“Eu sou o filho de Zeus. Sou Apolo: é quem gabo de ser.
Eu vos guiei até aqui sobre o abismo gigante do mar,
Sem planejar nenhum mal, mas levando a este templo abastado,
Que guardareis, pois é meu e honradíssimo pelos humanos.”
Hino à Apolo ,Homero, século VII AEC.
A casa de artes e cultura Solar completou seu biênio no último dia 2 de outubro lançando a exposição comemorativa Solares. O grupo, formado em 2022 abriga o trabalho de diversos artistas, residentes e convidados, buscando no poder da coletividade inspiração e parceria para capturar o mundo material e imaterial nas mais diversas técnicas artísticas ali engendradas. Por mais que a definição passe longe dos casarões nobres do medievo português, a construção de uma família na arte é um grande legado dos dois anos de trabalho conforme ilustra Luciano Santos, artista da casa: “Sempre quisemos um lugar que fosse luz e sempre tivemos esse entendimento que essa luz só poderia ser possível através do trabalho coletivo. A Solar é um estímulo diário para o trabalho , porque é dificuldade em cima de dificuldade pra quem vive de arte e o espaço além de trocas de conhecimento também é um espaço para troca afetiva, uma irmandade, uma família, porque família não é só lanço de sangue, é laço de afeto.”
A luz que irradia nos mais de 18 artistas é circularmente emanada por cada um deles, que se oxigenam, se entrelaçando em inspiração e estima sem deixar de lado suas individualidades, suas posições e expertises, tornando o espaço prolífico em suas produções: “Começamos com monotipia, fomos para gravura, que foi um “boom” aqui dentro do ateliê, e vamos para a cerâmica agora […] Dos mais de 20 trabalhos aqui cada um fez o seu, no momento de expô-los é impressionante, porque parece que desenha-se uma paleta de cores com eles, e não é combinado isso, para tu ver a simbiose, a energia desse grupo”, acrescenta Luciano.
A semente do coletivo germinou do período soturno do pós-pandemia, atravessando múltiplas adversidades para que pudesse não só florescer e fulgurar arte, mas também cultivar novos ramos em um campo até então desconhecido. Atento à pluralidade inerente ao ofício artístico e embasado em muita pesquisa, Léo Roat trouxe à exposição um entrelaçamento entre arte e tecnologia através de uma Ativação de Espaço. Mesclando o hoje supracitado tema da inteligência artificial com as evocações solares, Leo sintetiza o conceito: “A proposta é uma ativação utilizando luminografia , aqui uma projeção em um manequim modificado e a projeção sobre a superfície também atrás do manequim. A construção audiovisual foi feita com inteligência artificial, na trilha, nos efeitos sonoros, nas vozes e no poema em si. A inspiração veio da temática da Solar, os neutrinos, essas partículas fantasmas que nos atravessam viajando através dos raios solares, […] então daí essa ideia de conexão, […] a Solar nos atravessa a dois anos, o sol nos atravessa todos os dias.
As ferramentas de construções imagéticas por comandos e suas adivinhações talvez fossem dignas de competir com os Oráculos, ou minimamente espantosas até para os xamãs mais iluminados, porém, roubado o fogo dos Deuses, os humanos parecem regozijar com as fronteiras agora expandidas de possibilidades mágicas que a tecnologia pode trazer para campos que remontam as cavernas de Lascaux: a arte. Arte que sempre confluiu e se adensou com temas normativos, percorrendo caminhos muitas vezes contraditórios, mas demonstrando que a ética e a estética são muito mais que parônimos. Os dilemas de outrora como os de utilizar cadáveres para estudos anatômicos e consequente emprego na arte, hoje são facilmente resolvidos com poucos comandos. Comandos estes prontamente obedecidos pelos autômatos da modernidade , as máquinas que podem gerar os mais diversos corpos, feições e expressões e que certamente livraria Da Vinci de certas tensões com empecilhos éticos da época.
Mesclando inspirações clássicas e modernas em tela, Márcia Binato explica sua relação recente com a inteligência artificial: “Como eu gosto de pintar figuras humanas, eu preciso de referências. Eu achei a IA uma ferramenta , porque eu pesquiso a referência que eu quero com todas as características que eu quero. E a partir dessa imagem eu começo o meu trabalho , olhando a anatomia , o olhar”. Em relação a ética e reprodutibilidade desse tipo de experimentação com IA Márcia acrescenta: “Uma coisa é usar a IA como referência em um trabalho , outra é fazer uma cópia da IA , porque sim daqui a pouco podemos ter vários artistas com o mesmo resultado e isso não é o ideal. “
Muito além de magia algorítmica, referências clássicas e evocações solares, a exposição contempla uma gama ímpar de trabalhos curiosos e instigantes, que colecionam histórias, momentos agradáveis, discussões e muito aprendizado. A energia única das obras transporta o observador para o ambiente sensorialmente sincrético que o coletivo e o espaço evocam, sendo possível vislumbrar as bênçãos de Apolo e Sara la noire lado a lado, sem conflitos, se complementando , orgulhosos de hecatombes tão bem manufaturadas como as ali expostas.
Em uma jornada fugaz, porém já com traços homéricos, o coletivo coloca arte para ser fitada por olhos experientes e neófitos, com a energia que atravessa, como os neutrinos solares, os que quiserem apreciar e fazer parte da iluminação.
Para essas e inúmeras outras histórias e experiências, a exposição Solares está aberta para visitação até dia 01/11/2024, com entrada franca, no endereço: Venâncio Aires, 344 – Passo d´Areia.
Para mais informações: @solar.artistas.sm
Confira mais imagens da exposição:
Texto e Imagens: acadêmico de Jornalismo da UFN Guilherme Pregardier