Em 1901 foi construído o primeiro conjunto habitacional do Rio Grande do Sul, a Vila Belga, na região Central do Estado. As oitenta e quatro casas foram feitas para abrigar os funcionários da Compagnie Auxiliaire de Chemins de Fer au Brésil, concessionária dos serviços ferroviários no estado.
A maioria dos trabalhadores que construíram a via férrea era de alto escalão e moravam nas casas maiores. Depois, as moradias serviram para os operários que eram chamados a qualquer momento para atender as eventualidades. A proximidade do local de trabalho à moradia era um dos fatores valorizados na época. Segundo o livro Memória Cidadã, a família era uma garantia de produção e ordem. As escolas eram vistas como fundamentais para que fosse disseminado o modo de pensar da classe dominante. Já para que não fosse comprometida a organização imposta pelos empregadores havia uma valorização da religião, de atrações inócuas como o cinema. O esporte também possuía seu espaço de destaque para o futebol, com a criação do Rio-Grandense Futebol Clube. O time era formado por ferroviários.
As casas no estilo Art Noveau, com paredes altas e robustas e com peças e aberturas grandes estão localizadas em quatro ruas: Manoel Ribas, Ernesto Beck, Dr. Wauthier e André Marques. Do total das casas, quarenta são germinadas e tem portas nas fachadas. Nas individuais a porta é na lateral. Algumas residências têm formato retangular, outras em L ou C. A semelhança está no fato de que “todas estão alinhadas junto à via pública e com pequeno recuo lateral.”. Hoje, nenhuma das residências conserva a cor original, cinza. Todas elas têm janelas do tipo guilhotina, algumas com meias venezianas e outras com venezianas inteiras. Os moradores da vila operária não eram proprietários dos imóveis, mas tinham o interesse de ser. Em 1997 seria feito um leilão do conjunto habitacional aos interessados em geral, não só aos ferroviários. Uma decisão judicial anulou esse leilão previsto para agosto de 1997. Em novembro do mesmo ano foi realizado um arremate das casas, mas desta vez a preferência foi dos moradores.
A Cartilha e os critérios de um patrimônio
A Vila Belga foi tombada pelo município em 1988 e, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado (Iphae), em 2000. Em função disso, os moradores precisam preservar as residências. Para a restauração e pintura das casas que em sua maioria, estão em estado precário, os moradores devem pedir uma autorização do Estado e da prefeitura. A licença deve ser pedida a Secretaria de Obras, que ficará responsável pela fiscalização das regras. Após, a liberação dos dois órgãos, o processo de reforma é iniciado.
As modificações nas casas devem seguir as normas da Cartilha da Vila Belga. O manual visa orientar os moradores de como proceder no processo de restauração e do que não pode ser modificado nas construções. Depois de anos esperando pela cartilha, finalmente, os moradores tiveram acesso às orientações das obras em 22 de dezembro de 2008.
Um incentivo através do apoio financeiro
Como forma de incentivar a ação dos moradores no processo de revitalização do espaço público, a prefeitura concedeu desconto de 85% do IPTU para reverter o valor na manutenção das residências. Outro benefício foi a criação de um projeto de revitalização da Vila Belga para deixar o local bem parecido do que era em 1903. A cartilha prevê, entre outros, a retirada de asfalto, que não fazia parte do cenário arquitetônico do local, arborização das ruas, pórticos nas entradas e melhorias na iluminação. O projeto ainda proíbe a passagem de caminhões, e demais veículos pesados, nas vias do conjunto habitacional.
A ideia do projeto aposta no turismo local. Para isso, seria aumentada a largura de todas as calçadas na Vila Belga, além de transformar a rua Dr. Wauthier num calçadão.
A VOZ DO MORADOR…
Fotografar o quê? Se pergunta moradora
Moradores da Vila Belga lamentam a situação de abandono e desleixo com esse patrimônio histórico. A recepcionista, Ivanir Goulart, 47 anos, revela que não encontra importância no fato do local ser tombado patrimônio, pelo descaso em que se encontra. Quanto aos visitantes que vão conhecer e fotografar a Vila Belga ela admite: “ a gente começa a dar risada”, pela falta de conservação.
Paralelepípedos, asfalto ou barro ?
Dorvalino Baptista, 61 anos, mora na Vila Belga desde 1997. O ferroviário aposentado conseguiu a casa por meio do leilão e quis adquirí-la por gostar do local. A retirada do asfalto para substituição por paralelepípedos foi questionada por ele. Segundo o morador, quando construíram a Vila Belga aquela rua era em barro e os paralelepípedos não trariam a originalidade. Além disso, também reclama da trepidação causada por veículos pesados e garante que até comboios militares passam pelo local a noite. O morador reclama do abandono por parte dos órgãos públicos ao afirmar que os consertos de buracos próximo as suas casas já foram feitos por ele além de citar a falta de limpeza das ruas. O morador, que estava reformando sua casa garante que a rua bem florida e com árvores bem podadas são resultado da união dos moradores da quadra na tentativa de deixar o local mais agradável.
Milho: do protesto ao cardápio
Paulo Cavalheiro é conhecido por “guelhudo” na Vila Belga. O apelido foi dado ao morador devido ao seu fanatismo de torcedor do Internacional. Cavalheiro é um dos moradores mais antigos do conjunto habitacional, O ferroviário aposentado nascido em Santana do Livramento mora há 28 anos em Santa Maria e foi membro da diretoria da Associação dos Empregados da Viação Férrea durante doze anos. Cavalheiro é vizinho do clube que hoje está abandonado, mas o morador guarda boas lembranças dos bailes e saraus da época. Paulo costumava levar toda a família para o clube e relembra com nostalgia a época. Entre as histórias do morador existe o dia que os moradores se reuniram e como forma de protesto ao estado deplorável da rua e plantaram um milharal. A manifestação não teve resultado em compensação, com seu bom humor, Cavalheiro afirma que a vizinhança teve milho verde no cardápio por um bom tempo. Após mais um pouco de conversa na frente de sua casa ele nos conta que na época que colocaram o asfalto nas ruas da Vila Belga, a obra começou e terminou em dois dias e ele lembra: “foi só pra esperar o homem”. O homem a que se refere era o governador Antônio Britto.
Patrimônio histórico e igualdade
A ex-presidente da Associação dos Moradores ferroviários da Vila Belga e tecnóloga em Gestão Pública, Idalina Mirasso acredita que a Vila Belga, como sendo um patrimônio histórico precisa se caracterizar pela igualdade. Ela sinaliza que umas das maiores dificuldades é conseguir entrar em um consenso entre os moradores já que as casas são germinadas e o poder aquisitivo e também a preferência de cor da fachada difere-se muito entre os moradores. “ Um patrimônio histórico preservado independe da condição social”, assim a moradora se refere ao fato de que algumas moradias estão sendo preservadas e reformadas e outras não. Além disso, ela acredita que está sendo priorizada apenas uma rua, a Manoel Ribas, que está incluída no projeto de revitalização da Avenida Rio Branco.
Um resgate da infância
Carlos Alberto da Cunha Flores, conhecido por Kalu, pode ser encontrado nas oficinas de artesanato e também nas feiras da cidade. Afinal, quem nunca experimentou as cocadas de maracujá, quebra-queixo e tantas outras? O educador é um dos mais novos moradores da Vila Belga. Seu pai fazia chapeamento dos trens. Embora não tenha morado quando pequeno no conjunto residencial, minutos de conversa revelam uma adolescência e juventude que tem a Avenida Rio Branco como cenário. O avô foi fundador da biblioteca da Vila Belga e os estudantes se encontravam ao redor da estação ferroviária para viajarem de trem. Kalu conta a vantagem da época: “ Eu não pagava passagem porque meu pai trabalhava para a Viação Férrea.” Para ele, morar na Vila Belga hoje é um resgate da infância e muitas histórias que passam pelo baile no clube, passeata dos ferroviários na Avenida Rio Branco e até mesmo a ditadura. Kalu acredita que o poder público deveria envolver-se mais com a denominação “patrimônio histórico” e não deixar apenas nas mãos dos moradores. “Os caminhões estão recolhendo lixo”. A afirmação do morador diverge das placas que são encontradas nas ruas (foto ao lado).
Descaso surpreende visitante
O neto e filho de ferroviário, Jean Kalel tem 24 anos e nasceu na Vila Belga. Atualmente, o garçom reside em Florianópolis e costuma visitar os familiares todos os anos. Ele se mostra indignado com o declínio da preservação estética do patrimônio histórico. “ Cada vez que eu venho está pior e o pessoal não cuida.” Os parentes de Jean moram na rua que tem o mais difícil acesso e no mesmo lugar onde estava prevista a construção de um calçadão.
A mobilização social e a comunidade
Valmir Francisco Tavares Borges é presidente da Associação do Moradores Ferroviários da Vila Belga desde janeiro de 2010 e mora em uma das casas do patrimônio histórico há cerca de dez anos. Borges ingressou na Viação Férrea aos catorze anos como aluno aprendiz e trabalhou ao total trinta anos passando pelas funções de telegrafista, maquinista e controlista. O ferroviário ressalta que os moradores pagavam uma taxa de seis por cento de seus salários para a conservação das moradias. Quando era necessária algum ajuste ou reparo nas casas, a própria companhia , que era dona das residências disponibilizava a mão-de-obra. Uma das lutas do presidente é pela liberação da área de esportes da Associação dos Empregados da Viação Férrea. A área social e esportiva foi interditada pelos bombeiros pela inadequação às normas de segurança necessárias. Borges argumenta para que uma nova vistoria seja feita para que uma possível liberação aconteça somente na área de esportes. Conforme o ferroviário aposentado está sendo montada uma biblioteca. Já foram arrecadados 150 exemplares com apoio dos moradores.
A VOZ DO ESCRITÓRIO DA CIDADE…
A preservação e revitalização da Vila Belga contempla as ações de órgãos da esfera municipal e estadual. Logo, casar medidas propostas por cada deles tornou-se um problema. No que se refere às fachadas, sua restauração é de responsabilidade dos moradores, como prevê a legislação municipal. Para preservar as edificações, os proprietários recebem um incentivo da prefeitura, um desconto no Imposto Predial Territorial Urbano (IPTU). Contudo, eles consideram o valor inexpressivo, em relação aos custos gerados para manter a integridade da arquitetura Art Noveau
De acordo com a Diretora de Planejamento do Escritório da Cidade, Cheila Comiran, o local tem um potencial turístico valioso e a prefeitura, dentro de suas limitações, tenta aproveitá-lo. Para isso, foi organizado o projeto de revitalização do local. O que impede esse andamento são as diferentes vontades entre setores responsáveis pela qualificação assim como a fiscalização do projeto. As divergências entre Instituto Patrimônio Artístico Histórico (IPHAE), prefeitura e demais organismos emperraram o andamento do projeto. Um exemplo é a iniciativa de construir um pequeno calçadão na Rua Doutor Wauthier. O instituto é contra a proposta, pois vai de encontro com as características arquitetônicas da localidade.
Mas há uma luz no fim do túnel, Cheila explica que o projeto foi readaptado pelo Escritório da Cidade e, hoje passa por avaliação pela Caixa Econômica Federal, para a liberação da verba. A partir de então, será dado início as processos burocráticos que envolvem o andamento das obras, mais um obstáculo.
A fachada desta residência apresenta irregularidades.Conforme o documento elas não poderiam exceder a fachada: as grades e elementos de segurança poderão ser colocados desde que não sejam fixados na fachada. Estas deverão ser colocadas nos caixilhos.
Conforme Cheila Comiran, a construção da garagem (que aparece ao fundo da foto) está irregular pois foi construída sobre uma sanga sem autorização da prefeitura. A obra seria um dos motivos desencadeadores do buraco no calçamento.
Já as gateiras, segundo a Cartilha da Vila Belga: deverão ser limpas e desobstruídas. No caso de ocorrer aterramento no piso interno deverão ficar como elemento decorativo.
Já essa gateira está irregular porque os respiradores devem ser com tela , como mostra a foto acima, ao contrário em que esta utiliza-se tijolo.
A calçada que aparece na foto está regular ao se levar em consideração o aspecto da pedra utilizada, segundo a Cartilha da Vila Belga, o correto é a utilização da pedra-grês.
As telhas que deveriam ser utilizadas na cobertura das casas da Vila Belga são de cerâmica tipo capa-canal. Na fotografia o telhado foi alterado, o correto seria a utilização da estrutura da extremidade no lado direito mostra a telha que está dentro das regularidades da cartilha.
Nesta casa, o telhado também foi modificado.
Fontes de pesquisa
- Jornal: Diário de Santa Maria
- Livro: Memória Cidadã Vila Belga
Fotos:
- Denise Braga Lopes
- Matheus Rivé