Lar. Além de residência, também representa um local onde as pessoas se sentem à vontade, confortáveis, seguras. Mas e quando esse ambiente dá espaço para a insegura e a incerteza, onde se abrigar e deitar, tranquilamente, a cabeça no travesseiro? Desde 2014, algumas casas têm seus pilares atingidos, no sentido figurado e literal, por operações que atravessam de leste a oeste o cenário santamariense.
As obras da Travessia Urbana de Santa Maria – assim intitulado o maior projeto de infraestrutura viária da região central do estado – mudaram não apenas a rotina de quem transita pelas estradas da cidade, mas também dos moradores que vivem em torno dos trechos em reformas. Com a única certeza de que terão que deixar suas moradias, as famílias aguardam respostas sobre o futuro dividindo porta com maquinários e materiais de construção.
Tânia Valeria Silva e Everaldo Freitas moram há quase uma década na casa construída por eles mesmos, próximo ao trevo da Santa Marta, um dos pontos em que ocorrerão desapropriações de residências. Após o cadastro feito pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT), órgão responsável pela obra, o casal recebeu a última atualização do caso há cerca de três anos. “Isso é o mais angustiante. Tu não sabe o que vai acontecer. A gente não pode pintar a casa, não pode terminar o que a gente queria, colocar o muro. A gente não pode fazer nada, porque se for colocar, sabe que é um dinheiro colocado fora. Eles (DNIT) nos deram um 0800, para ligar. Eu já liguei uma duas vezes. Sempre dizem a mesma coisa ‘não se preocupem, que na rua vocês não vão ficar’. E que eles não podem nos falar mais, porque a ordem está acima deles”, relata Tânia sobre a falta de informações dada sobre a situação vivida.
[dropshadowbox align=”none” effect=”lifted-both” width=”auto” height=”” background_color=”#ffffff” border_width=”1″ border_color=”#dddddd” ]Isso é o mais angustiante. Tu não sabe o que vai acontecer. A gente não pode pintar a casa, não pode terminar o que a gente queria, colocar o muro. A gente não pode fazer nada, porque se for colocar, sabe que é um dinheiro colocado fora. Eles (DNIT) nos deram um 0800, para ligar. Eu já liguei uma duas vezes. Sempre dizem a mesma coisa ‘não se preocupem, que na rua vocês não vão ficar’. E que eles não podem nos falar mais, porque a ordem está acima deles”[/dropshadowbox]
Quando as casas foram catalogadas, os moradores foram comunicados de que poderiam optar entre duas alternativas: realocação ou indenização em dinheiro. Entretanto, após o primeiro contato, as famílias não foram mais contatadas. A angústia se tornou ainda maior pelo avanço das máquinas e materiais, que ameaçam as estruturas das casas. Sem definições, enquanto os operários soldam, concretam e levantam vigas, a população atingida martela o “se”. “Se forem direcionadas a outro local, terão a mesma infraestrutura? Será em algum bairro próximo? Como afetará a rotina de estudo e trabalho?” “Se forem ressarcidos, o valor será suficiente para comprar algum imóvel? Ou por quanto tempo conseguirão se manter de aluguel?”
Everaldo e Tânia não têm planos para o depois porque o presente é incerto. Não sabem em que situação irão partir com as duas filhas. Apenas sabem que precisam partir. Com isso, outra estrutura também se abala, a psicológica. “Às vezes eu estou deitado e olhando tudo. Tudo isso foi eu quem fez. Penso ‘poxa, tem que desmanchar tudo, fiz tão bem feitinho’. Eu fiquei seis meses trabalhando dia e noite. Eu viajava e ficava sem comer, porque eu sabia que se fosse a um restaurante, eu iria pagar uma comida e eu iria perder de comprar uma tomada, um fio. Trabalhei dia e noite para construir aqui, porque não tinha mais como pagar aluguel. Era a única chance que eu tinha de não pagar aluguel. Esse ano tá pesado. Não decidem nada”, conta Freitas enquanto olha para as paredes, que já sentiram o impacto do projeto.
O casal relembra que em vários momentos a residência tremia, em função da vibração causada pelas máquinas que trabalhavam a poucos metros. Vizinhos de Tânia e Everaldo, Lila Maria Flores e Antônio Batista Flores viram as paredes da casa não resistirem. Rachaduras passaram a compor a arquitetura da casa onde viveram por 19 anos. Além das brechas, as telhas também se deslocaram, abrindo espaço para chuva, vento, frio e angústia. “O quarto da minha guriazinha chove igual na rua. Embaixo da cama fica uma lagoa. Eles viram isso aí”, descreve Lila, que notificou o DNIT sobre a situação da casa. O casal divide o terreno com a residência do filho, que também foi atingida pela trepidação das máquinas. Segundo eles, o departamento registrou a situação das moradias, mas não tomou nenhuma providência em relação ao que foi observado.
Quase 15 quilômetros de rodovias fazem parte do projeto de duplicação, correspondendo a trechos das BRs 287 e 158. Com investimento de R$309 milhões do Governo Federal, as obras foram divididas em dois lotes: entre os trevos da Uglione e do Castelinho e entre o Trevo da Uglione até a ponte sobre o Arroio Taquara, perto da Ulbra. Iniciada há cinco anos, a obra tinha o prazo inicial de entrega para 2018. Atualmente, cerca de 70% do projeto está concluído e a nova data para a finalização passou para 2020. Será, somente, nesta fase final que os moradores das casas atingidas saberão seus destinos.
[dropshadowbox align=”none” effect=”lifted-both” width=”auto” height=”” background_color=”#ffffff” border_width=”1″ border_color=”#dddddd” ]O quarto da minha guriazinha chove igual na rua. Embaixo da cama fica uma lagoa. Eles viram isso aí”[/dropshadowbox]
A falta de iniciativa e diálogo pesam sobre o quadro já delicado em que essas famílias vivem. Ainda que sem dia definido, o DNIT anunciou que audiências serão realizadas com a população entre agosto e setembro deste ano. Tânia, Everaldo, Lila e Antônio contaram que souberam das reuniões pela imprensa e que ainda não foram notificados. “Espero que aconteça logo, a nossa casa tá rachando. Está bem complicada a situação aqui. Tem reparo pra fazer na casa, mas fazer agora é botar dinheiro fora. Se dissessem hoje que tem uma casa perto, boa, que valoriza a nossa, eu sairia hoje, daria um jeito” desabafa Flores.
Pode parecer ansiedade excessiva de Flores em querer sair da casa após a definição dos meses de audiência. Contudo, praticamente, meia década da sua vida foi marcada pela incerteza e insegurança como os pilares da sua moradia. Deste período, pouco se ouviu do departamento responsável, a não ser o barulho das patrolas e retroescavadeiras avançando o pátio das casas. Para além de uma localização geográfica, os domicílios carregam histórias, os espaços ocupados têm significados. O atraso para dar satisfações às famílias tornou o processo mais penoso. Como e para onde irão, em que situação, estrutura e condições viverão são algumas das perguntas ainda sem respostas.
Paola Saldanha é egressa do curso de Jornalismo da UFN. Acredita em uma narrativa com protagonismo de diferentes vozes e espaços, uma leitura plural de vidas plurais