Por motivo de segurança, usamos pseudônimos nas matérias Foto: Vitória Gonçalves
“Tenho minha faca nos pés e meu facão lá atrás. Não tem como andar com arma de fogo, apesar de saber manusear e ter anos de prática, acho mais arriscado”, desabafa Ricardo*. Nunca parar no exato endereço sinalizado, sempre uma ou duas casas antes e não trabalhar de madrugada. Essas são só algumas precauções que o motorista de aplicativo toma na sua rotina nas ruas de Santa Maria.”
Possivelmente essa seja a realidade dos cerca de 900 mil motoristas de aplicativo no Brasil segundo pesquisa de 2021, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), o que equivale a 8 Maracanãs lotados. Do outro lado da moeda, existem aqueles que fazem parte de redes de proteção, grupos de pessoas que se unem com objetivo de manter a segurança. Um exemplo disso é o grupo Família Madruga, criada em março de 2020 por Nelson*. E ele mesmo explica como foi fundação dessa rede de proteção:
Entrevista realizada com motorista de aplicativo (Madruga):
Mesmo sendo minoria no ramo, Caren* afirma que nunca teve problema algum. “Não tem preconceito, é incrível. 99, Uber e Madruga eu só dirijo para o público feminino, optei de um tempo pra cá, não por ter acontecido alguma coisa, só por um conforto maior. Nunca senti diferença”. Apesar dessa tranquilidade, ela conta que raramente acontecem alguns incômodos, mas sempre a ajuda da Família Madruga aparece. “Já houve casos de pegar passageiros em final de festa e não querer pagar, quer prevalecer, esse tipo de coisa, aí entra a ajuda dos meninos”, ressalta.
Entre esses 164 motoristas, todos são selecionados a dedo pelos administradores do grupo. As regras são impostas a todos antes de aceitarem participar de uma Família e ser monitorado a todo momento que estiver trabalhando.
Com o lema JUNTOS, SOMOS MAIS FORTES e com regras disciplinares rígidas é que o Madruga se sustenta e consegue manter a fidelidade tanto dos usuários quanto dos motoristas. No início haverá um período de teste de 15 dias, onde você utilizará o #FAMÍLIAMADRUGA no carro. Após esse período, se você cumprir as regras, receberá o adesivo oficial. O fato de não obedecer às regras ou dependendo da gravidade do evento, o membro será chamado para conversa e recebe uma advertência, na terceira chamada é retirado do grupo.
Ainda se destaca o zelo dos gestores em manter a qualidade do relacionamento com o cliente e buscar atender corridas com rotas incomuns. Dessa forma exigem que participem de eventos sociais e confraternizações do grupo, usar o Zello (software de comunicação com linguagem de rádio) apenas para comunicar corridas suspeitas e não avisar sobre BLITZ no ZELLO e nem no grupo.
Ainda há regras sobre publicações dentro do grupo que proíbem sobre quaisquer posicionamentos: pornografia, política, futebol, defender plataformas, religião, preconceitos (homofobia, etc.), usar a imagem do grupo em vão, criar grupos paralelos (Zello, WhatsApp, etc, com a finalidade de monitoramento, rastreamento, etc) ou qualquer outro fim, que possa ser caracterizado como um subgrupo dentro do Família Madruga e não discutir no grupo.
Se acostumar com o monitoramento não é uma tarefa fácil, Caren* é responsável pela contratação e demissão do grupo, como sempre esteve presentes em empresas, se sente à vontade desempenhando essa função. “O meu material carrego dentro do carro, tenho minha agenda, minhas anotações, tenho meus adesivos, quando eu vejo algum carro desbotando o adesivo, já tiro a foto e entro em contato para arrumar. Tenho todo suporte dentro do meu carro e entre uma corrida e outra vou me organizando na agenda”, assim a motorista conecta o seu passado com o presente.
O dia a dia
“Já Ricardo* desempenha apenas uma função, a de motorista. E por levar a risca sua rotina, está acima de 90% de seus companheiros de trabalho, segundo relatório enviado pelo próprio aplicativo da 99. “Só tenho três segredos: levantar cedo, tomar banho e ir trabalhar”.
Como os outros do ramo, ele também tem uma meta para cumprir no seu dia a dia e segue o pensamento de aceitar todas as corridas.
““No 99, quando começa a cancelar corridas, parece que eles começam a te deixar meio de lado. O motorista nunca perde, é um real que tu não tem”, afirma.
A famosa ‘meta’ é o que norteia a maioria dos trabalhadores desse ramo. Nelson* explica que foi por isso que mudou completamente sua vida. Em 2003, era dono de uma construtora na cidade de Canoas, cobrava R$750,00 o m², porém com a instabilidade econômica do Brasil, o valor foi caindo até R$450,00 em 2015. Para fins de parâmetros econômicos, a inflação do país saltou de 6,41% em 2014 para 10,67% em 2015. Foi assim que, em 2017, com esse desbalance fiscal, que resolveu migrar para a área de transporte de passageiros com uso de aplicativo de mobilidade que, na época, estava em crescimento exponencial. Ironizado por um amigo que no momento estava lucrando, ele foi incentivado a se aventurar nessa nova jornada. “Vou me reinventar. No primeiro dia tirei R$380″, afirma. A partir daí, desse primeiro ganho, viu a possibilidade de ganhar mais do que no seu antigo trabalho e está até hoje no ramo. Atualmente, a meta de Nelson é de R$350,00 por dia: “Eu corro até atingir minha meta, se for 23h, 00h. Se eu atingir às 2h, vou para casa, durmo e 6h estou de pé de novo”, explica. Além de metas diárias, o motorista também lida com uma meta mensal de R$4.500, “É o que considero saudável para mim”.
O valor de R$ 350,00 diário parece ser a meta buscada entre a maioria. Com Ricardo* também é assim. Ele explica que o motorista que trabalha com vontade, atinge a meta sempre e que quando o movimento está bom sempre é válido continuar trabalhando. Assim é que Ricardo* lucra de R$6.000 até R$7.000 no mês. “Quando eu vou receber o que ganho trabalhando no 99, trabalhando num serviço fixo, não tem. Já trabalhei na Prosegur, transporte de valor e não ganhava a mesma coisa, é bem mais estressante, fora o risco que a gente corre”, destaca.
Nem tudo são flores
Era por volta das 05h30 da manhã enquanto José* dirigia seu Onix prata, em mais um dia de trabalho. Sua profissão? Ele era motorista de aplicativo. José descia a Avenida Presidente Vargas para levar um passageiro aqui, subia a Borges de Medeiros para levar outro passageiro ali, um fim de noite e começo de manhã calmo e pouco movimentado. Até que surge mais uma corrida no monitor do seu celular. O aplicativo da 99 indicava que aquela corrida era de risco, então José*, prontamente pegou o celular, e colocou para gravar aquele trajeto. O celular estava apoiado no suporte para GPS e estava apontado para dentro do carro, dando a visão de toda a parte interna do veículo. O motorista, então, se dirige para o local indicado com uma certa insegurança, porém segue normalmente, ele já tinha feito esse tipo de corrida outras vezes e era um homem experiente. Ele chega no local indicado, e aguarda o passageiro chegar. Após alguns minutos de espera, tendo somente sua rádio para lhe fazer companhia, o passageiro entra e eles seguem para o lugar indicado. O passageiro se chama Alexandre*, de 27 anos, que na ocasião em específico, se encontrava um pouco alterado. Eles então seguem para o endereço, e o homem vai guiando o motorista pelo caminho. Ele fala de maneira alta e com muitas gírias na sua linguagem. Eles então pararam na casa de um amigo desse homem. O jovem coloca a parte do corpo para fora da janela do carro e começa a gritar o nome do amigo. Um tempo depois ele entra no carro, e os três seguem viagem para mais um destino.
Na viagem o homem conversa com seu amigo e ao mesmo tempo com José*. Ele está falando sobre sua história, até que menciona um fato que deixa José* com uma insegurança maior ainda. Ele tinha saído há duas semanas da prisão. Seu crime? Quatro homicídios. O rapaz começa a falar da sua vida na cadeia e como se arrependia de ter vivido tudo isso. Ele tinha passado três anos atrás das grades e havia perdido toda sua família. Ele confessa que o seu primeiro homicídio foi por um homem ter o chamado de “filha da puta”. Por mais que ele demonstrasse arrependimento pelos anos que passou na prisão, sentia um certo orgulho ao comentar sobre as mortes. José*, sentia que o arrependimento do rapaz não era por ter cometido os crimes, mas sim por ter sido pego. O carro para e o homem sai permanecendo somente o seu amigo. José aproveita a brecha para perguntar se eram verdadeiras aquelas informações. O amigo confirma , mas indica que o homem é tranquilo. Ele então cansado de esperar Alexandre, sai do carro e vai buscar ao encontro do amigo.
José* fica alguns bons minutos esperando os dois com o motor do seu carro ainda ligado. Então subitamente Alexandre entra no carro extremamente revoltado. Aparentemente, ele havia sido enganado em um esquema que o fez perder dinheiro. O homem grita e demonstra sua completa insatisfação desferindo insultos e ataques verbais a quem quer que os ouça. Ele então faz uma ligação extremamente agressiva para um ex-companheiro de negócios. Na ligação, ele cobra uma dívida o insultando e ameaçando de morte. Alexandre, diz que o ex-companheiro precisa pagar a dívida e se não o fizer, ele vai na casa matar o próprio, sua mãe e filhos. Alexandre*, revoltado, diz a todo tempo que não tem nada a perder e que se precisar voltar para prisão. José* se sente completamente inseguro e aflito, pois nunca tinha passado por uma situação dessas. José* segue dirigindo calado, pois não quer causar nenhum movimento brusco que possa fazer o homem se revoltar contra ele próprio. Nesse momento, José* só pensa em voltar em segurança para sua mulher e filhos. A noite está fria mas o Motorista está suando e totalmente alerta, sabe que um leve descuido pode custar sua vida. Alexandre*, no auge da sua raiva grita o no telefone e diz: “O QUE? O QUE TU FALOU?”. Ele desliga o telefone completamente transtornado e obriga José* a encostar o carro. José* está confuso e não sabe como reagir. Alexandre*, começa a gritar e insistir cada vez mais para que o motorista encoste o carro. Ele então o ameaça dizendo que vai o matar caso não pare. Ele está muito seguro disso e não tem nada a perder. “PARA O CARRO, PORRA! OU EU VOU TE MATAR”. Ele então encostou a pistola no ombro de José e ele para imediatamente. Ele obriga o motorista a descer do carro o xingando e ameaçando. José* antes de descer do carro, pega o celular que estava gravando toda a corrida. Mas Alexandre*, arranca de sua mão e entra no carro, que agora é seu veículo de para cumprir sua missão.
José* se encontra totalmente devastado, seu carro e todos seus pertences foram subitamente tirados de de suas mãos, mas o que Alexandre* não sabia é que José*, no último momento antes de sair do carro em ato de pura coragem, conseguiu retirar a chave da ignição e levar consigo. O carro de José, possui um sistema chamado keyless, onde o carro só funciona com a chave próxima ao veículo. Então Alexandre*, foge com o carro, mas não vai muito longe. No carro, ele fica sem entender e completamente transtornado, sai do veículo e começa a vasculhar os pertences de José*.
Após escutarem que seu companheiro estava passando por perigo extremo, a rede de proteção da família Madruga foi ativada. A corrida já estava sendo monitorada e os administradores do grupo estavam escutando tudo que o que estava sendo falado na corrida. Imediatamente, com o sinal de alteração do passageiro, o grupo encaminhou veículos para prestar suporte a José. O primeiro que chegou no local foi Rodrigo*, que avistou Alexandre* procurando qualquer coisa que pudesse levar consigo. Então então grita “esse carro é do meu colega!” e instintivamente parte para cima do homem. Ele consegue derrubar Alexandre* e tentar imobilizá-lo, porém, o homem consegue fugir deixando tudo para trás, inclusive o seu próprio celular. Após isso, Rodrigo* foi procurar José* e o encontrou a duas quadras de distância onde estava escondido. José* estava claramente abatido e sem reação. Foi para casa, tomou um banho demorado e ficou pensando em tudo o que tinha passado. José* levou algumas semanas para superar o que tinha vivido e voltar a normalidade, mas quando se passa por um trauma desses, o medo nunca é totalmente superado.
Mesmo com a convivência com o risco e o perigo diariamente, para a maioria dos motoristas de aplicativo de Santa Maria, o maior problema não são os assaltos e o medo de não voltar para casa, mas sim o trânsito. Ricardo* diz que o maior risco não é trabalhar de madrugada e os passageiros: “Eu já dirigi daqui até Fortaleza e voltei, deu 15.700km, passando por várias cidades. O trânsito de Santa Maria é o pior”.
Caren* segue o mesmo pensamento e destaca que, por conta disso, é necessário sempre cuidar do mental, ter controle de si e ainda saber a hora de parar. “O nosso trânsito é bem complicado. É bem cansativo realmente, mas quando tu vê que não tá legal, que tu tá muito estressado, é bom ir pra casa dar uma descansada”, complementa.
Trabalhar diariamente como motorista de aplicativo pode gerar alguns riscos, como vimos no caso de José*. O motorista está exposto e sempre está sujeito a sofrer algum tipo de violência. Porém em alguns casos esse fato sofrer exceções, Nelson* explica que depois de um certo tempo os Madrugas passaram a ganhar um certo respeito nos bairros perigosos da cidade: “Às vezes pedem corrida na Cipriano, por exemplo, e os motoristas não vão. Nós vamos. Porquê às vezes é uma mãe de família que está querendo sair com seu filho ou uma pessoa doente que está querendo ir para o hospital. Então os traficantes enxergaram isso como um “serviço prestado à comunidade”. Então toda vez que veem o adesivo da empresa eles pensam “Madruga não”, explica.
A rede de proteção pode ser um prato cheio para motoristas que querem transgredir as leis, visto que estarão assegurados por um monitoramento em tempo real, dando total segurança para cometer seus crimes. Porém, Nelson* explica que estão sempre monitorando qualquer atitude ou rota suspeita. “Não aceitamos qualquer tipo de envolvimento com drogas. Já denunciamos dois motoristas que foram presos por envolvimento com drogas “, explica. Esse monitoramento se dá através de analisar as rotas do motorista e verificar se existe algum tipo de padrão. Havendo a suspeita de algum tipo de atividade ilícita isso é investigado a fundo e passado para a polícia. Nelson* explica “nós temos uma relação excelente com a polícia. Se identificarmos qualquer atitude suspeita de um motorista nosso, nós entregamos a placa do carro”, conclui.
Mais um ponto que tem feito parte da rotina dos motoristas de aplicativo ultimamente, é a discussão sobre direitos trabalhistas. Em setembro de 2021, o senador Acir Gurgacz (PDT-RO) apresentou um projeto de lei que classifica os motoristas de aplicativo como trabalho intermitente, ou seja, a prestação de serviço de forma esporádica e que deve ser regulado pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Porém, é necessário saber o que os próprios motoristas de aplicativo pensam sobre isso.
Caren* explica que a situação tem que ser bem analisada: “Pelo menos pra mim do jeito que está, está bom, porque dentro disso tem que ver imposto. 99 e tal são corridas de valores bem baixos, então para alcançar um valor X tem que fazer muitas corridas no dia, aí se tu for pagar um valor X alto, não vale a pena”. A motorista conta que utiliza o MEI (Microempreendedor Individual), o que fornece um salário mínimo. “Praticamente não é nada, mas dá pra comer. Todo mundo corre atrás de salário, as pessoas trabalham de 12 a 15h para fazer seu salário”, desabafa.
Para Ricardo* ainda existem mais dúvidas que certezas com essa questão: “Como vai ser feito uma análise em cima desse salário? Como vai ser feito esse trabalho pra ver quanto será o salário? Porque o cara vai trabalhar 5h e eu vou trabalhar 12h e vai ganhar a mesma coisa que eu. Eu acho complicado.”
Reportagem produzida na disciplina de Jornalismo Investigativo, no 2ºsemestre de 2022, sob orientação da professora Glaíse Bohrer Palma.