Bullying, pressão social, falta de amigos, problemas familiares, machismo, relacionamentos, estupro e depressão. Estes foram alguns dos motivos que fizeram a adolescente Hanna Baker cometer suicídio, e registrar, em fitas, os 13 motivos que a levaram a tomar esta irreparável decisão.
É verdade que pode soar macabro em primeiro momento. Mas é este o pano de fundo que toma conta da obra literária e fictícia de nome 13 Reasons Why, escrita pelo norte-americano Jay Asher, em 2007, e que recentemente ganhou cores graças a uma adaptação televisiva feita pela empresa provedora de conteúdo audiovisual em sistema de streaming, a Netflix.
Para além dos 13 episódios, que compõem a primeira temporada da série e que remontam a dor e a angústia das ações de todos os “responsáveis” por causar feridas tão profundas em Hanna, o material audiovisual claramente se vende como produto que visa à prevenção ao suicídio, e, também, como meio para que este tema tabu ganhe maior visibilidade. Consegue, entretanto, atingir esses objetivos?
Faz-se necessário, primeiramente, nos perguntarmos sobre a forma como são desenhadas as questões relacionadas ao suicídio em nossa sociedade. Vejamos. Este tema é, sempre foi, e se projeta ainda como um grande tabu que esta longe de ter fim. Por isso, de cara, faço uma breve provocação: quantas foram as vezes que este foi um tema de debate em âmbito familiar, escolar ou social na sua vida?
A cada 40 segundos, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), uma pessoa tira sua própria vida no mundo. Isso representa um número assustador de 800 mil mortes por ano. E se isso ainda não o surpreendeu, remontarei de forma mais dura. Trata-se do equivalente a quase três vezes a população de Santa Maria. Ainda assim, por incrível que pareça, o tema suicídio esta longe de receber o foco e a visibilidade que merece, e é aí que entra a principal contribuição da série: o debate generalizado.
Problematizar os 13 porquês (tradução literal do título da obra) significa encarar a produção audiovisual da Netflix como uma tentativa de trazer à tona o debate sobre o suicídio, e a forma de nos visualizarmos como potenciais responsáveis pelas feridas que podemos estar causando nos outros. Aliás, diria mais, trata-se de repensar sobre quem somos, o que queremos e porque fazemos ou deixamos de fazer coisas. Beira o existencial!
Não é fácil, e ninguém disse que seria simples “digerir” a temática. Assistir aos 13 episódios da série em nenhum momento soa como entretenimento. Muito pelo contrário, é como se levássemos “punhaladas” sistemáticas em nossa consciência, nos causando desconforto a cada segundo. Aliás, a produção não poupa na visceralidade com a qual constrói as cenas, que vão desde o estupro até a derradeira cena explícita de suicídio de Hanna (no último episódio). Esta, uma das principais críticas feita à série, quando da possível “romantização” do suicídio (além de outros fatores que não iremos tratar aqui), o que seria um paradoxo com o seu objetivo primário (como afirmaram muitos críticos). Aqui, outro ponto a ser debatido: a abordagem do tema.
Não se pode dizer que a produção é feliz em todas as suas escolhas de direção, isso seria quase um princípio de cegueira, mas como tratar do suicídio de forma confortável? É possível? É realmente factível abordar este tema de forma didática sem ocasionar efeitos colaterais em alguém?
Penso que a verdadeira romantização se dá a partir do momento em que trabalhamos com a metáfora. Por não ser explícita, a metáfora, penso eu, tende a causar o desconforto errado. Ela não é apelativa, mas ela não é legível. E quando algo não é legível, como receber a integralidade da mensagem sendo que a mesma pode ocasionar “ruídos” de comunicação?
Certa ou errada, fato é que a produção da série ocasionou o efeito “histérico” desejado. A simples produção deste artigo opinativo é reflexo disso. Então, em tese, me parece que estamos não apenas problematizando os 13 porquês, mas indo muito além dos questionamentos.
Os retratos sociais que o seriado narra não são ficcionais. É difícil você dizer, caro leitor, que nunca sofreu bullyng; que nunca foi atingido direta ou indiretamente pelo machismo; que desconhece uma história de estupro; que nunca sofreu por pressão social. Mas mais do que isso, é extremamente difícil (diria impossível) que você possa afirmar, com veemência, que nunca foi um “porquê” para alguém. E ser um porquê é ser uma “dor”, e como bem disse Augusto Cury, quando alguém está pensando em suicídio, esta pessoa não quer perder a vida, mas sim, eliminar a dor.
Como homem, minha sexualidade sempre foi colocada à prova, desde sempre. Se fosse mulher, não ficaria surpreso em saber que já fui chamada de “vadia” por simplesmente negar um convite de um garoto. É apenas um ponto. E estas questões são elementos responsáveis por efeito dominó que pode, sim, desencadear histórias como as de Hanna. Aliás, a decisão de suicídio da protagonista da série não foi ocasionada por um evento isolado, foi uma série de situações desastrosas e humilhantes de outros jovens ou pessoas em quem ela confiava. Não é como se tudo acontecesse do nada. Nunca foi e nunca será. Não é brincadeira, não é falta de “surra”, não é covardia, não é fraqueza. Não é culpar a vítima (pois é o que ela é). É entender os motivos para melhorar como ser humano.
Já fui uma estatística de quem sofreu por depressão. Sei exatamente o que é perder a noção das coisas, como se nada mais fizesse sentido. Sei perfeitamente como é se sentir julgado, traído ou humilhado. Sei, lamentavelmente, em como é imaginar um mundo sem sua presença. Com isso, não quero afirmar que cogitei fazer o que Hanna fez, felizmente não cheguei neste ponto, mas se tivesse chegado, saberia exatamente o motivo.
Problematizar os 13 porquês é reconhecer que todos somos Hanna Baker, e também, se não mais, é saber, reafirmo, que já podemos ter sido um “porquê” para alguém. Toda vez que julgamos um amigo, que punimos um colega, que nos vingamos de um irmão, que criamos factoides sobre algum desafeto, que ignoramos a existência de quem claramente precisa de nossa ajuda ou quando fotografamos e publicamos uma foto inapropriada de outra pessoa, nós causamos, direta ou indiretamente, uma grave ferida em alguém. E em comunhão comparativa com à minha obra favorita de Agatha Christie, Assassinato no Expresso Oriente, não foi só uma pessoa que desferiu facadas na vítima do caso investigado pelo detetive fictício Hercule Poirot, foram todos os passageiros que a sangraram.
A produção da Netflix pode não ser a melhor forma de tratar sobre suicídio e demais problemáticas sociais que percorrem o tema. Mas ela é extremamente feliz na medida em que nos faz repensar sobre nossos erros, acertos e inércias. Vai muito além de apontar as falhas. Trata-se de ecoar o discurso de que ninguém, em sã consciência, iria retaliar sua vida por motivos fúteis. E, se me permitem a alusão, se antigamente precisávamos falar sobre Kevin, hoje, precisamos falar sobre Hanna. Precisamos problematizar sobre os porquês, todos eles!
Iuri Patias, acadêmico de Jornalismo