já está sendo nacionalista em um certo sentido”, desenvolve o cientista político.
Francis alerta para quando a coesão, pretendida com o discurso nacionalista, provoca preconceitos. “O nacionalismo aliado a xenofobia acaba sendo uma estratégia de coesão social quando empregadas no discurso, ou seja, quando existe uma delimitação do “nós” em relação aos “outros”. A integridade e coesão do nosso grupo se dá em decorrência de um grupo de oposição”, expressa o sociólogo. As recorrentes alusões de Donald Trump quando denomina o coronavírus como um “vírus chinês” é um exemplo da utilização dessa estratégia, e ainda demonstra a permanência da guerra comercial entre os países durante a pandemia.
“Governos conservadores, reacionários, eventualmente autoritários, em geral constroem um discurso capaz de produzir algum grau significativo de coesão. Ao produzir um inimigo fantasioso, porém, em parte, verossímil, como os estrangeiros, o comunismo, etc., conseguem reunir em torno de uma mesma ideia, ainda que superficial, segmentos expressivos do eleitorado e da sociedade. Um dos efeitos disso tudo é a disseminação de posições contra a política, como se tudo pudesse ser classificado como certo e errado de antemão, sem pluralidade e sem controvérsia”, pontua Cleber. Os efeitos dos discursos políticos também são observados nas redes sociais. Jonivan acredita que as redes sociais podem ser consideradas um elemento central para análise de política contemporânea devido ao impacto na propagação dos discursos.
Em contrapartida, Cleber afirma que o impacto das redes sociais na política ainda é um objeto de estudo. “É um campo aberto para o surgimento e efetivação, pelo menos até agora, de lideranças políticas capazes de produzirem uma espécie de relação direta com seu eleitorado, sem ou com pouca mediação institucionalizada. Contexto que vem favorecendo segmentos conservadores, reacionários e, quase sempre, pouco afeitos ao diálogo democrático, tendo uma posição de criminalização da política e uma compreensão superficial sobre a sociedade e sua relação com o Estado”, justifica o professor.
Para Francis, os discursos de Bolsonaro têm como foco os seguidores nas redes sociais. Assim, na medida em que governa olhando para seus seguidores, Bolsonaro também busca alcançar ainda mais pessoas nestes meios. Por essa razão, o sociólogo explica: “a concepção de povo como entidade política não parece estar no horizonte do atual governante. Isto é um problema, já que é inconsistente com o regime democrático”.
Os desafios pós-pandemia também são avaliados pelos especialistas. Francis entende que se deve estudar os cenários apontados no decorrer da história. O sociólogo afirma que tanto nos casos de rompimentos de barragens, quanto no momento atual, já haviam modelos que indicavam riscos e a necessidade de adoção de medidas preventivas. “Ciência era pensada e continua sendo pensada como gasto, e não investimento. É por conta disso, que teremos mais gastos e dispêndio, devido a não ter investimentos prévios em ciência e em um sistema de saúde para contingenciamento de crise”, menciona Francis.
Jonivan aponta para a recuperação da economia e sinaliza o papel fundamental do Estado para lidar com o descompasso entre oferta de mão-de-obra e oferta de vagas de emprego. Para Cléber, os desafios ainda são complexos de estimar, mas ele propõe uma reflexão: “Talvez o maior desafio seja manter e aprofundar a democracia, criando mecanismos mais efetivos para a tomada de decisões coletivas, respeitando a pluralidade”.
* Texto produzido para a disciplina de Jornalismo Especializado, do Curso de Jornalismo da Universidade Franciscana, durante o 1º semestre de 2020. Orientação: Profª Carla Torres.