Havia um tempo em que a responsabilidade era bem menor e a vida mais feliz. Quando se é criança não temos noção do que nos cerca e pequenas coisas marcam, ficam guardadas eternamente na memória.
Eu tinha meus cinco, seis anos, e estava entrando na pré-escola – o adulto é tão idiota que quando somos adolescentes e queremos logo envelhecer para chegar nessa fase, somos as pessoas mais insuportáveis do mundo-! Enfim, existia a expectativa na família de como eu iria me portar no ambiente escolar. Ganhei uma mochila colorida e uma lancheira dos Comandos em Ação.
Meu lanche era sempre composto de suco, biscoito, um salgadinho ou um bolinho inglês. Ah, essa era minha maior alegria, o bolo inglês. Não era o simples fato de guardá-lo, levar no colégio, esperar o intervalo e comer. Nada disso. Tinha todo um ritual. Meu pai me pegava pela mão e me levava para a padaria do seu Bonetti. Ali eu podia escolher o que queria. E lá estava naquele balcão velho, porém muito conservado, do outro lado do vidro, amarelo, na embalagem branca que dá forma e todo o charme bretão, e eu nem sei realmente se é uma receita inglesa. Hoje penso nisso, naquela época era só o lanche do recreio.
Ontem fui a uma padaria, caminhei direto até o balcão e parei na frente para ver o que tinha. Quatro senhoras me olharam com um olhar nada amistoso, logo fui para o fim da fila. E lá detrás avistei uma pilha enorme de bolinhos. Esperei a minha vez e, desconfiado, pedi apenas um.
Quarenta centavos me valeram uma das lembranças que desde quarta-feira não sai da minha cabeça. O colégio Estadual Getúlio Vargas, o uniforme amarelo, o pai, a mãe, o irmão, meu cachorro Snoopy, seu Bonetti, a professora de nome complicado que não recordo nunca.
Há dois anos passei uma tarde inteira com meu pai. Gostaria de ter lembrado essa história para contar. Conversamos bastante, o clima não era o mesmo, bem pelo contrário, não tinha nem como pensar em bolo inglês.
Cheguei em casa, sentei no sofá, abri o pacote, tirei o papel e dei uma bela mordida que de imediato me mandou para 1995. Eu olhava o mundo e meu pai de baixo para cima, segurando a mão dele e caminhando até a padaria, sentado no carona indo para a aula, trocando a mamadeira por uma pistola de plástico, sentado na bicicleta pedalando sem destino e sem rodinhas após o empurrão que ele me deu. Meu pai me empurrou para a vida. A última vez que peguei na mão dele eu disse: “Eu te amo, pai…”, ele me respondeu: “Também te amo, meu filho”. Aí sim segurei na mão dele e falei mais uma vez “Eu te amo, pai”. E ele foi para a sala de cirurgia. E desta vez quem empurrava era eu, não era uma bicicleta, e o gosto era amargo, bem longe do doce sabor de um bolo inglês e a lembrança não é aquela de infância. É a insuportável memória de um adulto.
Por Renan Maurmann, estudante no curso de Jornalismo/Unifra.
Respostas de 4
“pedalando sem destino e sem rodinhas após o empurrão que ele me deu”
orgulho de ser colega e amiga de alguém tão talentoso assim. Texto perfeito.
Lindo, Renan!!! Não é fácil encarar a vida adulta. Exige muita força e maturidade. Que bom que tu teve (tem). Abração, meu querido. Parabéns pelos belos dizeres!!!
Cada vez que leio esse texto me emociono muito. Hoje já um jornalista
formado e com o mesmo sentimento de gratidão e amor!! Tenho muito
orgulho de ser tua mãe. Continue escrevendo filho,tens muito talento!!
Segue em busca de teus sonhos. Sucesso na profissão que escolheste.