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A partir de 1983, quando o futebol praticado por mulheres foi liberado por lei no Brasil, milhares de meninas buscam por oportunidades tendo que lutar todos os dias por um esporte mais igualitário
Emanuely Guterres e Lavignea Witt*
Por haver a chamada distinção de gênero em diversas atividades do cotidiano, as mulheres tiveram — e ainda têm — que enfrentar muitas dificuldades para exercer algumas delas, que são majoritariamente praticadas por homens. Um exemplo é o futebol. Segundo a Federação Internacional de Futebol (FIFA), o primeiro jogo oficial de futebol entre mulheres ocorreu em 23 de março de 1883, em Crouch End, na cidade de Londres, na Inglaterra. Naquela ocasião, os dois times foram classificados como Norte e Sul, representando as duas partes da cidade em que a partida era sediada. Porém, o futebol já era praticado por homens desde o século XVII.
No Brasil, as mulheres começaram a conquistar seu lugar no futebol entre os anos de 1908 e 1909, quando foram datados os primeiros jogos de futebol com jogadores mistos — homens e mulheres juntos. Conforme noticiado pelo jornal A Gazeta, o primeiro jogo oficial no país entre mulheres ocorreu em 1921. As jogadoras eram dos bairros Tremembé e Cantareira, da cidade de São Paulo.
Segundo o Jornal da USP, em 1941, as mulheres foram proibidas de jogar futebol ou qualquer outro esporte “incompatível com as condições da sua natureza”. O decreto-lei 3.199 de 14 de abril de 1941, foi criado na Era Vargas e vigente até 1983. Contudo, a proibição por lei não parou as jogadoras brasileiras, que continuaram jogando e resistindo ao Estado. Após mais de quarenta anos, em 1983, o decreto foi derrubado graças as muitas mulheres que defendiam que o esporte podia ser praticado por todos, sem exceção.
Desde então, milhares de jovens mulheres buscam por seu espaço dentro do futebol tendo que enfrentar obstáculos que vão desde a dificuldade de inclusão no esporte até os vários tipos de assédio que enfrentam no dia a dia. Por ser praticado por mulheres, o futebol feminino no Brasil é categorizado por muitos como inferior, pois há muita comparação com o esporte praticado pelos homens.
A Universa em Campo da Uol selecionou comentários de leitores postados em reportagens sobre o futebol feminino que mostram o machismo com relação às atletas, muitas vezes em questão da sexualização, e a qualidade do esporte praticado por elas. Abaixo, estão alguns dos comentários postados no site:
“Acho o futebol feminino chato ao extremo. Não tem força física, habilidade e as goleiras aceitam tudo o que é chutado”
“Se tem uma coisa que é certa é que mulher não entende, não joga e não deve opinar em futebol. Não tem nada de machista. Certo é certo.”
“Ninguém gosta de futebol feminino. Mulher comentando futebol, então, é um desastre. Nesse caso sou machista: futebol é pra homem!”
Dificuldades no início de carreira
Após todas as contrariedades que impediam a realização do futebol entre mulheres e as dificuldades durante a busca por uma oportunidade, o esporte foi crescendo entre as jogadoras. Contudo, o cenário não é o ideal e as oportunidades são bem escassas, o que faz com que muitas meninas desistam de seu sonho. É o caso da ex-jogadora profissional Julia Pompeo, de 20 anos. Como a maioria das mulheres que iniciam sua carreira no futebol, Julia começou jogando somente com meninos em uma escolinha de futsal. Ela conta sobre as dificuldades de ser a única menina entre o time e os torneios que participava. “No início foi muito difícil, porque a gente jogava com outros times que também só tinham meninos e eles tinham aquele preconceito… Eu sentia muito isso, por exemplo, os meninos não iam até o final em uma disputa de bola, porque era menina”, relata.
Com o passar do tempo, após conhecer outras meninas que também jogavam futebol, soube que poderia entrar em um time. Então, ingressou no time de futebol feminino do Sport Club Internacional, que era comandado por Duda Luizelli. Julia conta que essa oportunidade foi incrível para seu crescimento dentro do futebol, mas, após um ano dentro do time, rompeu o ligamento e teve que se afastar dos treinos. Após a sua recuperação, voltou a jogar mas desistiu do sonho, segundo ela, por falta de oportunidade.
Em relação ao futebol masculino, as oportunidades de carreira dentro do esporte são bem diferentes, tendo em vista que a maioria dos clubes não investem em equipes femininas usando como justificativa o pouco retorno e visibilidade.
Pensando em ajudar a mudar essa realidade, a Conmebol, em meio às mudanças que implementou em suas competições em meados de 2016, ordenou que os times que disputarem a Copa Libertadores e a Copa Sul-Americana terão de ter pelo menos uma equipe feminina. Sobre o requisito, o documento fala que “o solicitante (a disputar a competição) deverá ter uma equipe feminina ou associar-se a um clube que possua a mesma. Ademais, deverá ter ao menos uma categoria juvenil feminina, ou associar-se a um clube que possua a mesma”.
Além disso, os clubes deverão oferecer apoio técnico e toda a estrutura necessária para as equipes femininas, para que possam treinar e participar de torneios. Segundo Julia Pompeo, essa foi uma decisão muito importante pois mudou os rumos do futebol feminino no Brasil e em toda a América Latina, proporcionando uma maior visibilidade ao futebol feminino.
Investimentos no futebol feminino nos últimos anos
Durante a Copa do Mundo de 2019, realizada na França, onde mobilizou milhares de brasileiros para assistir à seleção feminina, a Fifa revelou que irá realizar um investimento de US$ 1 bilhão na categoria e, mesmo com a pandemia do coronavírus, irá manter o mesmo valor. Segundo o site Rainhas do Drible, a ideia de Gianni Infantino, presidente da Fifa, não é somente realizar o investimento, mas também dobrar o valor da premiação e aumentar as equipes de 24 para 32, para o próximo Mundial em 2023. Contudo, segundo a Forbes, o investimento não é o suficiente para alavancar a categoria feminina de futebol: “Progresso e melhorias vão requerer mais do que só investimentos. A modalidade feminina precisa planejar o futuro em nível nacional e internacional ou correr o risco de virar uma modalidade olímpica”.
Além da falta de oportunidades, a questão dos investimentos também é um fardo que o futebol feminino carrega. Uma situação inusitada que aconteceu em outubro de 2020 chamou a atenção das mídias para esse problema. Pela segunda rodada do Campeonato Paulista de futebol, em 21 de outubro de 2020, na Arena Barueri, o time do São Paulo goleou o Taboão da Serra por 29 a 0.
Apesar de o placar chamar muita atenção, um depoimento dado pela capitã do time do Taboão da Serra serviu para mostrar a dura realidade que os times femininos enfrentam no dia a dia quanto a estrutura dos clubes. Segundo Nini, o time do interior de SP possui pouco investimento e não possui nenhum apoio do clube.
“Em pouca coisa o clube nos ajuda. É mais a vontade da comissão técnica mesmo. Ninguém tem salário, ninguém tem condução. A gente não tem roupa de treino, não tem apoio nenhum do clube. A gente simplesmente usa o nome do clube para participar do Campeonato Paulista porque acredita que é uma oportunidade para as meninas mais novas”, relatou a capitã à FPF TV.
Com os olhares voltados para o futebol feminino durante a Copa do Mundo, muitos temas surgiram. Um levantamento realizado pelo EXTRA no ano de 2019, mostra que os 20 clubes participantes da série A (até então) investiam no máximo 1% de seus orçamentos no futebol feminino. O Santos liderava a tabela sendo o time que mais investiu. O Flamengo investe cerca de R$ 1 milhão, o que equivalia na época ao salário de um mês do Gabigol. Diante dessa situação, com o baixo incentivo e investimento a prática futebolística se torna quase impossível para as jogadoras. Levando assim, a esperança de o futebol se tornar um esporte igualitário em questão de investimentos e oportunidades.
Questão salarial das jogadoras no Brasil
Além da falta de investimentos em equipamentos, lugares para treinos e preparação física, uniformes, entre outros, o futebol feminino também é financeiramente afetado na questão da disparidade salarial.
Segundo o site de notícias da UOL, os contratos de jogadoras de futebol que atuam no Brasil possuem a duração de um ano. Isso quando existe realmente um contrato de trabalho, pois a grande maioria trabalha informalmente. Assim como é raro encontrar clubes que ofereçam carteira assinada às jogadoras. O Corinthians, por exemplo, começou a assinar os contratos de suas jogadoras a partir de 2019.
A negociação, diferentemente dos times masculinos, não é feita a partir da compra de passes das jogadoras. Os contratos de trabalho são firmados entre clube e atleta de forma direta, sem necessidade de compra de transferência. Com a grande visibilidade proporcionada pela Copa do Mundo de 2019, os negócios mudaram consideravelmente, tanto em questão de contratos como de salário, mas a realidade ainda é difícil.
Ainda segundo a UOL, as jogadoras que atuam na primeira divisão do Brasileiro, ganham em média até dois salários mínimos por mês. Ainda que muitos clubes tenham investido um pouco mais no futebol praticado por mulheres, o salário não passa dos R$3 mil. Valores insignificantes perto da folha salarial do futebol masculino. No São Paulo, por exemplo, o total de investimentos em 2019 chegou a menos de dois salários do jogador Daniel Alves, que equivale a R$1,5 milhão.
Além disso, com a pandemia e o futebol paralisado em março, foi o suficiente para alastrar uma enorme crise financeira nos clubes, que afetou todas as categorias de jogadoras. Alguns clubes fizeram até redução dos salários dos jogadores profissionais para tentar amenizar a situação, assim como de jogadoras, mas muitas foram dispensadas durante esse período de crise mais acentuada.
Em abril de 2020, a Confederação Nacional de Futebol (CBF) destinou cerca de R$150 mil para equipes da série A1 e R$50 mil para equipes da série A2, para tentar ajudar na folha salarial das jogadoras. Contudo, dos 52 clubes beneficiados, seis — Audax, Juventus, Autoesporte-PB, Santos Dumont-SE, Atlético-GO, Sport e Vitória — demoraram para repassar os valores para as jogadoras, que eram de R$ 500 a R$ 1000, o que resultou em piora do cenário para as jogadoras. Com a volta dos campeonatos na metade do ano, a situação foi sendo normalizada aos poucos.
Em setembro de 2020, após anunciar as novas dirigentes para as coordenações de competições femininas, o presidente da CBF Rogério Caboclo, anunciou também que a entidade definiu a igualdade entre os valores das premiações entre as seleções masculinas e femininas. A equidade já havia sido adotada na convocação da equipe feminina para o Torneio Nacional da França. Em coletiva, o presidente afirmou que não há mais diferença de gênero em relação à remuneração na CBF.
O assédio dentro dos campos
Um dos problemas dentro do futebol feminino brasileiro é a questão do assédio. Além de sofrerem pelo assédio moral, ao serem questionadas sobre a sua qualidade dentro dos campos, as jogadoras também enfrentam o assédio sexual durante a prática futebolística.
A ex-jogadora Julia Pompeo afirma que nunca sofreu assédio sexual físico, mas algumas situações já a incomodaram dentro de campo. “Sempre foi algo psicológico. Se eu colocava uma legging pra jogar bola, sempre tinha os olhares dos meninos. Algumas vezes já fomos treinar entre 11h e 12h da manhã, um horário com temperatura mais quente, e jogávamos sem a camiseta, somente de top. Os meninos que estavam esperando para usar a quadra no próximo horário ficavam debochando ou gritando palavras de assédio”, relata.
Sobre os comentários pejorativos, a jogadora profissional Elena Mueller, afirma que as mulheres que jogam futebol inevitavelmente precisam ouvir falas machistas, desnecessárias, tentando minimizá-las e fazendo comparações, muitas vezes por falta de conhecimento da própria pessoa em relação ao futebol.
Elena reitera que essas situações acontecem e cabe às próprias jogadoras enfrentarem de cabeça erguida. “Bater no peito, falar eu jogo futebol sim, eu sou mulher e jogo futebol. A mulher tem tanta capacidade como o homem para jogar futebol. O que eu sempre digo em relação a preconceito, é que a gente não se cale. Que se alguém fizer uma brincadeira que não for legal, que digamos que isso não deve existir. Na maioria das vezes os homens não sabem as dificuldades que a gente passa no futebol feminino, então o principal ponto é não se calar”, declara a jogadora.
A inconveniência não vem somente dentro de campo. Podemos citar como exemplo, uma situação recente que aconteceu em dezembro de 2020. Durante o chamado programa “Dupla em debate” da Rádio Grenal, o comentarista Roberto Moure, sugeriu que as atletas do Internacional deveriam usar “fio dental” para jogarem.
Durante o programa, o comentarista disse que as jogadoras que teriam as ‘pernas mais bonitas’ deveriam usar shorts mais curtos para jogar. “Uma sugestão para essas meninas, principalmente do Internacional, que querem usar o calçãozinho ali parecendo o Diego Barbosa. Peçam para confeccionar calções mais curtos, que fica horrível o que vocês estão fazendo. Ah! Mas as pernas são mais bonitas que as dos homens, não tenho dúvidas”.
Os comentários constrangem o apresentador, Flávio Dal Pizzol, que pede desculpas à sua companheira Heloíse Bordin, que era convidada do programa durante o ocorrido. Após o comentário sexista, Moure pediu retratação e disse não haver qualquer intenção de ferir ou ofender as jogadoras, pedindo desculpas pelo seu comentário. A Rádio Grenal também se manifestou, através de uma mensagem, sobre a situação:
“A rádio Grenal completará nove anos de existência em maio de 2021 e, desde a sua estreia, dirigida por uma mulher, que foi uma das primeiras comunicadoras a cobrir futebol no Brasil, a nossa diretora Marjana Vargas, a rádio Grenal foi a primeira emissora de rádio a contar com uma mulher atuando nas jornadas esportivas como repórter de campo. A rádio Grenal detém o título de primeira rádio FM a transmitir uma partida de futebol com equipe exclusivamente formada por mulheres, o que aconteceu na final do Gaúchão feminino do ano passado. A rádio Grenal é apaixonada pelo futebol e apaixonada pelo respeito e pela igualdade de direitos e oportunidades que devem unir a humanidade”, destacou a nota.
Além das jogadoras e das jornalistas esportivas, as profissionais que atuam de outras maneiras dentro de campo também sofrem com as adversidades. A árbitra assistente Luiza Reis, conta que não sofreu com situações de assédio mas que foi muito ofendida em uma ocasião quando errou um lance em um jogo. “Eu comecei a ser muito criticada nas minhas redes sociais pessoais, não por ter errado o lance, mas por ser mulher e ter errado o lance. Então isso foi uma situação em que fiquei bem chateada. Hoje já faz um tempo, já consigo lidar melhor com isso”, relata Luiza. A árbitra ainda destaca que muitas pessoas que frequentam os estádios acabam insultando os árbitros, o que é uma atitude errada.
Com essa e tantas outras situações de assédio que acontecem no dia a dia das mulheres que jogam futebol — que muitas vezes não são divulgadas pela mídia — muitas meninas publicaram manifestações na internet em apoio às vítimas.
Do campo para as arquibancadas
A batalha das mulheres pelo espaço no futebol não é vista somente no campo. Assim como em qualquer competição, a presença do torcedor serve como incentivo aos atletas, porém quando se trata da presença da mulher nas arquibancadas isso se torna mais uma luta pelo seu direito de ocupar espaços considerados masculinos.
Diante dessa movimentação na própria torcida do futebol feminino vem ganhando cada vez mais apoio de torcedoras que já trazem a tradição de acompanhar os times masculinos de seus clubes. Revelando que é o momento de acabar de vez com qualquer discriminação de gênero quando o assunto é futebol.
Um vídeo que chocou as redes sociais em 2018, foi considerado o primordial para a criação de novos movimentos e coletivos de torcedoras que exigiam respeito às mulheres no mundo do esporte. A gravação mostra uma torcedora com a camisa do Palmeiras sendo agredida e expulsa de um vagão no metrô por vários torcedores do Corinthians.
Apesar de o placar chamar muita atenção, um depoimento dado pela capitã do time do Taboão da Serra, serviu para mostrar a dura realidade que os times femininos enfrentam no dia a dia quanto a estrutura dos clubes. Segundo Nini, o time do interior de SP possui pouco investimento e não possui nenhum apoio do clube.
“Em pouca coisa o clube nos ajuda. É mais a vontade da comissão técnica mesmo. Ninguém tem salário, ninguém tem condução. A gente não tem roupa de treino, não tem apoio nenhum do clube. A gente simplesmente usa o nome do clube para participar do Campeonato Paulista porque acredita que é uma oportunidade para as meninas mais novas”, relatou a capitã à FPF TV.
Com os olhares voltados para o futebol feminino durante a Copa do Mundo, muitos temas surgiram. Um levantamento realizado pelo EXTRA no ano de 2019, mostra que os 20 clubes participantes da série A (até então) investiam no máximo 1% de seus orçamentos no futebol feminino. O Santos liderava a tabela sendo o time que mais investiu. O Flamengo investe cerca de R$ 1 milhão, o que equivalia na época ao salário de um mês do Gabigol. Diante dessa situação, com o baixo incentivo e investimento a prática futebolística se torna quase impossível para as jogadoras. Levando assim, a esperança de o futebol se tornar um esporte igualitário em questão de investimentos e oportunidades.
Questão salarial das jogadoras no Brasil
Além da falta de investimentos em equipamentos, lugares para treinos e preparação física, uniformes, entre outros, o futebol feminino também é financeiramente afetado na questão da disparidade salarial.
Segundo o site de notícias da UOL, os contratos de jogadoras de futebol que atuam no Brasil possuem a duração de um ano. Isso quando existe realmente um contrato de trabalho, pois a grande maioria trabalha informalmente. Assim como é raro encontrar clubes que ofereçam carteira assinada às jogadoras. O Corinthians, por exemplo, começou a assinar os contratos de suas jogadoras a partir de 2019.
A negociação, diferentemente dos times masculinos, não é através da compra de passes das jogadoras. Os contratos de trabalho são firmados entre clube e atleta de forma direta, sem necessidade de compra de transferência. Com a grande visibilidade proporcionada pela Copa do Mundo de 2019, os negócios mudaram consideravelmente, tanto em questão de contratos como de salário, mas a realidade ainda é difícil.
Ainda segundo a UOL, as jogadoras que atuam na primeira divisão do Brasileiro, ganham em média até dois salários mínimos por mês. Ainda que muitos clubes tenham investido um pouco mais no futebol praticado por mulheres, o salário não passa dos R$3 mil. Valores insignificantes perto da folha salarial do futebol masculino. No São Paulo, por exemplo, o total de investimentos em 2019 chegou a menos de dois salários do jogador Daniel Alves, que equivale a R$1,5 milhão.
Além disso, com a pandemia e o futebol paralisado em março, foi o suficiente para alastrar uma enorme crise financeira nos clubes, que afetou todas as categorias de jogadoras. Alguns clubes fizeram até redução dos salários dos jogadores profissionais para tentar amenizar a situação, assim como de jogadoras, mas muitas foram dispensadas durante esse período de crise mais acentuada.
Em abril de 2020, a Confederação Nacional de Futebol (CBF) destinou cerca de R$150 mil para equipes da série A1 e R$50 mil para equipes da série A2, para tentar ajudar na folha salarial das jogadoras. Contudo, dos 52 clubes beneficiados, seis — Audax, Juventus, Autoesporte-PB, Santos Dumont-SE, Atlético-GO, Sport e Vitória — demoraram para repassar os valores para as jogadoras, que eram de R$500 à R$1000 reais, piorando ainda mais o cenário para as jogadoras. Com a volta dos campeonatos na metade do ano, a situação foi sendo normalizada aos poucos.
Em setembro de 2020, após anunciar as novas dirigentes para as coordenações de competições femininas, o presidente da CBF Rogério Caboclo, anunciou também que a entidade definiu a igualdade entre os valores das premiações entre as seleções masculinas e femininas. A equidade já havia sido adotada na convocação da equipe feminina para o Torneio Nacional da França. Em coletiva, o presidente afirmou que não há mais diferença de gênero em relação à remuneração na CBF.
O assédio dentro dos campos
Um dos maiores problemas dentro do futebol feminino brasileiro é a questão do assédio. Além de sofrerem pelo assédio moral, ao serem questionadas sobre a sua qualidade dentro dos campos, as jogadoras também enfrentam o assédio sexual durante a prática futebolística.
A ex-jogadora Julia Pompeo afirma que nunca sofreu assédio sexual físico, mas algumas situações já a incomodaram dentro de campo. “Sempre foi algo psicológico. Se eu colocava uma legging pra jogar bola, sempre tinha os olhares dos meninos. Algumas vezes já fomos treinar entre 11h e 12h da manhã, um horário com temperatura mais quente, e jogávamos sem a camiseta, somente de top. Os meninos que estavam esperando para usar a quadra no próximo horário ficavam debochando ou gritando palavras de assédio”, relata.
Sobre os comentários pejorativos, a jogadora profissional Elena Mueller, afirma que as mulheres que jogam futebol inevitavelmente precisam ouvir falas machistas, desnecessárias, tentando minimizá-las e fazendo comparações, muitas vezes por falta de conhecimento da própria pessoa em relação ao futebol.
Elena reitera que essas situações acontecem e cabe às próprias jogadoras enfrentarem de cabeça erguida. “Bater no peito, falar eu jogo futebol sim, eu sou mulher e jogo futebol. A mulher tem tanta capacidade como o homem para jogar futebol. O que eu sempre digo em relação a preconceito, é que a gente não se cale. Que se alguém fizer uma brincadeira que não for legal, que digamos que isso não deve existir. Na maioria das vezes os homens não sabem as dificuldades que a gente passa no futebol feminino, então o principal ponto é não se calar”, declara a jogadora.
A inconveniência não vem somente dentro de campo. Podemos citar como exemplo, uma situação recente que aconteceu em dezembro de 2020. Durante o chamado programa “Dupla em debate” da Rádio Grenal, o comentarista Roberto Moure, sugeriu que as atletas do Internacional deveriam usar “fio dental” para jogarem.
Durante o programa, o comentarista disse que as jogadoras que teriam as ‘pernas mais bonitas’ deveriam usar shorts mais curtos para jogar. “Uma sugestão para essas meninas, principalmente do Internacional, que querem usar o calçãozinho ali parecendo o Diego Barbosa. Peçam para confeccionar calções mais curtos, que fica horrível o que vocês estão fazendo. Ah! Mas as pernas são mais bonitas que as dos homens, não tenho dúvidas”.
Os comentários constrangem o apresentador, Flávio Dal Pizzol, que pede desculpas à sua companheira Heloíse Bordin, que era convidada do programa durante o ocorrido . Após o comentário sexista, Moure pediu retratação e disse não haver qualquer intenção de ferir ou ofender as jogadoras, pedindo desculpas pelo seu comentário. A Rádio Grenal também se manifestou, através de uma mensagem, sobre a situação:
“A rádio Grenal completará nove anos de existência em maio de 2021 e, desde a sua estreia, dirigida por uma mulher, que foi uma das primeiras comunicadoras a cobrir futebol no Brasil, a nossa diretora Marjana Vargas, a rádio Grenal foi a primeira emissora de rádio a contar com uma mulher atuando nas jornadas esportivas como repórter de campo. A rádio Grenal detém o título de primeira rádio FM a transmitir uma partida de futebol com equipe exclusivamente formada por mulheres, o que aconteceu na final do Gaúchão feminino do ano passado. A rádio Grenal é apaixonada pelo futebol e apaixonada pelo respeito e pela igualdade de direitos e oportunidades que devem unir a humanidade”, destacou a nota.
Além das jogadoras e das jornalistas esportivas, as profissionais que atuam de outras maneiras dentro de campo também sofrem com as adversidades. A árbitra assistente Luiza Reis, conta que não sofreu com situações de assédio mas que foi muito ofendida em uma ocasião quando errou um lance em um jogo. “Eu comecei a ser muito criticada nas minhas redes sociais pessoais, não por ter errado o lance, mas por ser mulher e ter errado o lance. Então isso foi uma situação em que fiquei bem chateada. Hoje já faz um tempo, já consigo lidar melhor com isso”, relata Luiza. A árbitra ainda destaca que muitas pessoas que frequentam os estádios acabam insultando os árbitros, o que é uma atitude errada.
Com essa e tantas outras situações de assédio que acontecem no dia a dia das mulheres que jogam futebol — que muitas vezes não são divulgadas pela mídia — muitas meninas publicaram manifestações na internet em apoio às vítimas.
Do campo para as arquibancadas
A batalha das mulheres pelo espaço no futebol não é vista somente no campo. Assim como em qualquer competição, a presença do torcedor serve como incentivo aos atletas, porém quando se trata da presença da mulher nas arquibancadas isso se torna mais uma luta pelo seu direito de ocupar espaços considerados masculinos.
Diante dessa movimentação na própria torcida do futebol feminino vem ganhando cada vez mais apoio de torcedoras que já trazem a tradição de acompanhar os times masculinos de seus clubes. Revelando que é o momento de acabar de vez com qualquer discriminação de gênero quando o assunto é futebol.
Um vídeo que chocou as redes sociais em 2018, foi considerado o primordial para a criação de novos movimentos e coletivos de torcedoras que exigiam respeito às mulheres no mundo do esporte. A gravação mostra uma torcedora com a camisa do Palmeiras sendo agredida e expulsa de um vagão no metrô por vários torcedores do Corinthians.
Na época os clubes divulgaram uma nota condenando as agressões, mas para algumas torcedoras palmeirenses era necessário mais posicionamento. Foi assim, que uma das administradoras se reuniu com outras palmeirenses e criaram o movimento VerDonnas. Em 2019, esse movimento já era composto por nove administradoras e mais quatro grupos com uma média de 250 mulheres cada.
Logo em seguida, o Movimento Alvinegras foi criado por corinthianas para apoiar e organizar mulheres que queiram acompanhar o seu time pelos estádios. E no mesmo embalo as santistas do Bancada das Sereias, também em busca de respeito, criaram o movimento após se questionarem sobre as dificuldades enfrentadas por elas mesmas no estádio.
De uma manifestação nas redes sociais, nasceu também o movimento São PraElas, das são-paulinas. As torcedoras desenvolveram a hashtag #saopaulinasuniformizadas no Twitter, com o intuito de protestar contra o fato da Underarmour, fornecedora dos uniformes de jogo do time que não fabricava nenhuma peça feminina.
Embora a presença das mulheres nos estádios ainda seja vista como uma vivência passiva, de acompanhantes, este quadro vem mudando. As rivalidades ficam apenas em campo, a vontade de poder frequentar os jogos, gritar e torcer é maior entre elas. Toda a organização derivada das tradicionais torcidas do futebol masculino também refletem na torcida do futebol feminino.
Ativismo digital também realizado pelas jornalistas
A repórter Bruna Dealtry, durante uma cobertura ao vivo de uma partida de futebol em 2019, pelo canal Esporte Interativo, foi interrompida por um torcedor que a beijou à força, em frente a câmera. O caso ocorreu no Rio de Janeiro, na partida entre o Vasco e o Universidad do Chile, pela Libertadores da América. Em choque e constrangida, a jornalista apenas diz “não foi legal” e segue a transmissão.
Por coincidência, naquela mesma semana em Porto Alegre tinha também ocorrido um caso parecido. Um torcedor do Inter insultou e agrediu fisicamente a jornalista Renata Medeiros, da Rádio Gaúcha, durante a cobertura de Inter e Grêmio.
Esses dois casos ilustram o que muitas mulheres, tanto da área do esporte ou de outros ambientes de trabalho, recebem pelo simples fato de serem mulheres. Foi diante disso, que criaram uma nova campanha com o objetivo de jogar luz sobre este problema e clamar pelo respeito às profissionais.
Foi o movimento #DeixaElaTrabalhar, com um grupo de 50 jornalistas mulheres de todo o país que desenvolveram um vídeo com relatos desses assédios sofridos. As jornalistas relataram comentários violentos e ameaças de estupro de torcedores no estádios e nas redes sociais.
Confira o vídeo da campanha:
[youtube_sc url=”https://www.youtube.com/watch?v=omrrIFeCTLQ ” title=”https:%2F%2Fwww.youtube.com%2Fwatch?v%3DomrrIFeCTLQ%20″]
O principal intuito da campanha era chamar a atenção para as agressões que as profissionais sofrem não somente nos estádios, mas também nas redações, em suas redes pessoais, na rua ou em onde for. A campanha apesar de criada por jornalistas não se limitava somente a esta editoria, o movimento abraçava todas as esferas, sendo uma maneira de incentivar o relato sofrido e a busca pelos espaços.
Após a campanha, diversos clubes se posicionaram sobre o caso, o Atlético-MG entrou em campo para o clássico contra o Cruzeiro com faixas chamando a atenção para a violência contra a mulher. A responsável pela lei que criminaliza a violência doméstica e familiar, Maria da Pena M. Fernandes, esteve no gramado do Independência e foi homenageada pelo clube, além de torcedoras apresentarem variados cartazes com dizeres “Meu lugar é aqui”, nas arquibancadas. O Corinthians jogou contra o Mirassol com a marca #RespeitaAsMinas estampadas no uniforme e entrou junto ao campo com as atletas do time feminino.
O assédio entre as jornalistas já acontecia antes mesmo da união entre elas para denunciar os abusos e assédios. Em 2016, depois que uma repórter do portal G1 ser assediada no meio de uma entrevista coletiva pelo cantor Biel, um grupo de jornalistas mulheres criaram a campanha #JornalistasContraOAssédio. Na época o cantor chamou a repórter de “gostosinha” e disse que “quebraria no meio” se eles tivessem relações sexuais. Hoje a campanha se transformou em um coletivo que denuncia as diversas formas de assédio.
Casos deste teor acontecem nos grandes estádios e também nos pequenos. A jornalista esportiva do Diário de Santa Maria, Janaína Wille, integrou o Radar Esportivo da Rádio Universidade onde realizava programas de rádio sobre esporte e transmissões do futebol americano e da divisão de acesso.
Janaína relata que trabalhar nessa área é comum ouvir comentários direcionados tanto as atletas quanto as profissionais. A jornalista diz nunca ter sofrido nenhum assédio, porém passou por casos desconfortáveis como quando por conta de sua simpatia ao entrevistar e conversar com a torcida, muitas vezes era mal interpretada, pelo simples fato de ser uma mulher. “Muitas vezes aconteceu de sair um gol e o torcedor querer me abraçar, me tocar, sem nenhuma permissão, até aquele “chega pra lá””, comenta a jornalista.
Esse tipo de comportamento não ocorre somente pelos torcedores, a comunicadora conta ter passado uma experiência desconfortável com um determinado dirigente, onde em entrevista o homem foi extremamente grosseiro e assim que, entrevistado por outra jornalista, teve um comportamento diferente. Uma atitude completamente machista, deixando claro que a outra jornalista o agradava mais.
A jornalista enfatiza que se sente privilegiada em trabalhar com jovens de mente aberta e que possuem respeito pelas profissionais, que embora nunca tenha passado por casos graves enquanto trabalhava, acredita que o primeiro passo é dado pela mídia, reconhecendo esses casos de assédio, ofensa e abuso. “É importantíssimo escancarar esses casos para as pessoas verem que não pode ser impune esses tipos de agressões”, diz Janaina.
Embora Santa Maria seja uma cidade do interior, onde o futebol não possui tanto engajamento como nas cidades capitais, assédios como esse não são impunes como parecem. Bem como relatou Janaina, o primeiro passo para combater é por nas redes, noticiar nos jornais, deixar a sociedade ciente. Nenhuma mulher mais irá deixar de ir aos jogos ou muito menos, uma jornalista deixará de cumprir sua profissão por conta de homem que não sabe se comportar.
Marta: o maior símbolo do futebol brasileiro feminino
Tanto Marta como Pelé são jogadores de grande magnitude e possuem uma importância histórica muito grande para o futebol brasileiro. Contudo, Marta já ultrapassou Pelé em algumas categorias de premiações.
Segundo a ESPN, enquanto Pelé ganhou três Copas do Mundo para o Brasil e foi eleito o maior da história, Marta, apesar de possuir títulos nacionais de menos peso, ainda sim supera o ‘Rei’ em prêmios individuais. Marta já ultrapassou Pelé como melhor artilheiro da história da seleção brasileira, chegando a 100 gols, enquanto Pelé tem 95. A jogadora também superou Pelé em número de gols em Copas. Ela com 15 gols e ele com 12.
Até então foram seis prêmios de melhor do mundo da Fifa, 17 gols em Copas do Mundo, sendo a maior artilheira da história dos Mundiais entre homens e mulheres. Foram 107 gols pela seleção brasileira, o que também faz dela a maior artilheira que já vestiu a camisa amarela. A então conhecida como “Rainha do Futebol”, ultrapassou barreiras para chegar até onde chegou e se tornar tão influente no futebol feminino.
Em 2020, a camisa 10 da seleção, Marta, tentou sua quinta Olimpíada em busca do tão sonhado ouro inédito. A jogadora se aproximou do título em 2004 e 2008, quando o Brasil perdeu para os Estados Unidos na final.
Durante as décadas de proibição e falta de investimentos, o futebol feminino sofreu muito para conquistar espaço, mas foi nos pés de Marta que as portas começaram a se abrir. O país não tinha sequer um Campeonato Brasileiro para as mulheres competirem, porém aquele que se tornaria no futuro um ícone dos gramados, encantava o mundo com seus dribles e gols em campo. Hoje, os maiores especialistas já afirmam que ela é a maior de todos os tempos.
A visibilidade que não existia antes, fez com que Marta se tornasse uma grande referência para tantas outras mulheres que também sonham com um futuro promissor nos campos de futebol. Depois de ganhar o prêmio da Fifa pela sexta vez em 2019, Marta ganhou homenagem na sede da CBF e foi capa das principais publicações nacionais e internacionais.
No país do futebol, também é o país do carnaval e em 2020 a atleta foi tema de uma escola de samba no Rio de Janeiro, a Inocentes de Belford Roxo, do grupo de acesso, levando a jogadora como tema do enredo na Sapucaí.
Assim como muitas jovens espalhadas pelo Brasil inteiro, Marta também iniciou seus passos quando era uma simples criança e jogava futebol entre os meninos de Dois Riachos. Marta jogou em um time da cidade, até ser banida do campeonato por ser “boa demais”. A jogadora já relatou em diversas entrevistas ter ouvido o termo “aqui não é lugar para meninas”, vindas de um treinador que não quis a colocar o time no campeonato até ter certeza que Marta não jogaria na equipe.
Com 14 anos, Marta realizou um teste no Vasco, jogou nas categorias de base e logo chegou à seleção, ainda na adolescência. A jovem enfrentou logo cedo as dificuldades do futebol feminino, quando o clube cruzmaltino encerrou as atividades do time feminino e ela por conta disso, se viu na necessidade de procurar outra equipe para seguir seu caminho.
Marta foi para Minas Gerais, temporariamente, porém com o sucesso que fez na Copa do Mundo em 2013, a então jogadora recebeu a proposta de jogar em um time na Suécia. Diferente de Pelé, a jogadora não pode seguir os mesmos passos fazendo carreira e se tornando uma ídola absoluta de um único clube. A realidade do esporte feminino não permitiu isso na época e os clubes foram se formando e acabando, tudo por conta da falta de investimento.
Foi assim que Marta fez parte de diversos clubes, jogando na Suécia, nos Estados Unidos, passou um tempo no Santos no “dream team” das Sereias da Vila, até retornar para a Suécia no Rosengard e depois voltar ao país do futebol feminino para no Orland Pride. Marta conquistou Champions League, Campeonato Sueco, Libertadores, Copa do Brasil, Liga America pelos clubes, além de dois ouros em Pan-Americanos, três em Copa América e duas medalhas de prata olímpicas.
A história da craque dos campos femininos é tão importante e notória para a cultura da sociedade brasileira, tendo em vista a existência de alguém tão gigantesca no esporte. Isso tudo gera ainda mais um apoio a todas aquelas meninas que sonham com uma carreira que ainda sofre tanto com o preconceito e com a desvalorização.
Marta foi e ainda é um grande ícone a ser seguido, a jogadora mostrou que é possível de fato chegar tão longe em um esporte que ainda é visto pela maioria como apenas destinado aos homens.
Novas perspectivas do futebol feminino no Brasil
Apesar dos salários discrepantes comparados aos homens, as condições precárias e a pouca valorização, foi em 2019 que o futebol feminino ficou marcado como um ano de mudanças significativas para a modalidade.
Mulheres do mundo todo lutam por melhores condições de trabalho dentro do futebol. Essa luta finalmente parece estar atingindo os efeitos que elas sempre mereceram. A visibilidade da categoria, enfim, começa a existir.
Em 2019, a sétima edição consecutiva do Campeonato Brasileiro recebeu transmissão gratuita pela internet. Foram 52 participantes na competição, muito por conta da exigência dos clubes aderirem ao Programa Governamental de Refinanciamento de Dívidas do Futebol Brasileiro – Profut.
O calendário rentável da modalidade no país foi uma exigência que garante a sobrevivência desses clubes ao longo da temporada e facilita também o processo de criação de um público fiel.
No mesmo ano, o futebol feminino ficou marcado graças ao grande evento da temporada, a Copa do Mundo. A competição contou com 24 países participantes e chegou a sua oitava edição, acontecendo em Junho, na França. No início do ano, em carta, o presidente da Fifa, Gianni Infantino, afirmou que a competição mudaria a forma como o futebol feminino seria visto no planeta.
A primeira edição da competição, foi disputada em 1898 e desde então vem conseguindo superar as dificuldades que enfrenta, assim como os importantes progressos recentes na modalidade. A expectativa em 2019 é que a competição fosse um divisor de águas na modalidade, promovendo a igualdade das condições dos gramados.
O primeiro fator motivador na Copa do Mundo de 2019, foi a venda dos ingressos ser efetuada com sucesso, esgotando a abertura e as semifinais assim que abertas as vendas. A França adquiriu esse sucesso por conta dos preços, trabalhando valores atrativos com pacotes de três jogos a partir de 25 euros e partidas avulsas a partir de nove euros, além de usar o título da seleção masculina para atrair o público a reviver tal emoção.
No Brasil, a competição foi um marco histórico, tendo em vista a luta todos os anos pela seleção feminina em receber de fato a visibilidade que merecia. O evento recebeu, pela primeira vez, atenção da mídia nacional. Numa manobra inédita, a Rede Globo deu espaço na sua programação aberta para todos os jogos disputados pela Seleção Brasileira, enquanto o SporTV transmitiu o torneio na íntegra, em seus canais fechados.
Foi também o ano dos patrocinadores surgirem. A Nike, empresa de material esportivo, fechou contrato com 14 países participantes da Copa, incluindo a Seleção Brasileira, lançando pela primeira vez uniformes exclusivamente para as mulheres que disputaram o Mundial. Além disso, houve lançamentos em roupas da Adidas que publicou um manifesto a favor da equiparação de pagamentos entre homens e mulheres no esporte.
A Copa do Mundo de 2019 e a atenção dada pela mídia nacional, foram fatores iniciantes para uma maior visibilidade no esporte. Visibilidade essa que gera apoio a novas jogadoras e mulheres que querem viver no meio desta modalidade, mostrando que sim elas podem e devem impor seu espaço.
Como um exemplo disso, em 2020 foi possível presenciar no jogo entre Juventus e Dínamo de Kiev, a primeira partida da Champions League a ser controlada por uma árbitra mulher, a Stéphanie Frappart.
No Brasil foi possível comemorar conquistas como essa, já em 2021 a FIFA anunciou um trio de arbitragem feminina para o Mundial de Clubes de 2020, que será realizado em fevereiro devido a pandemia do coronavírus. A árbitra Edina Alves é a única mulher entre outros seis homens compondo a lista de árbitros da competição. Com ela a brasileira, Neuza Back e a argentina, Mariana de Almeida vão ocupar o posto de bandeirinha no torneio ao lado de outros dez assistentes.
Também honrando a camisa da seleção, só que no futsal – esporte próximo ao futebol só que realizado em uma quadra fechada, a atleta Amandinha, é indicada ao prêmio de melhor jogadora do mundo pelo “Futsal Planet” e pode ganhar o título pela sétima vez.
Embora sejam poucas vitórias comparadas a tudo que o futebol masculino possui atualmente, sem ter feito tanto esforço quanto o feminino, é importante ressaltar que tudo que vem sendo realizado para esse crescimento está tendo resultados.
A visibilidade gera conhecimento, coloca a vista o rosto de cada jogadora e seu potencial, dando a ela oportunidades de crescer com apoio e assim ter uma maior estrutura em seu trabalho. É como se um fator fosse movido pelo outro e somente assim esse ramo funcionasse.
Para as jovens que estão recém iniciando sua carreira como a atleta Cauane, almejam a melhor perspectiva possível, acreditando no crescimento e desenvolvimento do futebol feminino. Para ela, a transmissão em rede nacional da Copa do Mundo Feminina em 2019 foi um marco fundamental para esse objetivo, mostrando o quanto o esporte é importante para a sociedade. “ As atletas merecem reconhecimento, após tantos anos de luta e dedicação, onde precisaram enfrentar e vencer tantos tipos de preconceito”.
O país do futebol deveria focar seu olhar mais naqueles que fazem pela bandeira, pela nacionalidade e pela paixão, dando assim o mesmo valor independente de gênero, raça, etnia ou qualquer outro aspecto que possa ser usado para justificar um esporte que pode e é praticado por todos.
Foi por conta do cenário convicto, que mulheres como a jogadora, Elena Mueller, que decidiu voltar a jogar em 2017 e 2018. De maneira positiva e colocando fé nos seus sonhos que hoje a atleta trabalha esse sentimento de apoio e orientação em uma mentoria. Ela orienta várias meninas que querem se tornar profissionais na gestão de carreira, gestão de imagem e gestão de relacionamento.
“Hoje em dia, por exemplo, a internet está aí, ao acesso de todo mundo, então tende a crescer muito mais a partir do momento que as gurias tiverem essa noção de usar as ferramentas. …, aproveitar as oportunidades que estão acontecendo e surgindo cada vez mais, desde competições, visibilidade, porque tudo isso vem com o tempo”, relata Elena.
O que se espera pelas atletas, pelas torcedoras, pelas comunicadoras e por todos aqueles que admiram o trabalho realizado em campo pelas mulheres, um futuro mais igualitário, valorizando o seu potencial e promovendo as mesmas oportunidades entre todos em um esporte que é tão fascinante e une o mundo inteiro.
*Reportagem produzida para a disciplina de Jornalismo Investigativo sob a orientação do professor Maurício Dias
Morte de homem negro em supermercado de Porto Alegre antes do Dia da Consciência Negra alerta que a sociedade precisa de mudança. Confira a repercussão, os desdobramentos e as perspectivas para acabar com a discriminação e a violência
Gianmarco de Vargas e Pablo Milani*
Desde a antiguidade, diversos problemas se alastraram em meio às camadas sociais brasileiras. Responsável por inúmeros atos de discriminação e por grande percentual de assassinatos no país, o racismo estrutural repete-se ano após ano, o qual mantém nítido um problema enraizado desde o período colonial.
Segundo estudo divulgado pelo portal Brasil de Fato, a taxa de homicídios contra pessoas negras cresceu 11,5%, entre os anos de 2008 e 2018. Por outro lado, a mesma situação reduz em 12%, quando se trata de pessoas brancas. O acréscimo no percentual retrata a soberania do racismo na atualidade, que desde o fim do período ditatorial em 1985, deixou registros históricos.
Ademais, outras fontes, igualmente, operaram na coleta de dados sobre o mesmo levantamento. O Atlas da Violência, da Agência Brasil, utilizou as diretrizes do Sistema de Informação Sobre Mortalidade, para apurar um crescimento de 11,5% no número de mortes de pessoas negras nos últimos 10 anos. A pesquisa foi divulgada no dia 17 de agosto de 2020, pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Por fim, as estatísticas apontam que, para cada pessoa branca morta, em 2018, 2,7 negros foram assassinados, o que representa cerca de 75,7% das vítimas.
Os casos noticiados pela mídia geram impacto num todo, porém, estão longe de serem únicos em suas peculiaridades. Para cada descrição em diferentes abordagens de violência ou modos de assassinato divulgados, centenas repetem-se simultaneamente e não chegam aos olhos do público. Além desta, centenas de outras ocasiões abalam as raízes étnico-sociais brasileiras, mas a partir de uma análise, pode-se perceber o quão a fundo o racismo estrutural vai, e como é compreendido na atualidade.
João Alberto Silveira Freitas, de 40 anos, estava no Supermercado Carrefour, no Bairro Passo D’Areia, em Porto Alegre, no dia 19 de novembro de 2020. Depois de algum tempo, o mesmo foi retirado violentamente do setor interno da loja, até o estacionamento, por dois seguranças locais. João Alberto foi vítima de espancamento e asfixia pelos mesmos, em frente a sua esposa.
O caso aconteceu na noite da quinta-feira, por sinal, véspera do feriado da Consciência Negra, em várias cidades do país. Até algumas horas após o ocorrido, os funcionários teriam justificado que João supostamente discutiu e ameaçou fisicamente a caixa do estabelecimento. Durante a sua retirada do supermercado, pelos seguranças, ele foi acompanhado pela funcionária do Carrefour, Adriana Alves Dutra, a qual afirmou que o homem teria desferido um soco contra o policial militar que faz parte do caso.
A justificativa foi direcionada à polícia local, após identificação da funcionária, na gravação do assassinato. O vídeo mostrou o momento em que João foi agredido pelos dois homens, identificados como Magno Braz Borges (segurança do Carrefour) e Giovani Gaspar da Silva (policial militar temporário), que, de acordo com testemunhas, fazia compras quando participou do espancamento.
Na mesma gravação, realizada pela funcionária, João Alberto aparece sendo agarrado por um dos homens, enquanto o outro dá uma sequência de socos em sua cabeça. Durante a agressão, também é registrado o momento em que um dos homens coloca o joelho nas costas de Freitas, já rendido no chão, enquanto o outro continua batendo.
O ato chocou o país e gerou dezenas de protestos e movimentos de resistência contra o racismo, em frente aos Supermercados Carrefour em todo Brasil. Em nota, a empresa afirmou que “se sensibilizou com os familiares da vítima e não toleraria nenhum tipo de violência” e que teria “iniciado os procedimentos para apuração interna”, ainda no mesmo dia.
A notícia quebrou barreiras no que diz respeito ao seu alastramento. Veículos de comunicação nacionais e internacionais abordaram o ocorrido com exclusividade, a ponto de divergir em detalhes acerca das informações apresentadas. Foi constatado pelo portal UOL, que João teria chegado a pedir ajuda enquanto era agredido. Sua esposa, Milena Borges Alves, diz ter ouvido o marido gritar: “Me ajuda”. Ela relatou à polícia que estava longe dele, no momento em que houve o desentendimento no caixa.
O delegado Leandro Bodaia relatou que Freitas teria feito um sinal com a mão para a funcionária do caixa. Ato este que segundo o mesmo, teria acarretado no começo do conflito. Ele também afirmou que a vítima teria sido golpeada, mesmo após estar no chão: “A partir disso começou o tumulto, e os dois agrediram ele na tentativa de contê-lo. Eles (o PM e o segurança) chegaram a subir em cima do corpo dele, colocaram a perna no pescoço ou no tórax”. O Jornal Nacional afirmou que, segundo a polícia, foram cinco minutos e 20 segundos entre o início da agressão e o momento em que os seguranças soltaram João Alberto. A informação apontou também que os socorristas do Samu não conseguiram reanimar a vítima, que veio a falecer no local.
O portal Terra informou que a polícia tinha sido chamada após Freitas estar imóvel. Uma ambulância também foi acionada, mas a vítima já estava morta. Em um vídeo publicado nas redes sociais, o governador do estado do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), ao lado da chefe da Polícia Civil, delegada Nadine Anflor, e do comandante-geral da Brigada Militar, coronel Rodrigo Mohr, destacou que as imagens causam indignação e que “todas as circunstâncias estariam sendo apuradas para que os responsáveis fossem punidos”: “Todo o esforço do Estado estará na apuração para que os responsáveis por esse crime enfrentem a justiça, tendo a sua oportunidade de defesa. Mas as cenas são incontestes de que houve excessos que deverão ser apurados”.
Por fim, na ocasião, o Carrefour local afirmou logo após o assassinato, que iria fechar a unidade (temporariamente) em respeito ao ocorrido e entrar em contato com a família. A companhia também informou que iria cancelar o contrato com a empresa responsável pela segurança e que o funcionário responsável pela loja no momento do espancamento seria demitido.
Freitas era membro da torcida organizada de futebol do Clube São José, de Porto Alegre. Ele foi homenageado com posts com mensagens ligadas ao movimento “vidas negras importam” e a convocação de um protesto: “Amanhã estaremos no Carrefour Passo D’areia o dia todo, não vai ficar assim, queremos justiça, fizeram covardia com 1 irmão, agora segurem o Bonde Da Zona Norte!”.
Apurações acerca do nome da vítima constataram que João Alberto tinha antecedentes criminais. Uma condenação a um ano e 20 dias de detenção por ameaça relacionada à violência doméstica, uma execução de pena de três anos e um acórdão que o absolve de porte de arma. Dados estes que não justificam o assassinato, mas que ajudam a apurar informações sobre a vítima. O portal do Conjur esclarece que o juiz de Direito de plantão teria ressaltado que a ação dos seguranças não se justificava pela agressão anterior, o que veio a decretar a prisão de ambos responsáveis.
O site averigua os atos de violência por parte dos funcionários locais. A denúncia atribuiu o crime de homicídio qualificado, argumentado com dolo eventual (art. 121, § 2º, inciso III do Cód. Penal), com pena de 12 a 30 anos de reclusão. “A defesa sustentou a inexistência de dolo e, supletivamente, a possível existência do crime de lesão corporal seguida de morte, cuja pena é de 4 a 12 anos (artigo 129, § 3º, do Código Penal)”, segundo a fonte.
Já no Dia da Consciência Negra, 20 de novembro, o grupo Carrefour comunicou que iria reverter o resultado das vendas daquele dia para organizações ligadas à luta pela consciência negra. Logo, um fundo de R$ 25 milhões foi gerado a fim de promover a inclusão social e combater o racismo no país. A informação foi apurada pelo Poder360 e G1 Economia. As fontes divulgaram, igualmente, que no dia 4 de dezembro, o Grupo Carrefour anunciou que iria substituir, nos próximos dias, por uma equipe própria os serviços de segurança, até então, terceirizados. O processo tinha como objetivo começar por quatro hipermercados no Rio Grande do Sul, com foco nas unidades do Carrefour do bairro Passo d’Areia. Diante de todo ocorrido, o supermercado pronunciou-se em nota oficial (Instagram), ao repudiar o incidente.
O portal UOL, bem como outros veículos de comunicação, confirmou que o PM temporário e o segurança haviam sido levados à delegacia. Ambos mantiveram-se em silêncio durante os depoimentos, acompanhados de uma advogada. A responsável pela condução do caso, delegada Roberta Bertoldo, teria comentado que o laudo não havia sido concluído, pois haveria dúvidas sobre a causa da morte. “Informações que foram colhidas com a equipe de peritos desse caso e que não tem ainda o laudo concluído, apontam suposições sobre a causa da morte de que ele possa ter tido um ataque do coração em função das agressões, e porque ele ficou custodiado com duas pessoas em cima. Talvez tenha sido essa a causa da morte”, disse a delegada. O laudo só foi concluído após a obtenção das imagens de câmera para esclarecimento do caso, por meio de uma busca com a 2ª DHPP (Delegacia de Homicídios e Proteção à Pessoa).
A RBS TV comunicou, no dia 20 de novembro, um esclarecimento por parte da chefe da Polícia Civil do Rio Grande do Sul, Nadine Anflor, frente à investigação da conduta dos agressores. Segundo a policial, não se tinha conhecimento do que de fato teria dado início a briga, embora a esposa da vítima tivesse relatado que o marido teria proferido um gesto para uma fiscal. “Todas as pessoas que estão ali, se há responsabilização da empresa, se capacitou [os funcionários] ou não, vamos investigar”, salientou Nadine. A delegada frisou que a punição mantivesse uma transparência, que desse resposta à sociedade, por se tratar de um caso “extremamente emblemático”.
Até o dia 20, a previsão era de que o inquérito fosse encerrado em 10 dias. O grupo RBS divulgou que ambos suspeitos, um de 24 anos e outro de 30 anos, foram presos em flagrante. O que era PM acabou sendo levado para um presídio militar, enquanto o segurança da loja foi mantido temporariamente em um prédio da Polícia Civil. A investigação tratou o crime como homicídio qualificado, também equiparado com o atentado que aconteceu com George Floyd, que morreu sufocado por policiais em Mineápolis, Estados Unidos.
O advogado de Magno Braz, William Vacari Freitas, optou por não se posicionar sobre o caso, em primeira mão. Por outro lado, o de Giovane da Silva, David Leal, afirmou que o cliente teria justificado ter levado um soco da vítima, e admitiu ter “se excedido”. Ambos eram contratados pela Vector Segurança. Segundo o portal IG, a empresa terceirizada lamentou o ocorrido e se sensibilizou com os familiares da vítima. O Grupo Vector reiterou que não seria responsável pela vigilância do Carrefour do bairro Passo D’Areia, mas sim do setor de prevenção e perdas. A companhia ofereceu auxílio à Polícia Civil, de modo a ajudar na apuração dos fatos, e comentou que “submeteu seus colaboradores a treinamento adequado inerente às suas atividades, especialmente quanto à prática do respeito às diversidades, dignidade humana, garantias legais, liberdade de pensamento, bem como à diversidade racial e étnica”. Consequentemente, os vigias Magno Braz Borges e Giovane da Silva foram demitidos por justa causa. O fato de o autor do ato ilícito ter sido um funcionário terceirizado não veio a eximir a rede de supermercados de culpa.
A Polícia Federal afirmou que a empresa de segurança responsável pelo supermercado teria cadastro regular, abaixo de fiscalizações em agosto de 2020. Em nota, a Brigada Militar (BM) certificou que o PM envolvido na agressão era “temporário” e estava fora do horário de trabalho. A BM também concluiu que a mulher que aparecia nas imagens filmando a agressão foi ouvida pela polícia durante a manhã do dia 20. A delegada comentou, até aquele momento, que não havia provas de que ela coordenava os seguranças ou funcionários do supermercado, ou tinha condições de impedir a agressão. “A polícia vai investigar se houve outros crimes, além do homicídio. O laudo, que confirmará a causa da morte de João, deve sair ainda nesta semana”, reforçou Nadine, após manter a previsão de evidências de laudo para a sexta-feira, dia 27 de novembro.
Em outra mão, a GazetaWeb reportou que um dos dois homens presos não tinha o registro para atuar como segurança. Segundo a PF, que emite o documento, é necessário ter a carteira nacional do vigilante para fazer “a abordagem ativa de contenção”. De acordo com o coronel Rodrigo Mohr Picon, comandante-geral da Brigada Militar, Giovane “não poderia tirar registro de segurança”. “Por lei, é vedado o exercício de qualquer outra atividade remunerada”, frisou Mohr.
O momento foi destacado, pela construção de uma opinião pública. Segundo apuração do El País, cerca de 52,7% dos brasileiros consideram que o assassinato de João Alberto foi motivado pelo racismo. Resultado este que é exibido em pesquisas elaboradas pelo Atlas Político, que ouviu 1.764 pessoas. O homicídio ocorreu em frente de ao menos 15 testemunhas. A mesma pesquisa alavanca 90% dos brasileiros (as), como cientes da existência do racismo no país.
A subjetividade na fala de diversas pessoas gerou bastante polêmica. Certas declarações apontaram tanto a despreocupação com o ocorrido, assim como a ‘descompreensão’ de atos racistas, não necessariamente ligados ao Caso Carrefour, mas em um modo geral. Exemplo disto, foi o vice-presidente, Hamilton Mourão, que declarou a inexistência do racismo no Brasil. Entrevista que está disponível no canal do SBT no Youtube. Por outro lado, o presidente Jair Bolsonaro, em sua conta oficial no Twitter, pronunciou-se sobre o fato e destacou o fato de o país ser miscigenado.
Por fim, a Coalizão Negra por Direitos publicou uma nota oficial com repúdio às ações realizadas pelo Carrefour. Nela, foram constatadas em um histórico, outras recorrências polêmicas e desrespeitosas ligadas à rede. O portal Hypeness apresentou o material em primeira mão:
“A referida rede tem reiteradas denúncias de crime de racismo e discriminação racial em suas lojas, através de seu corpo de funcionários e do seu aparato de segurança privada. São diversos casos que não deixam dúvidas quanto ao conhecimento da direção da rede no Brasil sobre o papel ativo do Carrefour em práticas violentas fundadas no racismo. Ao longo do tempo, esses crimes têm sido denunciados, seja através da mídia, ou seja, através das organizações sociais negras, culminando agora neste bárbaro assassinato”.
O documento enfatizou que o supermercado estaria apto a “escamotear sua responsabilidade” ante ao ocorrido. Frente ao conceito, foi realizada o seguinte pronunciamento:
“Nesse sentido, nos cabe reafirmar que não há saídas que não sejam construídas juntos com as organizações do movimento social negro e o irrestrito respeito à família da vítima e sua comunidade, bem como de outras famílias atingidas pelas práticas reiteradas de racismo na empresa. O enfrentamento ao racismo estrutural e as medidas de reparação cabíveis precisam ser feitos na arena pública com amplo debate social.”
Com objetivo de combater o ódio racial, a articulação do Movimento Negro Brasileiro, que atua em Porto Alegre, assegurou que seria organizada uma discussão nacional e internacional sobre o episódio, a fim de abordar o boicote à rede de supermercados. A rede social transformou-se no principal esquematizador de combate por direitos. Parte dos trabalhos podem ser encontrados no Twitter do CoalizaoNegra e do Os Farrapos São José, considerados grandes feitores na luta por igualdade.
Diante de toda mobilização de grupos protestantes e de resistência contra o racismo, o Movimento Negro Unificado e outras 33 entidades fizeram atos em frente à unidade. A informação foi estudada pela CNN, que notabilizou que a Coalizão Negra por Direitos, reuniu 150 organizações e entidades do movimento antirracista em todo país. Grupos estes que apresentaram ao Ministério Público Federal e ao Ministério Público do Rio Grande do Sul, um pedido para que uma investigação por racismo fosse aberta contra o supermercado Carrefour.
Os movimentos unificaram-se de forma presencial, mas também cresceram no ambiente digital, com o objetivo de gerar força a favor de um pedido de boicote à empresa. “O vídeo que circula nas redes sociais não deixa dúvidas sobre a covardia do ocorrido”, comentaram as organizações em nota. Protestos foram convocados em grandes unidades da rede, localizadas em São Paulo, Osasco, Belo Horizonte e Rio de Janeiro.
No Rio Grande do Sul, os movimentos expuseram junto da indignação coletiva, a força do povo que luta pelos direitos iguais, principalmente na capital e em Santa Maria. O Ministério Público do estado afirmou que iria dar seguimento nas apuração de fatores relacionados à morte de Freitas, acrescentando, em nota, que “todas as medidas necessárias para o esclarecimento das circunstâncias serão tomadas na tarefa de prontamente levar o caso à Justiça para a responsabilização dos agressores”. No mesmo dia 20, o Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP) de Porto Alegre, reiterou que ambos seguranças do mercado já estariam presos e seriam indiciados por homicídio triplamente qualificado, por razões fúteis e por não terem dado chances de defesa à vítima.
O atentado repercutiu internacionalmente, e chegou a ser associado com inúmeros outros casos repetentes no mundo inteiro. O Black Lives Matter, dos Estados Unidos, prestou forças contra o ocorrido, bem como o movimento Vidas Negras Importam, no Brasil. Pelas redes sociais, o representante da Coalizão Negra por Direitos, Douglas Belchior, correlacionou o caso de “crime bárbaro”, após exprimir que o Carrefour precisaria ser responsabilizado pela morte.
A finalidade dos movimentos foi mostrar a indignação pública, bem como exigir respeito e lutar contra o racismo injetado socialmente, porém, em algumas ocasiões, os movimentos de protesto colocaram em risco a vida de funcionários que, relativamente, não estavam ligados ao ocorrido. Um dos pontos vandalizados, foi o Supermercados Carrefour, localizado na Rua Pamplona, no bairro Jardins, em São Paulo.
Segundo o jornal Metrópoles, o protesto começou por volta das 16h no vão do Museu de Arte de São Paulo (Masp), na Paulista, e seguiu até o supermercado. Pedras e pedaços de pau foram arremessados na fachada do prédio de vidro do shopping, onde fica o estabelecimento. A parte interna da loja foi danificada, com vidros quebrados e derrubados. Os vídeos gravados mostram os manifestantes danificando o local, bem como furtando mercadorias, algo que não era o objetivo, segundo os líderes do movimento. Os mesmos foram divulgados no Youtube, pelo canal do Jornal Metrópoles.
As imagens foram disseminadas entre as mídias sociais, repercutindo em centenas de canais online. A destruição do Carrefour, em São Paulo, foi pauta no Twitter do Democratize e no Jornalistas Livres. Atos pacíficos foram presenciados em cidades como Brasília, Rio de Janeiro e Salvador. Nos perfis da rede social da Deputada Federal Erika Kokay (PT/DF) e de Rene Silva, integrante do movimento Voz das Comunidades, pode-se acompanhar vídeos dos atos na capital fluminense.
Em Porto Alegre, protestos foram organizados durante toda a semana em frente ao Carrefour, do Passo D’Areia. A cobertura foi realizada pelos Jornais Correio do Povo e GaúchaZH, os quais destacaram as ações de resistência do Movimento Negro. “Nossa luta é contra o racismo cuja estrutura tem dizimado a população negra”, declarou a professora de ensino Infantil, Vanessa Flores, ao Correio do Povo. Ativistas posicionaram faixas no prédio do mercado com dizeres “parem de nos matar” e “A carne barata do mercado é preta”.
Na quinta-feira, dia 19 de dezembro, um novo ato foi realizado para homenagear João Alberto, no Carrefour da Avenida Bento Gonçalves, no bairro Partenon. A manifestação seguiu pacífica até o pôr do sol, quando um grupo começou a arremessar rojões contra o estacionamento da loja, derrubando parte do gradil do supermercado. O Batalhão de Choque da polícia local agiu contra os manifestantes com uso de bombas de efeito moral. Outros grupos presentes queimaram pneus e fizeram uma fogueira no leito da Avenida Bento Gonçalves. Duas pessoas saíram do local com ferimentos leves. A Bento Gonçalves foi liberada às 21h30min do mesmo dia.
Nos dias subsequentes, uma série de cartazes e faixas escritas “o Carrefour é assassino” e “queremos Justiça para Beto” foram erguidas. Manifestantes partiram da rua Albion, ao lado do estabelecimento, até a avenida Bento Gonçalves, para pedir igualdade racial, o fim do racismo e justiça.
No Dia da Consciência Negra, em Santa Maria, a frase “vidas negras importam” ganhou destaque pela manifestação de cerca de uma hora realizada em frente ao Carrefour, na Avenida Rio Branco, no Centro da cidade. Os manifestantes também lembraram outras mortes relacionadas ao racismo, como a do engenheiro santa-mariense Gustavo dos Santos Amaral, durante uma barreira policial em Marau. Logo após o início do ato, o mercado fechou as portas. No final da manifestação, mãos com tinta vermelha foram pintadas na fachada do local e cartazes com pedidos de justiça foram fixados.
Questionado pela reportagem sobre o caso do assassinato, o Carrefour de Santa Maria, por meio do setor de comunicação, disse entender “que as manifestações que ocorreram por conta do caso João Alberto foram legítimas[…]”.
“[…] Além disso, criamos um comitê externo e independente de diversidade e inclusão, composto por especialistas, jornalistas, advogados, empreendedores sociais e líderes de movimentos sociais com reconhecida atuação nos temas, com o compromisso de orientar, e acompanhar ações de valorização da diversidade, inclusão e no combate à discriminação e ao racismo. Acreditamos que, com isso, poderemos evoluir e contribuir para a construção de uma sociedade mais inclusiva e tolerante. Nós compartilhamos do mesmo sentimento e estamos à disposição para criar um debate com a sociedade, buscando soluções para que casos como este não voltem a acontecer.”
O supermercado não respondeu a todos os questionamentos da reportagem e deixou lacunas em certas explicações frente à hierarquia entre funcionários e tratamento interno.
Um dos representantes do movimento negro em Santa Maria, Gustavo Rocha comentou à reportagems sobre a importância do protesto. Segundo ele, o ato de protesto foi organizado rapidamente, por se tratar de um mês simbólico. Fator este que potencializou o movimento negro e as pessoas que apoiam a luta anti racista, para se engajarem na manifestação. “Nos últimos anos, tenho me posicionado bastante ao público, para tratar sobre estes assuntos. Consequentemente, isto trouxe à tona diversas pautas nacionais e internacionais com pedidos de respeito e luta pela resistência, o que nos marcou muito como referências neste âmbito”, retratou.
Rocha é acadêmico de Ciências Sociais na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e integrante da Associação sobre Cultura Negra. “Muitos dos eventos promovidos por estes grupos foram cancelados devido à desestabilização emocional das pessoas, pois era véspera da consciência negra. O genocídio negro é algo que choca e abala profundamente. É triste ver que isto existe nos dias de hoje”, comentou. Segundo a fonte, os representantes do grupo receberam diversas mensagens com informações e incentivo para o protesto, que teve início por volta das 16h30, em frente ao mercado. “Tomamos a frente e coordenamos o pessoal com cartazes e gritos de ordem, e sempre alertando que era um ato pacífico. Por fim, a visibilidade da luta foi vista e respeitada, isso foi importante!”, ressaltou.
O ato reuniu várias pessoas no local, com máscaras e cuidados perante a aglomeração. As redes sociais se tornaram pilares na mobilização coletiva. “A morte dele revelou a desumanização em relação aos corpos negros, a falta de preparo dos seguranças e mais uma face do racismo estrutural no Brasil. As reações de revolta com a forma que o João Alberto foi tratado, foram imediatas, principalmente dos movimentos sociais, fazendo vídeos para as redes”, explicou Rocha.
O estudante também revelou que amigos dele pediam a manifestação de sua parte, já que, de acordo com o mesmo, “se deve colocar a cara a tapa para falar”, o que estreita um laço de conexão com o público: “Isso é importante, mas sempre alerto que todos devem combater e repudiar o racismo”. Diante de todo ocorrido, a Prefeitura de Santa Maria acabou por não se pronunciar. Para alguns manifestantes, é algo que acaba por ser negativo, deixando de prestar apoio à causa. “Já foi assim no assassinato do Gustavo Amaral, Santa Maria está deixando a desejar neste sentido. A Prefeitura não se manifestou. Gestores e representantes costumam não falar a respeito destas questões”, desabafou.
A gerente de mercearia do Carrefour Santa Maria, Natielen Souza, descreveu situações de racismo que sofreu no trabalho. A jovem revelou ter passado por situações constrangedoras e de desrespeito na empresa. Ela conta que a resistência de alguns clientes em contatar ela é aparente: “Um dia uma cliente foi entregar o currículo do filho para contratação de jovem aprendiz. Após minha colega atendê-la, a moça disse que queria falar com a responsável do setor. Ela perguntou se era eu, e eu disse que sim. Ela comentou que retornaria em outro momento. Passou uns dias e ela me questionava se realmente eu era a responsável. Eu disse que sim, e ela que não acreditava”. A jovem comentou que após a cliente se obrigar a entregar com uma expressão apavorada, tornou-se perceptível a não aceitação por parte da cliente, ao ver uma funcionária negra de alto cargo.
A reportagem também questionou Natielen sobre o tratamento interno da empresa, bem como a hierarquia entre funcionários, porém, por meio de uma consulta com o setor de Recursos Humanos local, ela não foi autorizada a responder quaisquer informações ligadas ao Carrefour.
Segundo a Valor Investe, a provedora de índices de mercado S&P Dow Jones, optou por retirar o Carrefour Brasil de sua carteira do índice S&P/B3 Brazil ESG (“índice amplo que procura medir a performance de títulos que cumprem critérios de sustentabilidade e é ponderado pelas pontuações ESG da S&P DJI. O índice exclui ações com base na sua participação em certas atividades comerciais, no seu desempenho em comparação com o Pacto Global da ONU (UNGC em inglês) e também em empresas sem pontuação ESG da S&P DJI” — fonte: Índice Brasil ESG). O referencial tende a alastrar o desempenho de empresas nacionais com foco particular nos critérios ambientais, sociais e de governança.
O caso teve repercussão internacional, a ponto de chamar a atenção para o racismo no mundo. Fator que colocou em xeque a eficácia da adoção de práticas de ESG por grandes corporações. Reportagens circularam o mundo a fim de abordar o assassinato, entre elas, destacaram-se a CBC Canadá, BBC News e a BloomBerg, na América do Norte, enquanto a Reuters e a France24h tomaram as atenções na Europa. Ambos jornais interpelaram o caso de maneira respeitosa, mas não deixaram escapar o tom de desprezo pelo ocorrido. A BloomBerg foi um dos veículos norte-americanos que veio a comparar o caso com o assassinato de George Floyd.
De volta ao Brasil, especialistas da Exame certificam que o assassinato de João Alberto não foi uma tragédia pontual, já que “mostrou a falta de políticas adequadas para reprimir casos de violência e de discriminação racial”. Segundo os mesmos, palestras e workshops com normas de atuação deveriam ser obrigatoriamente fornecidos a todos os envolvidos com a empresa. “Terceirizado não é um mundo à parte. Em acontecimentos assim, vemos o nome da grande empresa, que é a marca que a gente deposita o dinheiro e a confiança”, diz Liliane Rocha, fundadora da consultoria de diversidade Gestão Kairós. Ela informa que é necessário que companhias cubram seus fornecedores e ajudem a construir um censo demográfico de educação aos funcionários, para ampliar o percentual de mulheres, negros e LGBTI+ na liderança.
A consultora sênior da Mais Diversidade, Amanda Aragão, pontuou o seguinte: “Poucas empresas fazem um trabalho preventivo com mapas de riscos. Essa é uma situação possível de prever ao fazer bons planos de ação para que isto não ocorra jamais, afinal atos que atentam contra a vida são os de maior impacto”.
Em sua matéria, a Exame ainda retoma que a formação de seguranças por firmas é falha, pois muitas redes de supermercado ou varejo têm câmeras de vigilância para apurar roubos ou outros crimes, o que impulsiona que o contato dos seguranças com suspeitos deveria ser pontual. A reflexão leva a concluir que no assassinato de João Alberto, nesse caso, a atuação dos seguranças deveria ser apenas de afastar a vítima do local.
Um dia após o anúncio de exclusão do índice de responsabilidade social da Bolsa de Valores, o Carrefour Brasil foi removido na quarta-feira, dia 9 de dezembro, do quadro de associados do Instituto Ethos, considerada uma das mais renomadas entidades de promoção de responsabilidade social no setor privado. Os dados foram divulgados pela Folha de São Paulo, o qual informou que a empresa comunicou que sua comissão interna de ética iria monitorar e reportar mensalmente os desdobramentos dos compromissos assumidos pelo Carrefour. A previsão é para que até seis meses após o atentado, a Ethos reavalie as cláusulas impostas.
Além destas fontes, diversas emissoras televisivas reportaram o caso em seus telejornais. O Grupo Globo decidiu manter alta periodicidade na abordagem do tema em seus programas. A GloboNews (1/2), G1 e o Jornal Hoje mantiveram padrão de detalhes e aprofundamento do ocorrido. Por outro lado, o noticiário do SBT, junto da Band, usaram de características mais impactantes ao proferir a informação. O UOL (1/2) e a Rede TV também noticiaram o ocorrido em suas mídias e emissora.
Brasil afora, a France24h, o GuardianNews e o AlJazeeraEnglish repercutiram o assasinato, assim como o associaram a outros casos de racismo noticiados no mundo. Ambas utilizaram de fontes locais para a construção das reportagens a serem divulgadas em seus respectivos países. O audiovisual nitidamente foi bem explorado, permitindo às imagens falarem por si só. Somente o AlJazeeraEnglish utilizou da narrativa em sua divulgação.
O assassinado de João Alberto Silveira Freitas não foi o primeiro caso que colocou o Carrefour em xeque. E o acontecido mais recente fez com que veículos de imprensa e manifestantes trouxessem à tona outros episódios marcantes que a empresa já enfrentou (ou causou) ao longo de sua história.
Outros casos de racismo já haviam sido registrados. Exemplo disso é o de Januário Alves de Santana, na época com 39 anos, que aconteceu no dia 7 de agosto de 2009, em uma unidade do Carrefour em Osasco, em São Paulo. Santana aguardava do lado de fora de seu carro, no estacionamento, quando foi agredido por cinco seguranças que alegaram ser “impossível um neguinho ter um EcoSport”. Além disso, conforme a vítima, quando três policiais militares chegaram ele explicou que os documentos estavam no carro e, dando risadas, os policiais teriam dito “sua cara não nega, você deve ter pelo menos três passagens pela polícia”. Santana fraturou o crânio, perdeu um dente e teve de passar por cirurgia. Em março de 2010, o Carrefour o indenizou em um acordo extrajudicial sem valor divulgado e rompeu contrato com a Empresa Nacional de Segurança Ltda., empregadora dos acusados.
Mais recentemente, em outubro de 2018, funcionários do Carrefour de São Bernardo do Campo, no ABC Paulista, agrediram um homem negro e com deficiência física. A vítima, Luís Carlos Gomes, contou, na época, que começou a ser seguido por um gerente de prevenção após ter aberto uma lata de cerveja antes de passar pelo caixa, em virtude do calor que fazia naquele dia. Mesmo reiterando que pagaria pelo item, ele relatou ter sido chamado de “vagabundo” e “ladrão” pelo gerente e um segurança, após questionar o motivo da perseguição. Já no caixa, explica que deixou seu cartão e documentos com a atendente e se dirigiu ao banheiro, momento em que foi golpeado com socos e chutes. Após pagar as compras, Gomes afirmou que iria procurar a Polícia para relatar o caso, quando o segurança lhe aplicou um golpe “mata leão” e o arrastou até o estacionamento, onde foi jogado no chão e ofendido com xingamentos, inclusive de conotação racial. O Carrefour foi condenado a pagar R$ 26 mil para a vítima.
A morte ignorada de um promotor de vendas também repercutiu nacionalmente, em 14 de agosto de 2020. Por volta das 7h30 daquele dia, Moisés Santos, de 59 anos, sofreu um infarto e faleceu enquanto exibia seus produtos em uma loja do Carrefour localizada no bairro da Torre, em Recife. Ele chegou a receber os primeiros socorros, mas não resistiu. A repercussão negativa se deu pela forma que a empresa tratou a morte do promotor, cercando o corpo com alguns tapumes, caixas e garrafas de cerveja e cobrindo com três guarda-sóis, sem sequer julgar necessário fechar as portas em respeito à perda. O Instituto Médico Legal (IML) o levou por volta das 12h. Odeliva Cavalcante, mulher de Moisés, afirmou em entrevista ao G1 que “seria muita coisa se eles tivessem baixado as portas, mas, no momento, não pensaram no ser humano. Só pensaram no dinheiro”.
Assim como o assassinato de João Alberto está associado ao racismo estrutural, centenas de outros casos dispersados em meio ao povo, exibem o mesmo infiltrado entre as pessoas, como um todo. Nichos educacionais, políticos e culturais são exemplos de áreas duramente afetadas pelo racismo, que desde o período colonial, afeta a sociedade com violência, discriminações, desrespeitos e desigualdade.
É o que reforça a pesquisadora e pedagoga, Maria Rita Py Dutra, quando argumenta que o assassinato reflete ao racismo estrutural existente na sociedade brasileira. “Ela [sociedade] está com suas bases referenciadas na escravidão, no regime escravagista. Este regime que vem desde a ocupação do colonizador, chega aos nossos tempos. Os antigos senhores de escravos permanecem com seus herdeiros nas estruturas de poder da nossa sociedade. Eles estão no STF, defendendo e definindo a legislação, no judiciário, no MP, representando seus segmentos no congresso e no Senado. Nós precisamos resistir, nos dando as mãos para vencer esta estrutura”, explica Maria Rita.
Ela também critica o a expressão “bandido bom é bandido morto”, fazendo uma relação com o fato de que negros são vistos como ameaças, passíveis de cometer qualquer ato violento: “por meio disto, reflete-se o estereótipo de que ‘todo negro é bandido’, e automaticamente as pessoas julgam ‘legal’, a morte deste ser. A morte não reflete a educação, e sim o racismo estrutural. Podemos dizer que reflete o racismo institucional. Se nós tivessemos uma educação que valorizasse o negro, que a sociedade conhecesse nossa história, valores, seriamos mais respeitados”, pondera.
A frase ressaltada pela política, professora e filósofa brasileira, Lélia Gonzalez, diz que “enquanto a questão negra não for assumida pela sociedade brasileira como um todo: negros, brancos e nós todos juntos refletirmos, avaliarmos, desenvolvermos uma práxis de conscientização da questão da discriminação racial neste país, vai ser muito difícil no Brasil, chegar ao ponto de efetivamente ser uma democracia racial”. Frente a esta declaração, percebe-se que, diante da resistência de parte da população mundial que age de modo conivente com o racismo, as ações e discriminações seguem se repetindo mundo afora.
Em meio a pandemia de coronavírus, o ano de 2020 ainda foi um catalisador com os problemas sociais que o Brasil já tinha, incluindo o racismo, de acordo com o historiador João Heitor Macedo, diretor do Museu Comunitário Afro Treze de Maio em Santa Maria. Ele lembra a dificuldade que os negros enfrentam na sociedade mesmo após 132 anos da abolição da escravatura. “O racismo segue forte assim como no período colonial, principalmente por falta de atuação do Estado, algo histórico, que desde o início não tem nenhuma política social negra. Quando pensamos em igualdade, pressuposto de princípios e direitos iguais, isso não acontece na imediata constituição depois de 1888 a 1891, a igualdade jurídica prevista em 1891, não dava acesso à moradia, saúde, educação. Negros e negras que ficam livres nesta época, são libertos por uma sociedade que não os aceitava, onde o mal do século era a falta de acolhida e a ocupação das periferias, locais onde o Estado não chegava. Todas estas estruturas que não foram dadas no começo do período republicano, seguiram por mais de um século de história. Hoje temos a população negra negligenciada pelo Estado, ou seja, colocou-se a população negra em segundo plano, assim como o debate racial, como se fosse um assunto que não exista no Brasil”, relata Macedo.
Ademais, o diretor avalia contorna a história e importância etnico-racial do Museu Comunitário. Foi nesta perspectiva, da idealização do Museu, que originaram-se as pesquisas para contar as histórias da população negra, diferentemente do que é contado socialmente. A trajetória do Brasil negou a questão do racismo. “Quando tratamos o assunto na Educação Básica, muita coisa é omitida, há muitos dados a serem revelados. Nós podemos aprofundar mais essas histórias, temos estas espalhadas pelo país, assim como pelo RS, onde há sociedades remanescentes de quilombos. São mais de 100 registrados e mais de 190 em processos de estudos”, frisou Macedo.
Dentro do ambiente universitário, a tese de doutorado em História de Macedo é uma pesquisa na área de patrimônio histórico voltado à educação etnicorracial, com o objetivo de lutar por uma educação superior que combata o racismo. Ele conta que seria uma hipocrisia dizer que não há racismo nas universidades, já que “elas são as referências dos europeus na América e foram feitas para educar os mesmos”. E acrescenta: “Não é comum encontrarmos o racismo em massa nas universidades públicas, mas é comum nos depararmos com barreiras contra qualquer política de permanência da população negra e de combate ao racismo. Todas as vezes que nos pronunciamos dentro do ambiente educacional, encontramos pessoas que se identificam com a postura e também muitas dificuldades. Hoje, com o Prouni, o REUNI, as cotas, o perfil dos estudantes mudou bastante, e estes que hoje protagonizam grandes debates e fazem grandes pesquisas”.
Logo, as políticas públicas tomam forma nas governanças nacionais. Estas que em meio a democracia vivenciada hoje, permeiam entre diferentes grupos étnicos. Direcionado aos direitos para a população negra, estão dentre as propostas, a lei 10.639 que prevê a obrigatoriedade do ensino da história e da cultura africana e afro brasileira no ensino; a Lei 11.000/2003 e a 11.645/2008, que dizem não só o ensino da história e afro, mas também o da história indígena. As leis educacionais são destacadas, da mesma forma, por Maria Rita, que ressalta as referências à questão indígena, mas que por outro lado, mantinha uma lacuna no currículo oficial sobre a história africana (racismo estrutural). “Para manter este ensino de qualidade, deve-se cumprir as leis, que as escolas ao invés de reproduzirem um ensino racista que classifique as pessoas entre melhores e piores (valorização à cultura eurocêntrica), mas que valorize todas as culturas, que atenda o princípio da democratização do ensino”, destacou Maria Rita.
Sabe-se que a educação passou por diversas transformações no Brasil ao longo do tempo. Desde a didática até a inclusão social, que derivada da cultura eurocêntrica, retratou por anos, um ensino direcionado às pessoas de origem ou descendência europeia, por questões de influência colonizadora. As desigualdades econômicas e educacionais apontam resquícios das referidas características. “Até 2000 nós tínhamos universidades essencialmente brancas, com menos de 2% de estudantes negros. As pessoas se acostumaram a não conviver com negros. Onde estão os negros(as) nos bancos, universidades, lojas, supermercados? Precisamos encontrar estes negros em todos os lugares”, elucidou Maria Rita. A pedagoga enfatiza também a importância da representatividade negra na sociedade: “Se nós somos 56% da população brasileira, por que não estamos nas câmaras municipais, nas assembleias, no Senado ou na Câmara Federal? Por que não ocupamos lugares de poder político? Queremos que a comunidade branca esteja ao nosso lado e à nossa frente, para que nos auxiliem na busca pela igualdade.”
Dentre a inclusão social, para permitir uma representatividade mais justa nas universidades, ainda que não compreenda proporcionalmente em relação a população geral do país, o sistema de cotas garante que muitos negros e indígenas possam ter acesso ao ensino superior. O representante do movimento negro em Santa Maria, Gustavo Rocha, avalia: “Eu vejo que, no Brasil, começou a falar-se muito sobre raça e racismo como as cotas raciais. Na UFSM, quando elas foram implantadas, houve um grande movimento contrário, por parte de cursinhos empresariais e jovens de classe média branca. Assim, começaram a surgir movimentos de resistência, em meados de 2010, como uma nova década de movimentos em Santa Maria, com celebrações e lutas por direitos. A inserção de pessoas negras na UFSM forma novas discussões e coletivos negros, o que fortifica cada vez mais esta luta. Atualmente, vejo poucos coletivos atuantes na cidade. Hoje militamos em busca de trazer estes grupos de volta. É muito necessário que estes grupos se acendam de novo e engajem-se para fortalecer esta luta”.
Toda a luta por meio de atos e movimentos de combate ao racismo proporcionaram, até certo ponto, uma evolução na sociedade. Mas ainda há muito para progredir. Natielen Souza, gerente de mercearia, relata outro caso discriminatório que sofreu por ser negra. “Ocorreu uma vez que fui a uma loja, bem conhecida em Santa Maria, procurar uma roupa, pois eu iria abrir meu salão. Expliquei para a moça, na ocasião, que seria a abertura de um salão de beleza, e ela trouxe algumas roupas e me perguntou se eu era convidada. Antes que eu pudesse responder, ela disse: ‘com certeza tu vai trabalhar lá, né? Já vai começar trabalhando, então é melhor ir com uma roupa mais simples.’ E eu disse que não iria, pois estaria inaugurando o salão de beleza. Ela ficou em choque e perguntou duas vezes se o salão era meu e era no centro”. Incomodada com a situação, Natielen chamou o gerente e explicou que se tratava de um ato racista, já que a atendente não acreditava que ela, mulher negra, seria a proprietária.
O sistema educacional é um dos principais artefatos na conscientização sobre o que é o racismo e suas raízes. Os movimentos e as denúncias estão por todo lugar, mas muitas vezes, ignorados pelos responsáveis. Deve-se haver o questionamento sobre estas abordagens: onde estão os negros? Que espaço eles estão ocupando no trabalho? Há de haver a problematização e a transparência ao noticiar os fatos, por se tratar de um cenário de negacionismo político. Assim, consideram-se o foco na educação geral, na abertura de debates e nas políticas públicas, fatores de resolução para todo e qualquer ato racista.
*Produzida para a disciplina de Jornalismo Investigativo sob a supervisão do professor Maurício Dias
Apesar de existirem desde 1994, os mandatos coletivos não são legalizados no país. Desde 2017, uma PEC que busca viabilizar os coletivos no Poder Legislativo está parada na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara de Deputados
Denzel Valiente, Laura Gomes e Vitória Gonçalves*
As instituições políticas brasileiras são consideradas as menos confiáveis pela população. Na última pesquisa do Datafolha (07/2019) sobre o tema, 58% dos cidadãos afirmaram não confiar nos partidos políticos, e 45% informaram que não confiam no Congresso Nacional. Esse cenário coloca em debate novas formas de pensar e fazer política. Uma das alternativas para essa crise da democracia representativa são os mandatos coletivos.
Essas iniciativas aparecem no Brasil a partir de 1994. Desde então, foram 351 candidaturas coletivas nas eleições federais, estaduais e municipais, de acordo com os dados da Rede de Ação Política para Sustentabilidade (RAPS). Esse tipo de mandato é caracterizado pela atuação de um(a) parlamentar em conjunto com coparlamentares que debatem e deliberam coletivamente acerca das decisões políticas tomadas nas casas legislativas.
Apesar do crescimento das candidaturas coletivas nos últimos anos, ainda não existe uma regulamentação na área. Em 2017, a deputada Renata Abreu (PODE-SP) ingressou com uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC 379/17) para inserir, no art.14 da Constituição Federal, a possibilidade dos mandatos coletivos no âmbito do poder Legislativo. A PEC, porém, está parada na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) desde o ano que foi proposta.
O pós-doutorando em Direito na Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI), doutor em Educação nas Ciências pela Unijuí e professor do curso de Direito da Universidade de Cruz Alta (Unicruz), Domingos Benedetti Rodrigues, aponta uma razão para esse cenário. Segundo ele, a regulamentação ainda não ocorreu pois os mandatos coletivos não surtiram um efeito abrangente na sociedade capaz de efetivar uma pressão nos parlamentares brasileiros para regulamentar a questão. No entanto, o professor acredita que o cenário está mudando. “A repercussão dos mandatos coletivos e a experiência positiva que eles vão mostrar servirá de pressão para que o parlamento o regulamente”, afirma Domingos.
O professor ainda acredita que esse tipo de representação política fortalece o exercício da democracia representativa, pois, ao contrário do parlamentar que após a eleição rompe o contato com as suas bases eleitorais, as candidaturas de grupos pressupõem um estreitamento das relações de diálogo com a população. “Penso que a proposta do mandato coletivo é incipiente e está nascendo. Mas, eu diria que com o debate e o amadurecimento, a evolução do projeto vai se concretizar. A democracia não é estática, a democracia é evolutiva, e progride de acordo com as necessidades da sociedade”, reitera Domingos.
O crescimento dos mandatos coletivos pode ser observado nas eleições municipais de 2020: foram 257 candidaturas e 16 coletivos eleitos no Brasil.
*O primeiro nome corresponde à pessoa que representa o coletivo na Câmara Municipal.
Eleitos mas não regulamentados. Como será a atuação?
Na prática, apenas o titular dos mandatos coletivos atuará na Câmara Municipal. Os (as) covereadores serão nomeados (as) nos gabinetes parlamentares como auxiliares, assistentes ou assessores. Desse modo, os coletivos adotaram diferentes formas de organização com relação à gestão e à distribuição de funções e tarefas.
A Coletiva de Mulheres (PT – SP), por exemplo, possui 18 integrantes. Na Câmara Legislativa do município de Ribeirão Preto é possível designar apenas duas pessoas para o gabinete. O coletivo nomeará, assim, duas covereadoras como assessoras. Os coletivos Nossa Cara (PSOL – CE), Candidatura Coletiva (PCdoB – RS), Nossa Voz (PT – MG) e Pretas por Salvador (PSOL – BA) também pretendem nomear os (as) covereadores (as) como assessores (as) de acordo com as cotas de cada município.
Algumas cidades permitem um número maior de pessoas no gabinete. Assim, além da representação política, os coletivos Representa Taubaté (Cidadania – SP), Nossa Cara (PSOL – CE), Bancada Feminista (PSOL – SP), e Coletivo Nós (PT – MA) planejam compor o gabinete com pessoas que não estão, necessariamente, dentro do coletivo.
O processo de tomada de decisão também é diversificado nos mandatos coletivos. Na Coletiva de Mulheres (PT – SP), devido ao número elevado de covereadoras (18), a deliberação das decisões políticas ocorrerá por meio de votações. Já a Candidatura Coletiva (PCdoB – RS) defende uma construção ampla e plural. “Cada uma tem 1/5 da decisão nos temas que se apresentarem para votação – mas não só isso, também queremos trazer um sexto elemento para essas decisões: a opinião popular sobre cada tema”, comentam as covereadoras.
O coletivo Todas as Vozes (PSOL – SP) possui um regimento interno que estabelece o funcionamento do mandato e as tarefas desempenhadas por cada covereador (a). Segundo o coletivo, os princípios que orientam a atuação do grupo são a governança compartilhada, a participação popular e o estímulo a decisões dentro da coletividade. Na prática, os temas são discutidos e deliberados por todos (as). Além disso, pretendem debater assuntos polêmicos com a população por meio de audiências públicas, reuniões de bairro e conselhos de moradores.
O Coletivo Nós (PT – MA) estabeleceu no estatuto do regimento do mandato um processo de tomada de decisão em três etapas. “A primeira instância de decisão são os próprios covereadores e vereadoras, que também incidirão sobre as pautas prioritárias do mandato; a segunda é a coordenação geral do Coletivo Nós, que atua para além do mandato; e um terceiro espaço são as plenárias populares nos polos, que vão ouvir as demandas das comunidades. Será apresentado na tribuna as demandas que o povo definir como prioridade”, explica o coletivo.
Além disso, o coletivo planeja propor alterações no regimento da casa legislativa para que todos (as) os (as) covereadores (as) tenham direito de falar na tribuna e participar das comissões especializadas. Outro coletivo que já relata intenções de indicar mudanças na Câmara Municipal é o Nossa Voz (PT – MG). Para o coletivo, os discursos da pauta do dia podem ser escritos por qualquer um dos quatro covereadores, assim como, durante as votações podem ser utilizados termos como “após deliberação do Coletivo, entendemos que sim/não”, ou “eu co-vereadora Andressa, voto junto aos covereadores Bruno, Hernane e Priscila que sim/não”.
O professor Domingos entende que a regulamentação dos mandatos poderia auxiliar nessas questões reivindicadas pelos coletivos. Contudo, a Lei nº 9.504/97, que estabelece as normas para as eleições, ainda não incorporou essas novas demandas. “Para que a candidatura seja aceita, deve ser uma candidatura única, de apenas uma pessoa. O mandato coletivo é um grupo de pessoas que escolhem e candidatam um membro do grupo, registram ele em um partido e realizam a candidatura. Mas, legalmente apenas um candidato participa”, sinaliza Domingos.
Outra questão presente no debate é referente aos salários. Alguns grupos eleitos este ano propõem a divisão do salário do parlamentar entre os (as) membros (as) do mandato coletivo. A Coletiva das Mulheres (PT – SP) lembra que a divisão de salário é considerada crime, dessa forma, apenas a vereadora titular vai receber o salário integralmente. O coletivo Nossa Cara (PSOL – CE) relata que apenas a representante Adriana Gerônimo receberá o salário como vereadora, e o restante como assessoras parlamentares. Além dos coletivos que não definiram qual será a remuneração de cada representante (3), outros afirmaram que o salário não será compartilhado (3).
Uma solução que busca contemplar todos (as) foi adotada pelo coletivo Todas as Vozes (PSOL – SP), composto por nove pessoas. Cinco covereadores (as) serão nomeados (as) para o gabinete do vereador. “Equiparamos ao máximo o salário das pessoas que atuam dentro da Câmara, que originalmente não são iguais, e ainda remuneramos mais três pessoas. Vale ressaltar que no nosso caso serão seis pessoas na Câmara (trabalhando 40hs semanais) e três pessoas alocadas nos bairros (trabalhando 20hs semanais), portanto elas receberão um salário menor”, explica o coletivo.
O Representa Taubaté (CIDADANIA – SP) afirmou que não haverá divisão de salário da vereadora, cada um (a) terá sua função e serão contratados (as) como funcionários do gabinete. O mandato também verifica possibilidades, dentro da legalidade, para tornar essa questão mais igualitária possível. O coletivo Pretas por Salvador (PSOL – BA) pretende usar a verba para fazer o pagamento dos funcionários, enquanto as duas principais representantes receberão o salário igualitário.
A Coletiva Bem Viver (PSOL – SC) relatou que o salário da parlamentar será dividido entre as cinco covereadoras da mesma maneira. O grupo Fany das Manas (PT – PE) pretende dividir o salário igualmente entre a representante e as assessoras. Embora a intenção da divisão dos ganhos seja manter os parâmetros igualitários dos coletivos, a partilha salarial é considerada um esquema de rachadinha, na qual ocorre uma transferência de parte ou de todo salário do servidor para o parlamentar ou secretários a partir de um acordo anteriormente estabelecido.
Segundo o professor Domingos Benedetti, a lei proíbe que o parlamentar eleito pela teoria do mandato coletivo divida o seu salário entre correligionários. “Ele vai ter o número de assessores que é permitido por lei, que irão receber o salário do parlamento”, relata o professor. Ele também reforça que o papel dos assessores é desenvolver funções de assessoramento ao desenvolvimento do mandato parlamentar. Mas apenas um candidato vai subir na tribuna, para defender e apresentar o projeto de lei.
Por questões legais, a partilha de salário deve ser analisada juridicamente visto que há diversos casos ilegais em relação a divisão salarial. Assim, a questão pode causar confusão entre o que é ou não legal por parte dos tribunais eleitorais. Por outro lado, os custos de campanha eleitoral são regulados pela legislação eleitoral, sem grandes complicações do ponto de vista da estratégia de compartilhamento dos gastos.
Embora os mandatos coletivos não sejam regulamentados juridicamente no Brasil, o método tem pretensões de alcançar outros níveis institucionais e se fortalecer no legislativo. Para o professor Domingos Benedetti, a proposta oferece um grande exercício de democracia participativa e contribui com a reaproximação dos desejos da população aos espaços institucionais.
Espaço das mulheres
O crescimento dos mandatos coletivos nas eleições acompanhou a luta pelo espaço das mulheres na política, que, nas últimas eleições foram eleitas nas Câmaras Municipais de todas as capitais do país. Apesar disso, a maior parcela da população feminina permaneceu ausente no Legislativo municipal de 17% dos municípios brasileiros, segundo o levantamento do Instituto Update.
Por outro lado, os mandatos coletivos avançam na questão da representatividade. Ao todo, 93 pessoas compõem os 16 grupos eleitos. Destes, 71 são mulheres e 22 são homens. Apenas um coletivo não possui mulheres na composição. As mulheres ainda estão à frente da representação parlamentar em 13 coletivos.
Disposição geográfica
A região sudeste concentra a maioria dos mandatos coletivos (oito). Em seguida, vem a região nordeste com eleição de quatro coletivos. No sul, três Câmaras Municipais serão ocupadas por coletivos. Na região centro-oeste, apenas um coletivo foi eleito. No nordeste, a reportagem não encontrou coletivos eleitos.
O que defendem?
Quando o assunto são as bandeiras defendidas pelos coletivos, todos possuem diversas frentes de atuação. Entre as pautas mais frequentes estão a defesa dos direitos das mulheres, da educação, da cultura, da população negra e periférica e LGBTQIA+.
No nordeste, que em 2017 era a região com maior número de homicídios no Brasil segundo o Atlas da Violência – levantamento de homicídios relatados pelo Sistema Único de Saúde (SUS), pautas com o enfrentamento a violência contra a mulher e ao extermínio da juventude negra se destacam em comparação às outras regiões. Os coletivos Pretas por Salvador (PSOL – BA), Fany das Manas (PT – PE) e Nós (PT – MA), possuem entre suas bandeiras de luta o combate a violência e a defesa dos direitos das populações, o que evidencia uma realidade enfrentada na região.
Além disso, pautas relacionadas à gestão das cidades, meio ambiente e agricultura familiar estão presentes tanto nos coletivos da região nordeste como nas regiões sudeste e sul.
A reportagem entrou em contato com todos os coletivos eleitos. 12 retornaram e quatro não haviam respondido até o encerramento da matéria: Teremos Vez (RS), Mandato Popular Coletivo (SP), Quilombo Periférico (SP) e Mandato Coletivo de Machado (MG).
*Reportagem produzida para a disciplina de Jornalismo Investigativo sob a orientação do professor Mauricio Dias
A fábrica que reabriu no ano da pandemia já enfrentou problemas sérios, inclusive uso de insumos baratos que alteraram o sabor
Joedison e Matheus Avello*
A Cyrilla foi inaugurada em 20 de setembro de 1910 em Santa Maria, Rio Grande do Sul, e fica localizada na rua Marechal Deodoro, número 50, bairro Itararé. Foi fundada pelo alemão Frederico Adolfo Diefenthaler em sociedade com o químico Ernest Geys, e teve a finalidade de produzir águas minerais, refrigerantes, licores e outras bebidas alcóolicas.
Ao longo dos seus 110 anos a indústria viveu vários altos e baixos. Teve sucesso em vendas, mas também momentos difíceis. A empresa pecou em más administrações, que não souberam lidar com problemas fiscais, com a concorrência, que provocaram a falência em 2008. Mesmo com tudo isso a fábrica conseguiu dar a volta por cima e reabrir em 2020.
As dificuldades ao longo da existência e a falência em 2008
A fábrica encerrou as atividades, em 2008, por problemas diversos, como endividamentos relativos a impostos, dificuldade financeira, problemas de mercado e má administração. “O último proprietário foi meu pai, Antonio Gilberto Correa que começou a trabalhar na Cyrilla como funcionário no ano de 1971”, afirma Tiago Correa.
Tiago conta que o auge das vendas da marca foi na década de 1970 e que ao longo dos anos a empresa passou por vários problemas. “A família Diefenthaler administrou a fábrica até início dos anos 1980, passando por três gerações familiares. Nos anos 1980, a Cyrilla passou por problemas familiares. Não sabiam se iam vender a empresa ou simplesmente fechar as suas portas”, conta. “Foi aí que ofereceram para meu pai um percentual para ele administrar a empresa e ele tentar virar o jogo”, complementa Correa.
Entre os anos 1980 e 1990, a empresa conseguiu alavancar suas vendas. Aos poucos Antônio Gilberto Correa comprou a parte dos outros sócios. Correa ficou à frente da empresa até 2008, quando fechou. Os problemas começaram a aparecer em 1994, quando surgiu a garrafa PET. A fábrica parou de produzir o vidro e já não conseguia mais fazer o guaraná Cyrillinha como era antigamente. A partir daquela década surgiram problemas fiscais e concorrência com outras marcas mais baratas.
Nos anos de 2002 e 2003, a fábrica vendia seus produtos para todo o Estado, tinha produção 24h por dia, porém, havia um contratempo de problemas fiscais somado à má administração. Tiago informa que naquela época aumentaram as dificuldades por conta de 49 fábricas de refrigerantes existentes no país que não mantinham um padrão e produziam os produtos de má qualidade, bem mais baratos que a Cyrilla. “Como a Cyrilla tinha um custo mais caro, não podia competir. Não conseguia vender. Logo não possuía mais capital. Com isso, ela foi se descapitalizando junto com interferências fiscais que fizeram a fábrica fechar suas portas de vez no ano de 2008”, admite Tiago Correa.
A empresa vendia muita mercadoria para os supermercados do Estado. Porém, às vezes as lojas não vendiam tanto, e os produtos acabavam voltando para as trocas, o que acarretava em perda de receita. “Seu Gilberto era um bom patrão e uma excelente pessoa com seus funcionários e clientes. Seu único defeito era não saber administrar, já que, gastava muitas vezes mais do que realmente ganhava de vendas e obtinha lucro”, assegura Onofre Lopes de Almeida ex-funcionário da empresa.
“Trabalhei na fábrica entre os anos de 1997 e 2008. Durante este período, a Cyrilla passou por fases difíceis”, comenta. O ex-funcionário revela que nos últimos anos houve troca de insumos, que alteraram o sabor dos refrigerantes. “A empresa, na época, trocou algumas coisas de sua composição química que estavam muito caras por outras mais baratas, o que ocasionou em um refrigerante mais aguado, com menos gosto e pouco gás. Isso na época deu um baita problema, pois a empresa recebeu várias ligações de reclamações, o que gerou várias trocas de refrigerantes”, lembra.
Os consumidores não aceitaram as bebidas mais aguadas e com menos gás. “No fim, a empresa tentou economizar na produção, mas acabou gastando ainda mais, já que, o refrigerante mais barata gerou trocas. Foi um período em que a fábrica teve mais prejuízo. Salários atrasados de funcionários e problemas trabalhistas começaram a aparecer entre 2007 e 2008, o que logo levou seu Gilberto Correa fechar as portas da empresa”, declara o ex-funcionário.
Segundo o ex-funcionário, a Cyrilla entregava refrigerantes em todas as cidades do Rio Grande do Sul. Os supermercados que mais vendiam Cyrilla aqui em Santa Maria eram o Beltrame da rua Euclides da Cunha, Big da Fernando Ferrari, Nacional do centro e Avenida Medianeira e a Rede Vivo. Em 2008 Onofre teve que sair da empresa, devido a um acidente de moto no bairro Itararé, no trevo onde fica a igreja Santa Catarina. “Estava a trabalho no momento do acidente, mas não consigo me lembrar do exato momento do acidente, apenas sei por laudos e dados levantados pela polícia”. “Após o acidente fiquei um bom tempo internado, pois tive traumatismo craniano e também fiquei com sequelas, passei a ficar com a memória curta, assim como lembro das coisas, logo esqueço”, informa Lopes.
Morador desde que nasceu no bairro Itararé, Jorge Ademir Rosa Pereira, 56 anos, conta que nos anos 80 e 90 vendia-se bastante refrigerante na empresa. Os moradores do bairro todo consumiam apenas Cyrilla. “Temos que valorizar a marca, porque é um produto nosso produzido aqui na cidade, os refrigerantes Cyrilla são produtos bons, suave e que devem ser mais valorizados por todos daqui, ao invés das população da cidade dar lucro a empresas de fora como a Coca-Cola, por exemplo”, comenta. “Não podemos deixar a indústria fechar suas portas novamente”.
“A Cyrilla faz lembrar-me da minha infância que sempre tinha refrigerantes Cyrilla nas festas aqui em casa, ou nos encontros com a família. Bebíamos Cyrilla também em bares que ficavam próximos a Gare, além de encontros com amigos, vizinhos e familiares que sempre tinham algum sabor de refri da marca”, menciona Pereira. Recordo bastante da Cyrillinha que era feita da casca da laranja e era o sabor que a gente mais tomava aqui em casa”.
Amancio D’Jalmo Aires Rodrigues, aposentado, 71 anos conta que quando bebe os refrigerantes da cyrilla relembra da sua infância e juventude, em especial um momento em que vivenciou quando tinha em torno de 10 ou 12 anos. “Nunca vou me esquecer daquela cena, estava assistindo uma corrida de cavalo (corrida de apostas) na minha cidade, Formigueiro e estava um calor insuportável e eu estava sem dinheiro para comprar o meu refrigerante favorito a gasosa limão da Cyrilla”. “Então um senhor que havia postado em um cavalo na carreira me viu e disse que daria uma gasosa limão para mim, caso o cavalo dele vencesse a carreira, e foi o que aconteceu. Após o final da corrida aconteceu uma tremenda briga, entre aqueles que perderam suas apostas, era gente correndo para todos os lados, queria sair dali, mas, não queria perder a chance de ganhar o meu refrigerante preferido. Peguei e me escondi em um cantinho e logo que acabou a briga, o senhor que me prometeu a gasosa cumpriu sua palavra e eu pulei de alegria”, declara Rodrigues.
A volta por cima
No momento, a Cyrilla pertence a três empresários, Lairton Pedro Padoin, dono dos postos Padoin, José Antônio Saccol, proprietário da Minami (Honda) e Luiz Antônio Marquezan Bagolin. “No início, só existia o sabor guaraná, mas com o passar do tempo foram produzidos novos gostos, como por exemplo: a gasosa limão e a cyrillinha. Uma bebida na cor alaranjada transparente, produzida a partir do óleo da casca de laranja, afirma Luiz Marquezan Bagolin, hoje sócio administrativo da fábrica.”
Com intuito de não deixar uma marca centenária morrer, Bagolin conta que ele e os demais sócios trabalharam duro ao longo dos últimos anos para reabrirem a empresa novamente no ano de 2020. Com o apoio da prefeitura, o prédio e a marca, que estava em leilão com a Justiça Federal, foram adquiridos. Todos os equipamentos foram adquiridos novos com a mais moderna tecnologia do mercado atual. Além disso, foi realizada uma reforma de obra civil na sede da empresa. Foi planejado aproveitar toda a estrutura imobiliária, porém o prédio era muito antigo, o que levou a ser reaproveitado apenas a fachada com o design clássico. Foram feitos dois andares e dois pavilhões novos. Para a parte elétrica teve que fazer subestações, todas em inox. Diferente de antes, os pisos foram feitos sem degraus, o que facilita o trabalho dos funcionários que utilizam empilhadeiras e paleteiras.
A empresa possui duas fontes de água ainda originais da antiga fábrica. Águas com ph 7.1, mineral utilizada para o consumo industrial e uma fonte gaseificada é a água diamantina, vendida em vários supermercados da cidade e também utilizada na produção de todos os refrigerantes. A fábrica trabalha apenas com produtos que na época eram de maior demanda, mas o objetivo da companhia é logo apresentar novos sabores de refrigerantes.
O atual sócio proprietário da Cyrilla, Luiz Marquesan Bagolin relata que o sabor uva já está sendo desenvolvido na empresa e daqui uns dias já estará à venda e que refrigerantes para o público infantil também vêm sendo planejados para desenvolvimento, além da produção da opção zero açúcar. A ideia de fabricar águas saborizadas para o futuro, já que é considerado um produto que está em alta no mercado, bem como a produção de bebidas alcoólicas, como vodkas, gins e licores, estão sendo pensados, afirma o sócio administrativo.
Porque uma empresa centenária e uma marca tão querida pelos santa-marienses não consegue manter as portas abertas. Será que agora é a vez da empresa emplacar?
O que todos queremos saber é se a Cyrilla conseguirá daqui para frente seguir firme, fazer uma boa administração ao contrário das anteriores. A empresa terá dinheiro suficiente para aumentar sua gama de produtos e capital para alcançar várias cidades e regiões do Estado e quem sabe País?
São muitas incertezas que ainda perduram sobre a fábrica, a questão também do seu preço que é bem elevado, quase o valor de refrigerantes da Coca-cola e da Pepsi, que são produtos de alta qualidade. Será que a empresa não deve baixar um pouco o valor de seus produtos para assim ficar na concorrência com outras marcas menores, como Fruki e Sarandi?
O que vai ser da empresa nos próximos anos ninguém sabe, mas espera-se que consiga manter-se e assim valorizar o nome da cidade de Santa Maria e o Estado do Rio Grande do Sul, além de que pode ser no futuro uma enorme fonte de novos empregos e de várias áreas de atuação dentro da empresa.
Um pouco da história da fábrica
A Cyrilla foi inaugurada em 20 de setembro de 1910 em Santa Maria, Rio Grande do Sul e é uma das indústrias de refrigerantes mais antigas do País. Foi fundada pelo alemão Frederico Adolfo Diefenthaler em sociedade com o químico Ernest Geys, e teve a finalidade de produzir águas minerais, refrigerantes, licores e outras bebidas alcóolicas.
A marca foi uma das pioneiras no envase do guaraná, sendo um dos primeiros refrigerantes desse sabor no Brasil. Sua fórmula foi produzida no ano de 1905 pelo médico Luiz Pereira Barreto, na cidade de Resende, no Rio de Janeiro. Porém, ela só passou a ser utilizada em 1910 em Santa Maria, após ser adquirida e registrada por Diefenthaler e Geys.
A indústria foi instalada no bairro Itararé, próximo ao centro da cidade, ficando também a poucos quilômetros dos trilhos da Viação Férrea, onde passavam muitos viajantes e turistas de vários lugares do País. Fator que foi importante para o destaque da empresa, que pode divulgar e vender o guaraná. Com popularidade elevada, Cyrilla foi a pioneira na cidade se tratando da industrialização de bebidas, e uma das mais importantes e representatividade na região central do Rio Grande do Sul.
O Livro de Cirilo Costa Beber, “Santa Maria 200 anos: história da economia do município”, fala que o desenvolvimento do bairro Itararé se deu em virtude da ferrovia instalada na cidade e também da Fábrica da Cyrilla. A empresa apresentou muita influência ferroviária já que, na época era muito utilizada por viajantes, turistas, militares e imigrantes alemães e italianos, além de meio de transporte de produtos plantados aqui que eram comercializados para várias cidades do País.
Santa Maria tinha a maior parte de seu capital econômico vindo da agropecuária e do setor de serviços, com destaque para o comércio, o que ajudava muito aos habitantes a consumirem os produtos locais. A cidade foi um dos principais centros da Viação Férrea do Rio Grande do Sul (VFRGS). Possuía na época e, ainda possui um grande contingente militar, segunda cidade com maior contingente de militares do Brasil, além de estar posicionada geograficamente no centro do estado do extremo sul do Brasil e, assim, próximo da Argentina e do Uruguai.
“Era só mais um Silva que a estrela não brilha; ele era funkeiro, mas era pai de família”. Não há quem não conheça o famoso refrão do Rap do Silva, maior hit do MC Bob Rum. Essa música reflete sobre a vida na periferia e o preconceito das classes mais altas com o funk e a cultura que o envolve. Apesar da música ter sido lançada em 1990, ainda se vê a mesma realidade quando o estilo musical é trazido à tona, quase sempre associado à criminalidade e à violência urbana.
Desenvolvido no fim da década de 70, o funk foi conceituado como a prática musical vinculada a manifestações culturais dos chamados bailes funk, que não passavam de festas organizadas por equipes de som em clubes da região suburbana. Naquela época, festas como o baile da pesada estavam apostando em um repertório com soul music para promover o movimento Black Rio, inspirado nos bailes realizados nos Estados Unidos na mesma época. Os produtores abraçaram a ideia de valorização da cultura negra e queriam produzir artistas nacionais, porém a indústria se deslocou para o estilo disco com rapidez, levando somente Tim Maia à ascensão.
O psicólogo Thiago Alves diz que a cultura brasileira engloba vários elementos internacionais e oriundos de outros países e o culturas, “e o funk, a nível internacional, têm elementos negros da sua essência, principalmente na vocalização e instrumentos”.
Ao acompanhar as tendências estadunidenses, o novo estilo musical tentava se aliar ao hip-hop da cultura negra. A concorrência entre os DJs era grande e muitos buscavam por referências viajando à Miami, nos Estados Unidos, cidade onde surgia a vertente de hip-hop chamada de Miami Bass. O estilo se destacava pelo ritmo rápido, bumbo frenético e letras sexualmente explícitas. Em 1987, os bailes funks cariocas eram cerca de 700 por fim de semana, agregando no mínimo um milhão de jovens no Rio de Janeiro. Nesta época, os bailes eram realizados em ginásios de esportes ou quadras de escolas de samba.
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Enquanto a classe média alta via o rock nacional como preferência, o funk incorporava músicas eletrônicas com graves pulsantes e muito dançante, se tornando o lazer da juventude pobre da cidade junto ao pagode. Entre as inovações da época, surgem os MCs, sigla para “mestre de cerimônias”, responsáveis por interpretar a letra e interagir com o público através do microfone. É então que os novos artistas deixam de tentar reproduzir as músicas estadunidenses e começam a criar suas próprias letras, falando sobre a vida cotidiana da favela e da sua comunidade, também apelando pelo pedido de um baile pacífico.
É no fim da década de 1980 que a violência nos bailes funk passa a chamar atenção da imprensa, gerando um aumento no preconceito com o estilo musical e de festa. Ao mesmo tempo que o MC Marlboro impulsionava a carreira de inúmeros artistas com coletâneas, o MC Grandmaster Raphael do Furacão 2000 propõe os festivais de galeras, no qual os próprios frequentadores dos bailes elaboravam e interpretavam as letras. Depois de 1990, as festas aconteciam em áreas de céu aberto ou ruas, e a figura dos MCs ganhava grande destaque, incitando a imagem de sucesso artístico acessível à qualquer jovem da favela. Apesar de muitos irem para os concursos dos festivais com propósitos pacíficos, a competitividade fomentava a agressividade em alguns jovens, resultando em violência. Ao serem documentados pela imprensa, a imagem do funk foi diretamente ligada aos arrastões de 1992.
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O acontecimento foi um embate entre facções rivais oriundas de bairros periféricos na Praia do Arpoador, e onde a elite carioca se chocou com ritual de luta comum da periferia. Devido ao impacto negativo causado na população dos bairros nobres e a grande divulgação da mídia, o marco ficou conhecido como arrastão e os envolvidos foram taxados de assaltantes e relacionados aos bailes funk. Assim, a imprensa começa a marginalizar o gênero perante a opinião pública, principalmente a partir de 1995, quando surgem acusações que ligavam os bailes com o comércio varejista de drogas. Segundo Alves, “o funk é mal visto pela perspectiva de onde ele vem, pois, quando ele chega na mídia, é ligado a questão da violência”. As pessoas, muitas vezes, nunca foram num baile funk, mas veem a representação social da favela na televisão, que torna mais fácil negar a desigualdade social e o lugar do funk como uma expressão da realidade.
Devido as inúmeras proibições aos bailes funk por parte do governo municipal, exigindo a vistoria policial durante os eventos, as festas foram acolhidas pelos líderes do morro e passaram a acontecer nas ruas da comunidade. É quando surge o proibidão, vertente do funk que usa palavras de baixo calão, fala de sexo explícito e sobre drogas, algumas vezes exaltando facções criminosas. Cria-se, então, o hábito de criar duas versões da música, uma aceitável para o mercado e uma para cantar nos bailes. Enquanto leis tentavam silenciar o movimento, os grandes veículos de comunicação popularizavam o ritmo fora da favela. O funk conquistou espaços na classe média e alta, e entra no século XXI com um público mais diverso.
Categorias e vertentes
No novo milênio, as letras do funk ganham uma tendência erótica e sexual, se aproximando da batida do samba e deixando o Miami Bass de lado para inserir o tamborzão. Nesse período, um dos sucessos foi o Bonde do Tigrão que, com músicas como “Cerol Na Mão”, alcançou disco platina em 2001.
Na mesma época, a MC Tati Quebra-Barraco entrava na cena como precursora feminina, lançando músicas como “Boladona” e “Sou feia, mas tô na moda”, alcançando sucesso até no exterior.
Outro artista que subia nas paradas era o ícone do proibidão, Mister Catra. Famoso por seus 32 filhos, o artista obteve reconhecimento nacional por seus hits como “Adultério” e foi indiciado por apologia ao crime em 2002.
Começam a surgir novas tendências em São Paulo, uma vertente do funk chamada de ostentação por falar de um estilo de vida com muitos bens de consumo de alto custo e estar sempre rodeado por mulheres. Alguns dos MCs mais conhecidos nessa categoria são MC Guime com “Plaque de 100” e MC Rodolfinho com “Os mlk é Liso”.
Outra vertente foi o funk pop, canções mais populares que buscam conquistar espaço internacional, com letras suaves e batidas semelhantes ao pop. Muitos MCs escolhem deixam a nomenclatura para trás e migram para este subgênero, como Anitta, Ludmilla (antiga MC Beyoncé) e Pocah (antiga MC Pocahontas).
Importante ressaltar o brega funk, uma vertente do Recife que se enlaça aos cancioneiros românticos do Nordeste e, por fim, o 150bpm, categoria que mais fez sucesso recentemente, no qual a sigla significa “batidas por minuto”. É chamado assim por ser mais rápido que o comum, que é geralmente de 130bpm. Enquanto o brega funk tem sido exaltado por artistas como MC Loma e As Gêmeas Lacração cantando “Envolvimento” e “Xonadão”, o 150bpm vem ganhando espaço com músicas como “Eu vou pro Baile da Gaiola” do MC Kevin, O Chris e “Tô Voando Alto” do MC Poze do Rodo, além de DJs como FP Do Trem Bala e DJ Gabriel do Borel.
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Polêmicas
Ao longo dos anos, o funk sofreu com a perseguição política e com elementos controversos de sua cultura. Em linhas gerais, podemos citar uma das principais polêmicas como sendo a dança, por possuir uma certa sensualidade. O gênero musical leva os dançarinos a movimentarem o quadril e bumbum de forma sensual e, muitas vezes, são considerados vulgares. Alguns dos mais lembrados são o “passinho do romano”, “passinho” e “sarrada no ar”, sendo que o segundo foi declarado patrimônio cultural imaterial do Rio de Janeiro em 2018.
Outra preocupação comum é com a vestimenta dos frequentadores do baile funk, principalmente na “falta” de roupa das mulheres. O uso de shorts e saias curta com decotes e roupas coladas chama a atenção, e algumas pessoas ficam desconfortáveis com a exposição gerada. Apesar de algumas letras incitarem a sexualização e objetificação das mulheres, há funkeiras que gostam das vestimentas de costume e concordam com o hit da Pocah que diz “Deixa eu te lembrar que eu não sou obrigada a nada, ninguém manda nessa raba”.
Não é de se surpreender também com a polêmica sobre as letras do funk, uma vez que elas falam abertamente sobre sexo, ostentação e, algumas vezes, apologia ao crime. As músicas abordam os assuntos de formas surpreendentes, como o hit “Que Tiro Foi Esse?” de Jojo Maronttinni, ou a música “Tropa do R7” na qual o DJ R7 apresenta 7 minutos de uma montagem de sons de tiro em que 11 MCs interpretam estrofes de funk proibidão. Porém, foi o sucesso “Baile de Favela” de 2015, do DJ R7 e MC João, que foi criticado por internautas e recebeu até resposta musicais pela forma como se referiu as mulheres, como a da cantora Mariana Nolasco.
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Na mesma época que surgiu a música de Jojo Maronttinni, entrava nas paradas a “Só Surubinha de Leve”, música que levaria a internet a loucura no início de 2018, em que MC Diguinho falava claramente sobre embebedar uma mulher fácil de dominar, estupra-la e abandoná-la na rua. A violência nos versos provocou milhares de internautas que não se deram por satisfeitos quando as plataformas de streaming baniram a música e o artista publicou uma “versão light” com reformas nas letras. Antes da segunda opção da música ser lançado, o artista negou arrependimento sobre seus versos em suas redes sociais.
Ainda sobre as letras, MC Pedrinho ficou muito conhecido em 2014 por suas músicas de conotação sexual. Com apenas 12 anos o cantor já havia lançado grande sucessos como “Dom Dom Dom”, “Matemática” e “Hit Do Verão”, o que acabou chamando atenção da Vara da Infância e da Juventude, que cancelou um de seus shows no Ceará sob alegação do teor erótico das canções. O artista não deixou de lado suas criações de funk proibidão, mas produziu algumas versões lights para suas músicas. Outra criança que, aos olhos da lei, entrou muito cedo no mercado da música funk foi a Medoly. A erotização das crianças é um assunto delicado, principalmente quando elas tem oito anos e cantam funk. O Ministério Público chegou a abrir um inquérito contra o pai da antiga MC Medoly em 2015 por considerarem que suas roupas eram muito adultas, o que o levou a reformular a carreira da filha. Tanto MC Pedrinho (hoje com 17 anos) como Melody (12) seguiram suas carreiras musicais e, neste ano, lançaram um clipe juntos.
Vale destacar o assassinato do cantor paulista MC Daleste conhecido por seus funk ostentação. O cantor dos sucessos “São Paulo” e “Gosto mais do que lasanha” foi baleado na barriga na noite de 6 de julho de 2013, em Campinas, ao fim de um show gratuito com cerca de 3 mil pessoas. O cantor estava conversando com o público quando foi atingido, e chegou a ser levado ao centro cirúrgico, mas não resistiu. A policia não pegou o assassino, mas afirmou que foram três disparos e que, com certeza, o atirador queria atingir especificamente o artista.
Já para finalizar com questões mais atuais, é importante falar da prisão do DJ Rennan da Penha, um dos maiores personagens do funk atual. O idealizador do Baile da Gaiola foi levado sob a acusação de atuar como olheiro, avisando o pessoal quando a polícia ia subir o morro, e de que as músicas dele faziam apologia ao uso de drogas, incitando que o Baile da Gaiola seria uma forma de atrair as pessoas ao tráfico. O site do Kondzilla publicou uma matéria explicando o caso do funkeiro e falando de operações da polícia que aconteceram no início de 2019 para acabar com o baile funk.
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Aos olhos da lei
Entre as formas de preconceitos e problemas que a Justiça encontrou com a cultura do funk, podemos destacar alguns projetos de leis que entraram em vigor. Em 2000 foi publicado o projeto da lei Álvaro Lins que proibia a realização dos bailes sem a autorização e supervisão de autoridades policiais no Rio de Janeiro, o que acabou por se estender à festas “raves” em 2007. Também vale ressaltar sobre a lei 5.544/09 sancionada em setembro de 2009 no Rio de Janeiro, que define o funk como movimento cultural e musical de caráter popular. Essa conquista em prol dos direitos dos funkeiros foi da Associação dos Profissionais e Amigos do Funk (APAFunk) e foi registrada no livro “Funk-se quem quiser: no batidão negro da cidade carioca”. Em 2017, a sugestão de um projeto de lei que criminalizava o funk atingiu 20 mil assinaturas, chegando ao número mínimo para ser encaminhada para debate dos senadores. O projeto do empresário Marcelo Alonso classificou o gênero musical como crime de saúde pública à criança, ao adolescente e à família. A Comissão dos Direitos Humanos não transformou a sugestão em projeto de lei, pois iria diretamente contra a liberdade de expressão esculpido no artigo 5º da Constituição, inciso IX.
Reportagem produzida por Bibiana Rigão Iop e Wander Schlottfeldt na disciplina de Jornalismo Investigativo, com orientação da professora Carla Torres.
O silêncio da noite nas ruas vazias e escuras do Bairro Duque de Caxias é interrompido pelo apito do Seu Borges. O barulho avisa aos moradores que o vigilante noturno está na área. Aos 57 anos, há mais de 15 Flávio Borges é um desses profissionais que fazem a segurança na região.
“É um trabalho solitário, em que as horas custam a passar”, relata Borges, que também destaca as vantagens do seu trabalho. “Apesar disso tudo, eu gosto muito do que faço. Todo mundo me conhece na redondeza, e no Natal eu chego a ganhar mais de uma ceia por noite”, afirma o zeloso vigilante, que também é lembrado com carinho pelas crianças do Bairro, pois sempre distribui as balas que tem nos bolsos.
A solidão enfrentada por Seu Borges não é um caso isolado. As dificuldades que envolvem a profissão, medos, vantagens e desvantagens de trabalhar durante a madrugada são uma realidade enfrentada todas as noites por esses profissionais, que custam a ver as horas passarem. “Hoje em dia nem olho mais para o relógio, senão parece que demora ainda mais para clarear o dia”, relata Eduardo da Rosa, porteiro noturno de um edifício comercial no centro de Santa Maria. Acompanhado do inseparável chimarrão, ele conta que apesar de já ter trabalhado “por baixo dos panos” como vigilante em uma empresa de Silveira Martins, percebe que deu um importante passo ao ser contratado como porteiro do local onde trabalha. “Além de ser bem mais seguro aqui, pois trabalho dentro do prédio com 32 câmeras na minha frente, faço parte de uma empresa terceirizada contratada pela administradora do condomínio, ou seja, não tenho do que reclamar. Recebo tudo certinho, em dia, com todos os meus direitos”.
Direitos do trabalhador noturno
Além de receber o adicional noturno de no mínimo 20% sobre a hora diurna, diferente da hora de trabalho convencional, a hora contabilizada para quem trabalha a noite não tem 60 minutos, e sim, 52 minutos e 30 segundos. Isso significa que a cada 52 minutos e 30 segundos, o trabalhador deve receber por uma hora de trabalho. Se o profissional fizer toda a sua jornada de trabalho em horário noturno, ele vai trabalhar sete horas, mas receberá como se tivesse trabalhado pelas oito horas. Apesar de a hora de trabalho ser reduzida, o trabalhador tem direito ao mesmo período de descanso. Aqueles com jornada superior a 6 horas, precisam obrigatoriamente de um descanso de, no mínimo, 60 minutos. Neste caso, as empresas podem dar aos funcionários até 120 minutos de intervalo, se assim desejarem. Já para trabalhadores com jornada de 4 a 6 horas, o período de descanso é de apenas 15 minutos. E para os funcionários com jornada de até 4 horas, não se aplica o direito ao intervalo.
O que diz o Sindicato?
De acordo com Airton Lucas, presidente do Sindicato dos Vigilantes de Santa Maria, atualmente existem cerca de 250 vigilantes noturnos trabalhando na Cidade, o que representa uma redução de cerca 50 vigilantes, se comparado ao ano de 2017. Fatores como o corte de gastos por parte de órgãos públicos foram determinantes para essa redução, conforme salienta Lucas: “Do ano passado para este foi terrível, teve uma redução bastante significativa de vigilantes noturnos em Santa Maria. Ano passado tínhamos cerca de 300 profissionais atuando na cidade e hoje possuímos em torno de 250”. Ele lamenta que “cortes de gastos da Advocacia Geral da União juntamente com o Governo do Estado acabaram ocasionando essas reduções. Diante disso, vários postos de monitoramento eletrônico tiveram encerrados”.
Os dados relatados pelo presidente do Sindicato dos Vigilantes da cidade são a atual realidade de Martin Cavalheiro, 56, ex-vigia do Banrisul. Cavalheiro, que trabalhou como vigia noturno do Banco do Estado durante 19 anos, em duas agências de Santa Maria, acredita que sua demissão foi ocasionada por dois fatores: “As empresas não querem mais um veterano guarnecendo um banco na madrugada. Eles pensam que a gente não tem mais fôlego para o tamanho da responsabilidade”, supõe o ex-vigia. “Antes de sair, a empresa em que eu era funcionário instalou sete câmeras no lugar onde eu fazia a ronda. Fui trocado por câmeras.”, brinca Martin.
Vigilante vs. Vigiade
É comum um vigilante ser chamado de vigia, e vice-versa. No entanto, há uma grande diferença entre esses profissionais, segundo o Sindicato. Airton Lucas explica que “a função do vigilante é principalmente a resguardar a vida e o patrimônio das pessoas, exigindo porte de arma e requisitos de treinamento específicos”. É importante ressaltar que o serviço de vigilância deve ser executado por uma empresa especializada no setor.
Em contrapartida, o vigia é todo trabalhador que exerce a atividade de guarda. “É uma atividade que não exige especialização e nem preparação especial”, ressalta Lucas. Também faze parte das atribuições de um vigia exercer tarefas de fiscalização e observação de um local, ou controle de acesso de pessoas, como o trabalho realizado por Eduardo. Por não poderem manusear arma de fogo, esses profissionais são responsáveis basicamente pela manutenção da ordem e segurança dos locais, priorizando a proteção do patrimônio, por meio da ronda local ou de uma estação de trabalho fixa, como as guaritas, utilizadas em alguns estabelecimentos que contam com um vigia.
Muitas vezes, sem ter a profissão regulamentada, esses profissionais acabam não tendo a fiscalização necessária e cursos específicos que orientem na sua formação. Joel dos Santos*, vigia de um mini-mercado da região Leste de Santa Maria, conta que – mesmo sem regulamentação – sua especialidade é “pôr medo em quem estiver mal-intencionado”. Joel revela que, mesmo não sendo autorizado a portar uma arma de fogo, trabalha toda noite com uma “carregada”. “Sem ela, eu não seria ninguém. Essa daqui já me salvou a vida várias vezes”, exalta o vigia, que atua irregularmente como vigilante.
*Nome fictício atribuído à fonte, para preservar sua identidade.
Reportagem produzida pelos alunos Gabriel Pfeifer e Marcos Kontze para a disciplina de Jornalismo Investigativo, durante o 1º semestre de 2018, sob orientação da profª Carla Torres.
O país mais transfóbico do mundo. Esse foi o título que o Brasil recebeu no ano passado, após 144 travestis e transexuais serem assassinados. Os dados assustadores de 2016 levaram o País ao primeiro lugar, num ranking elaborado pela rede europeia Transgender Europe (TGEU). Porém, esses números alarmantes não param de subir. Segundo a Rede Trans Brasil – que realiza coleta de dados através de notícias e relatos que chegam a organização -, até outubro de 2017, 171 travestis e transexuais já foram assassinados no país, batendo o recorde do ano que passou.
O Brasil, novamente, se colocará num infeliz destaque. De acordo com uma projeção realizada pela equipe de reportagem, apoiada nos dados já registrados até outubro de 2017 pela Rede Trans Brasil, podemos encerrar o ano com cerca de 200 vítimas da transfobia. Os números só comprovam a onda conservadora que assola o país e a falta de políticas públicas destinadas para essa parcela da população. Em fevereiro deste ano, o caso da travesti Dandara chocou o país. Morta brutalmente por um grupo de jovens no Ceará, o vídeo de Dandara sendo assassinada a chutes e pauladas ganhou repercussão na internet.
Vulneráveis, o risco de travestis e transexuais serem assassinados é 14 vezes maior do que um homem gay. Seja por um ato físico ou verbal, a transfobia marca vidas. Essas ações transfóbicas não estão presentes só na rua, mas também em instituições públicas, sejam universidades, delegacias policiais e hospitais. Locais que deveriam acolher essas pessoas, acabam por não terem profissionais capacitados para essa população. A violência institucional está presente no cotidianos desse grupo.
VIOLÊNCIA NOS SERVIÇOS DE SAÚDE
Uma vida de negação de direitos. Assim é a trajetória de travestis e transexuais no Brasil. Além do grande números de assassinatos, agressões físicas e verbais, relatos de violências também se fazem presentes no dia-a-dia dessa população. Nos hospitais, a omissão de socorro e o desrespeito ao nome social são as declarações mais frequentes entre travestis e transexuais.
Os relatos espalham-se pelo Brasil. Em março deste ano, a assessora parlamentar Barbara Reis foi até um hospital público na cidade de Rio de Janeiro, para uma ressonância magnética dos seios, que receberam próteses de silicone. Ao ser chamada para a consulta pela médica residente, Barbara ouviu seu nome de batismo, mesmo apresentando a carteira de nome social.
“O fato de tu não respeitar o nome social, o nome que aquela pessoa escolheu, pra mim, já é transfobia. E temos um problema bem sério com os hospitais. Eles respeitam o que está nas certidão de nascimento e não como a pessoa se identifica. Esse é o grande problema que a gente tem” (Bruna de Nicol Brum, enfermeira residente em saúde mental)
Para Guilherme Dias, o que seria uma consulta de rotina na ginecologista, para um exame papanicolau, acabou em trauma. Ao explicar que era um homem trans e que iniciaria um tratamento hormonal, o carioca foi violentado pela médica após despir-se. “Ela disse que se eu era homem, deveria fazer outro exame”, conta Dias, fazendo referência ao exame de próstata.
Já em Canela, no Rio Grande do Sul, no mês de novembro, um hospital foi condenado a pagar R$ 30 mil por negar atendimento a uma travesti. Após passar mal, a travesti e seu companheiro foram até o Hospital de Caridade de Canela. Ao solicitarem atendimento, uma enfermeira se escandalizou com as roupas ditas femininas que a travesti usava e omitiu socorro, ameaçando chamar o segurança. O caso aconteceu em 2011. Após o incidente, a travesti levou o caso à justiça e o hospital reconheceu o episódio como um “ato falho” da funcionária.
No ano passado, imprensa e redes sociais divulgaram 54 casos de violação dos direitos humanos. O estado de São Paulo aparece em primeiro lugar, com 21 notificações de descumprimento dos direitos humanos. Conforme dados obtidos pelo site UOL via Lei de Acesso a Informação, o paciente não tem à disposição nenhuma ferramenta de verificação para saber se o médico que presta serviço já sofreu punição. Mesmo que o Conselho Federal de Medicina (CFM) não proteja os profissionais, após denúncias, pode levar anos para o caso ser julgado. Contudo, quando há punição, são eles os únicos com pena perpétua, como, por exemplo, cassação do registro profissional.
O direito à saúde não permite que hospitais recusem atendimento a uma pessoa, sob nenhuma justificativa. Porém, a falta de capacitação profissional pode ser considerada é um dos principais fatores para que atos transfóbicos ocorram no sistema público de saúde. “Desde a escolarização básica, a gente não tem uma educação voltada a aceitar as pessoas na sua diversidade. Está tudo errado por aí. Na graduação isso só continua, pelo fato de não termos em todos os cursos – ou, pelo menos, nos cursos de humanas e saúde – uma disciplina de gênero e sexualidade”, frisa Bruna de Nicol Brum, Enfermeira Residente em Saúde Mental pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
Segundo Bruna, o Plano de Ação Prioritário na Igualdade de Gênero 2008-2013, da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), prevê que haja uma educação permanente de profissionais da saúde em relação gênero e sexualidade. “Os estudos de gênero são muito recentes. O que se veem são ações pontuais, mas nada de uma política ou de grandes programas que possam abordar essas questões”, destaca a estudante.
A também Enfermeira Residente em Saúde Mental (UFSM), Patrícia Mattos Almeida, reforça a falta de capacitação de profissionais em Santa Maria. Patrícia fala da falta de serviços para atender essa população. “Ano passado (2016), nós tivemos uma capacitação, mas não foi para trabalhar com a transexualidade, e, sim, para falar sobre a LGBTfobia, onde discutimos as formas de acesso. Muitas vezes transexuais sofrem violência nos serviços onde são recebidos. É uma discussão que tem que ser aberta e levado a tona”.
Quando se trata de gênero e sexualidade, ainda há uma série de tabus para a sociedade. Nos últimos meses, a mídia abriu espaço para a problematização da transexualidade. A telenovela A Força do Querer, da Rede Globo, trouxe o processo de descoberta, aceitação e transformação corporal de Ivan – um garoto trans. Patrícia cita a importância de a transexualidade ser dialogada em todos os espaços, e a necessidade de políticas públicas voltadas a essa minoria. “O assunto só vai vir quando tiver uma coordenação da política das minorias no município. Essa coordenação se responsabilizará por organizar as capacitações, educação permanente em saúde que traga o viés do gênero, e que não seja só cis-gênero, para trabalhar só com mulheres, mas para trabalhar com toda a população”.
TRANSEXUAIS E O ACESSO À SAÚDE
O acesso de travestis e transexuais a hospitais, muitas vezes gera preconceito e discriminação, devido à falta de capacitação de profissionais. Uma atenção voltada a essa população no Brasil ainda é recente e precária. Até 1997, a cirurgia de redesignação sexual (adequação dos genitais ao gênero com o qual a pessoa se identifica) era proibida no País. O processo de transformação corporal, que engloba as cirurgias de redesignação sexual, a plástica mamária reconstrutiva (incluindo próteses de silicone) e mastectomia (retirada de mama), só começou a ser ofertado pelo SUS em 2008.
Atualmente, o Brasil possui apenas nove centros ambulatoriais pelo SUS, que realizam o processo transexualizador. Ele inclui a hormonioterapia e as cirurgias, entre elas a de redesignação sexual, que não é realizada em todos os ambulatórios, pois muitos apenas realizam a parte da hormonioterapia. No Rio Grande do Sul, apenas o Hospital de Clínicas de Porto Alegre realiza esses processos.
O processo de redesignação sexual ainda é muito burocrático. Um protocolo transexualizador é feito para homens e mulheres trans, para que a cirurgia seja realizada, conta Bruna. “Eles precisam passar por dois anos de terapia psiquiátrica, além de endocrinologista, psicólogo, e assistente social, para receberem um laudo, que vai atestar que estão aptos a fazer essa cirurgia”, acrescenta a enfermeira.
Desde que as medidas foram estabelecidas em 2008, a expansão da rede acontece de forma muito lenta para a demanda existente. Em 2013, foi criado a Política Nacional de Saúde LGBT, que reconhece as demandas dessa população em condição de vulnerabilidade. A inclusão de políticas voltadas para a população trans no SUS foi celebrada pelos movimentos organizados, que sempre defenderam o atendimento a essa parcela da sociedade como uma questão de direitos humanos. Porém, os relatos de transfobia no sistema de saúde confirmam que entre o que está escrito e o que se tornou realidade, há um grande abismo.
” Já ouvi inúmeros casos, como na capacitação que nós tivemos com a Verônica. Ela relatou que as meninas sofreram algum tipo de violência durante o trabalho, à noite, e buscaram serviços de emergência e tiveram um tratamento preconceituoso” (Patrícia Mattos Almeida)
Outra demanda recorrente do movimento trans, e que causa muitos constrangimentos, é o tratamento do nome social nesses ambientes. Apesar de ser um direito garantido na Carta de Direitos dos Usuários do SUS desde 2009, muitas pessoas trans ainda têm dificuldade de ser identificadas corretamente. “Desde 2013, já é possível registrar o nome social no sistema eletrônico. Ainda assim, os profissionais da saúde não estão capacitados para atender a população. As pessoas têm esse estigma: ‘como chama’, ‘é homem?’, ‘é mulher?’, ‘como eu trato?’”, conta Bruna sobre o sistema de saúde da cidade.
DESPATOLOGIZAÇÃO TRANS
Em 1997, o Conselho Federal de Medicina autorizou as chamadas cirurgias de transgenitalização. A partir de 2008, o Sistema Único de Saúde passou a oferecer serviços para o processo de transição, as chamadas tecnologias biomédicas.
Contudo, para o acesso a tratamento hormonal e cirurgias corporais, o Conselho Federal de Medicina considera pessoas transexuais como portadoras de transtornos psicológicos permanentes de identidade sexual. Além disso, conforme portaria em vigência do Ministério da Saúde, profissionais da psicologia devem fornecer laudos à equipe de atenção especializada no processo transexualizador e terapia compulsória por dois anos.
O Conselho Federal de Psicologia (CFP) já divulgou nota, na qual afirma que “a transexualidade e a travestilidade não constituem condições psicopatológicas“. Em 2015, o Órgão lançou a Campanha para Despatologização das Transexualidades e Travestilidades. No vídeo, profissionais psicólogos abordam que a transexualidade e a travestilidade não constituem nenhum tipo de transtorno do ponto de vista psíquico.
A relação entre transexuliadade e saúde mental reforça uma ideia errônea, em que condiciona pessoas trans a doentes em âmbito mundial. A Classificação Internacional das Doenças (CID), estabelecida pela Organização Mundial da Saúde, apresenta a transexualidade como transtorno de identidade de gênero; já o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) aponta a transexualidade como disforia de gênero. Essas terminologias apoiam a concepção de transexualidade como patologia.
Um fato que pode denunciar essa relação ainda feita entre transexualidade e patologia no sistema público ocorreu durante a produção desta reportagem. Ao procurar a Secretaria de Saúde, a produção foi encaminhada à Coordenação de Saúde Mental do Município. Entretanto, Bruna e Patrícia, enfermeiras residentes em saúde mental, reafirmaram o posicionamento do CFP. “Não é legal vincular saúde mental a política das minorias, por que corrobora que isso seja uma patologia, o que na verdade não é. Mas uma questão de gênero, uma orientação sexual, pessoal e individual de cada um. Não é o que os estudiosos e as pessoas que trabalham na área da saúde preconizam”, declara Patrícia.
“É bem complicado. Eu tenho, hoje, dois internados.Uma menina que internei em São Francisco de Assis, saiu daqui e perguntou ‘Posso levar minhas maquiagens? Minhas roupas? Minhas coisas?’. Aí eu comuniquei o hospital, como que eu estava internando ela em uma unidade masculina se iria levar vestidos. Então lá a gente teve sérios problemas. Tivemos que pedir alta administrativa, porque foi muito complicado” (Elieze Santos Machado, enfermeira)
Patrícia chama a atenção ainda para a associação entre transexualidade a Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs). Essa preocupação deve-se, por exemplo, ao fato de que a 16º Parada Livre da Região Centro foi realizada por meio da verba destinada a Políticas ligadas ao HIV. “Nós não podemos concordar com essas coisas, com essas patologias, ou então que essa população está vinculada ao HIV”, frisa a enfermeira.
A Parada Livre da Região Centro foi produzida com verbas ligadas ao HIV por não ter nenhum incentivo por parte de outras instituições e programas. “O que a gente tem são ações pontuais em algumas políticas, por exemplo a política do HIV, que recebe uma verba do Ministério da Saúde para realizar estratégias de redução de danos. A verba anual do Ministério da Saúde é utilizada para fazer essas estratégias e também para a promoção da parada livre do município. O que a gente ainda precisa mesmo é que seja criada uma política LGBT ou alguém que cuidasse das políticas de equidades no município. Que pudesse ter estratégias, programas definidos”, destaca Bruna.
A sociedade passa por um importante momento de visibilidade e representatividade LGBT, mas ainda há um longo caminho a percorrer. E esse caminho deve ser percorrido com muito diálogo, para assim desconstruir ideias preconceituosas, lutar contra a violência, garantir direitos, igualdade e, acima de tudo, respeito.
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[dropshadowbox align=”none” effect=”lifted-both” width=”auto” height=”” background_color=”#ffffff” border_width=”1″ border_color=”#dddddd” ]Vídeo: Projeto Transformar (desenvolvido por estudantes de Publicidade e Propaganda do Centro Universitário Franciscano)[/dropshadowbox]
Por Deivid Pazatto, Emily Costa, Paola Saldanha, para a disciplina de Jornalismo Investigativo, no segundo semestre de 2017, sob a orientação da professora Carla Torres.
O que são Infecções Sexualmente Transmissíveis?
Antigamente conhecida pela expressão Doenças Sexualmente Transmissíveis (DSTs), as Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs) receberam essa nova nomenclatura pela possibilidade de uma pessoa ter e transmitir uma infecção, mesmo sem apresentar sintomas. Elas podem ser causadas por vírus, bactérias ou outros microrganismos. A transmissão ocorre por meio do contato sexual sem o uso adequado de preservativos com uma pessoa que esteja infectada, ou da mãe para a criança durante a gestação ou amamentação.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima a ocorrência de mais de um milhão de casos de IST por dia, mundialmente. Ao ano, calcula-se aproximadamente 357 milhões de novas infecções, entre clamídia, gonorreia, sífilis e tricomoníase.
Mas por que é necessário aprender e entender sobre o assunto? A resposta é simples: muito pouco se fala sobre ISTs no Brasil, devido ao tabu criado pela cultura da não naturalidade do sexo. Porém, é necessário trazer à tona este assunto, pois as pessoas necessitam saber como estas infecções são transmitidas, como é feita a prevenção, modos de identificá-las e sobre o tratamento. Confira:
Sintomas
As IST’s se manifestam por meio de feridas, corrimentos ou verrugas. Elas aparecem principalmente no órgão genital, mas também podem surgir em outra parte do corpo como língua, palmas da mão e olhos. Em estágio inicial, podem ser identificadas durante a higiene pessoal.
Os corrimentos podem manifestar-se na Gonorreia, Clamídia e Tricomoníase. Aparecem no pênis, vagina ou ânus, podendo ser esbranquiçados, esverdeados ou amarelados, dependendo da infecção. Podem ter cheiro forte e provocar dor ao urinar ou durante a relação sexual. Em mulheres, se o corrimento não for significativo, só é detectado em exames ginecológicos. Vale ressaltar que a vaginose bacteriana e a candidíase vulvovaginal também causam corrimento, mas não são consideradas IST’s.
As feridas podem ou não causar dor, são manifestações da sífilis, herpes genital, cancróide, donovanose e linfogranuloma venéreo. Podem aparecer nos órgãos genitais ou em qualquer outra parte do corpo.
Já as verrugas anogenitais são causadas pelo Papilomavírus Humano (HPV), muitas vezes não doem, porém podem causar coceira e irritação.
Além desses três fatores, existem as ISTs pelo HIV e pelas hepatites virais B e C, com sintomas específicos. Conheça um pouco melhor cada uma dessas infecções.
HIV
O Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV) pode ser encontrado em fluidos sexuais, como o líquido pré-ejaculatório, o líquido lubrificante vaginal e o sêmen. O leite materno e o próprio sangue também podem conter o Vírus.
Muitas pessoas ainda não compreendem que ter HIV não significa ter a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS), uma vez que a segunda é uma consequência da primeira, ou seja, a AIDS pode ser adquirida com a presença do HIV no corpo.
Os principais sintomas da AIDS são muito semelhantes aos da gripe: cansaço, mal estar, entre outros. Resumidamente, a AIDS deteriora o sistema imunológico do hospedeiro, tornando-o fraco e sensível a outras doenças.
Em 2014, segundo o Ministério da Saúde, Santa Maria destacou-se de forma negativa, figurando entre as 10 cidades com maiores índices da doença no País, o que levou à realização de diversas campanhas de prevenção e alerta para a população. Isso diminuiu o índice nos anos seguintes, porém o Município ainda ocupa uma posição perigosa: 71º lugar no mesmo estudo.
Mais informações sobre HIV e AIDS estão na reportagem de Victórya Azambuja, Lucas Cirolini e Camila Fogliarini.
SÍFILIS
A Sífilis é causada pela bactéria Treponema pallidum, que entra na pele através de pequenos cortes ou por meio das membranas das mucosas. Além do ato sexual, a doença pode ser transmitida de mãe para filho durante o período da gestação. Esta é a sífilis congênita.
A infecção se desenvolve nos estágios primário, secundário, terciário e latente, mas os sintomas podem não seguir uma ordem determinada. No estágio primário, aparecem pequenas feridas indolores (cancros) no local da infecção, mas elas podem desaparecer no período de 4 a 6 semanas, mesmo sem tratamento, tornando a bactéria inativa no organismo.
O segundo estágio manifesta-se de duas a oito semanas após as primeiras feridas surgirem, e os sintomas são dores musculares, febre, dor de garganta e dificuldade para deglutir. Esses sintomas também podem sumir e a bactéria tornar-se inativa. O período latente é justamente o tempo de inatividade da bactéria. O infectado pode ficar anos sem os sintomas, até mesmo a vida toda, mas também existe o risco de a doença avançar para o próximo estágio.
A sífilis terciária é a mais grave; ela pode danificar vários órgãos, incluindo o cérebro, nervos, olhos, coração, vasos sanguíneos, fígado, ossos e articulações. Essa infecção só chega nesse estágio se não tratada, e pode inclusive levar à morte.
O VDRL é uma das formas para diagnosticar a sífilis, trata-se de um exame de sangue que identifica anticorpos que o organismo produz para combater a bactéria. Outras possibilidades são realizar uma cultura de bactérias ou uma punção lombar.
Segundo a OMS, a sífilis afeta um milhão de gestantes por ano em todo o mundo, levando a mais de 300 mil mortes fetais e neonatais e colocando em risco de morte prematura mais de 200 mil crianças. No Brasil, de acordo com o Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde, foram registrados, em 2016, 87 mil casos de sífilis adquirida, 37 mil casos de sífilis em gestantes e 20 mil casos de sífilis congênita. A partir dessas ocorrências, foram contabilizados 185 óbitos.
De 2015 para 2016, os diagnósticos de sífilis adquirida tiveram um aumento de 27,9%. Segundo o Ministro da Saúde, Ricardo Barros, as causas para um aumento tão drástico são o desabastecimento de penicilina (medicamento mais eficaz contra a doença) e o aumento da distribuição de testes rápidos na rede de saúde.
O Rio Grande do Sul foi o estado com mais aumento da infecção, sendo cerca de 93 casos a cada 100 mil habitantes. No gráfico a cima, podemos observar que Porto Alegre detém índices bem maiores de sífilis congênita se comparados às outras capitais. Em Santa Maria, o número de casos de sífilis em gestantes em 2016 atingiu a marca de 64 pessoas por mil habitantes, segundo a Secretaria de Vigilância e Saúde. O dado representa uma queda em relação ao número de contaminações no ano anterior, o qual atingiu 106 casos por mil habitantes. Em relação à sífilis congênita, a Cidade apresentou um número de 34 pessoas por mil nascidos vivos em 2016, comparado a 62 de 2015.
Como mencionado anteriormente, a sífilis pode não se manifestar durante décadas, mas tratando-se de uma doença que pode ser revertida durante as fases iniciais, não deixe de realizar um exame caso tenha feito sexo sem proteção.
Neste link, você assiste ao documentário “Sífilis, a doença de mil faces”, realizado pela TV Brasil: [youtube_sc url=”https://www.youtube.com/watch?v=toNzdGzD_mY”]
HPV
Como já vimos, os sintomas do Papilomavírus Humano (HPV) são verrugas anogenitais. Quando em estágio avançado, seu formato assemelha-se ao de uma couve-flor. Existem diversos tipos de HPV que causam verrugas em diferentes partes do corpo, sendo que já foram identificadas e sequenciadas geneticamente cerca de 150 variações. O vírus é transmitido no contato pele a pele.
[youtube_sc url=”https://www.youtube.com/watch?v=wn6fphBVHMc”]
Os especialistas que podem diagnosticar o HPV (e outras ISTs) são infectologistas, ginecologistas, urologistas, clínicos gerais e dermatologistas. Dois tipos de teste podem detectar o HPV: o genético PCR e o teste de captura híbrida. Eles trazem informações do tipo, da carga viral e também mostram se o vírus pode ou não evoluir para um câncer.
O tratamento do HPV varia de acordo com sua manifestação (se é uma lesão ou verruga, por exemplo), grau e localização. Pode-se utilizar desde cremes para lesões pequenas, ácido tricloroacético para lesões externas, cauterização a laser para queimar as lesões ou gelo seco (crioterapia). Outra forma que pode ser utilizada é a radiofrequência.
Devido à sua relação com câncer, o HPV é uma IST que amedronta, mas cerca de 90% dos pacientes conseguem a cura completa. A vacina contra o HPV pode ser tomada em postos de saúde e clínicas particulares. O SUS oferta uma vacina quadrivalente, que protege contra os 4 tipos mais comuns no Brasil. É comum haver campanhas de vacinação nas escolas, isso porque é preferível vacinar meninos e meninas até os 15 anos que ainda não iniciaram a vida sexual, de modo a aumentar a eficácia da substância.
HEPATITES
As hepatites são doenças virais que atacam principalmente o fígado, causando inflamação na região. Os tipos mais comuns são do tipo A, B e C, mas ainda existem vírus do tipo D, E e G. A sua maior diferença é a forma de contaminação. Por exemplo, a Hepatite A provém da contaminação por meio da água ou por alimentos contaminados. Nesta reportagem abordamos principalmente as Hepatites B e C, estas que são transmitidas através de uma relação sexual sem proteção.
Tratam-se de doenças muito graves, que podem trazer danos irreversíveis, e inclusive obrigarem os pacientes ao transplante de fígado. Cerca de 50% de todos os transplantes do órgão são feitos em pessoas que adquiriram Hepatites virais. Além disso, mais de 50% de todos os casos de câncer de fígado também são ligados ao vírus.
Confira no vídeo abaixo mais detalhes sobre as Hepatites: [youtube_sc url=”https://www.youtube.com/watch?v=gCq6xYzRd4A”]
De acordo com o gráfico abaixo, pode-se observar que a maior incidência de óbitos relacionados à hepatite deve-se aos tipos B e C. A seguir vamos entender quais são as suas diferenças.
Hepatite B
A Hepatite B é uma das doenças que mais afetam a população mundial. Segundo a OMS, cerca de 350 milhões de pessoas ao redor do mundo estão contaminadas pelo vírus, sendo este número dez vezes maior que o número de contaminação de HIV/AIDS. No Brasil, estima-se que 15% da população já contraiu o vírus, e 1% é portador crônico.
As forma de transmissão da Hepatite B são parecidas com as da AIDS, podendo ser por meio de relações sexuais ou pelo contato com o sangue de alguém que está infectado. O vírus agride diretamente as células do fígado, causa inflamações e ataca o sistema nervoso, o que pode levar a uma fase crônica.
Os sintomas variam, e podem ser comparados com os do HIV. A pessoa infectada pode ter febre, fadiga em excesso, perda de apetite, mal-estar, náuseas e vômitos. Os sintomas começam a diminuir cerca de 10 a 15 dias após a manifestação.
Em Santa Maria, o índice de portadores de hepatite B vem diminuindo nos últimos anos. Em 2016, segundo dados da Secretaria de Vigilância em Saúde, foram registrados 10 casos a cada 100 mil habitantes.
Hepatite C
A Hepatite C é similar à Hepatite B. Ela também causa inflamação no fígado, porém quem adquire a doença não tem nenhum sintoma por muito tempo. Considerado o pior tipo de Hepatite, a doença é descoberta apenas quando da doação de sangue ou de exames de rotina. Ao aparecem os primeiros sintomas do vírus, o infectado já atingiu o estado avançado, décadas depois de ter adquirido o vírus.
De acordo com a ONU, cerca de 500 milhões de pessoas no mundo estão contaminadas pelas hepatites B e C, mas apenas 5% delas sabem que adquiriram a doença. No Brasil, os casos de Hepatite C atingem cerca de 1,5 milhão de pessoas; é ela a responsável por 70% dos casos de hepatites crônicas. Santa Maria tem média de 89 casos da doença a cada 100 mil habitantes,segundo dados do Ministério da Saúde. O número é bem expressivo, se comparado a outros municípios do país.
Entre as principais causas de contaminação, está o contato com o sangue contaminado, seja por transfusão ou acidente com materiais da área da saúde. Existe risco também de transmissão durante relações sexuais. O índice mais baixo de contaminação é o de mãe para filho no momento do parto, com apenas 5% dos casos.
Porto Alegre é a capital com maior taxa de incidência de Hepatite C do país. O número ultrapassa 90 detecções por 100 mil habitantes, conforme mostra a tabela a seguir:
Mas que fatores colaboram para o alto índice dessas doenças em Santa Maria?
Segundo a coordenadora da assistência da Casa 13 de Maio, Andréa Lenz, um conjunto de fatores contribuem para o grande número de ISTs: falta de educação sobre o assunto, facilidade das relações sexuais nos dias de hoje, desinformação, banalização da própria doença pelos portadores e a desatenção da mídia para com o assunto. “A mídia contribui muito pouco. Se fala em HIV e AIDS apenas nas datas de conscientização, acredito que se o assunto fosse abordado mais vezes, se tivessem reportagens mais completas, ações constantes (inclusive da área da saúde), mais periódicos durante o ano e alertas, educaria mais a população. Não acho que seja apenas a falta de uso de preservativos, acho que é um conjunto de fatores que culmina neste aumento”, aponta Andréa.
Sobre a banalização da própria doença, a coordenadora explica que podem ocorrer surpresas durante o tratamento das ISTs. Nos anos 80, por exemplo, quem adquirisse o vírus da AIDS só iria saber da doença após os primeiros sintomas se manifestarem, por isso havia muitas mortes em sua decorrência. “Hoje, com o diagnóstico mais rápido, o tratamento ficou melhor. Porém, quem sofre com a doença às vezes acaba banalizando-a no sentido de pensar que, se adquiriu a doença, apenas tomar alguns remédios vai resolver tudo de forma simples, mas não é bem assim. Hoje quem morre é quem não se cuida, não se trata, não busca acompanhamento”, destaca Andréa.
Não podemos concluir que as infecções ocorrem somente por falta de informação, já que pessoas de vários níveis sociais se contaminam. Adquirir uma IST não deixa de ser uma questão de escolha: quando se opta por não usar o preservativo, é necessário ter consciência de que se está correndo risco. As ISTs são “democráticas”: não escolhem cor, seuxalidade, escolaridade ou gênero. Basta não se prevenir para ocorrer a contaminação.
Como pode ser feito o diagnóstico destas doenças?
O diagnóstico para identificar as ISTs é feito de duas formas: o laboratorial e o teste rápido. O teste rápido é o que dá o diagnóstico real do HIV, porém o teste de Hepatite B e C e também da sífilis são chamados de triagem, pois, se derem positivo, não significam necessariamente contaminação. A pessoa diagnosticada pode estar com uma cicatriz imunológica, ou seja, ela já esteve com a doença e tem uma marca em função da qual o teste vai positivar. Exemplo disso são as hepatites, no qual o próprio organismo muitas vezes impede a infecção e o desenvolvimento do vírus.
O teste rápido é um teste simples, semelhante ao teste da glicose. É feita uma picada na polpa do dedo e é aplicado um outro material que vai reagir com o sangue. No caso do HIV, se o teste der positivo, obrigatoriamente outro teste é realizado para confirmação.
Quando a pessoa pode descobrir se está contaminada ou não?
Por exemplo, se depois de uma semana da suspeita de contágio, a pessoa busca um centro de saúde para realizar um teste, ele não mostra se ela adquiriu uma IST. A pessoa pode estar com o vírus, mas o teste ainda não consegue identificar se existem anticorpos em relação àquele vírus ou bactéria.
O teste somente vai ser seguro em torno de 60 dias após a última relação desprotegida, o que é chamado de janela imunológica. Caso haja relação de risco durante esse período, é necessário recomeçar a contagem. O indicado é evitar relações durante esse tempo ou usar preservativo em todas elas. Após o período de janela imunológica, o teste vai ser correto.
ONDE PROCURAR AJUDA?
Casa 13 de maio
A Casa 13 de Maio é uma unidade de saúde especializada no atendimento de infecções sexualmente transmissíveis. É possível realizar testagens, tratamentos e acompanhamentos gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS). A Casa também trabalha com a prevenção, assistência, acolhimento, orientação e distribuição de insumos como preservativos e informativos.
De acordo com a coordenadora Andréa Lenz, a Casa 13 de Maio é democrática, isso porque lá são atendidas pessoas de todas as classes sociais, raças, gêneros e profissões. “A pessoa é acolhida, é orientada, há uma escuta do relato dela, das dificuldades e outras característica para podermos ajudá-las apropriadamente”, comenta Andréa.
A equipe é formada por enfermeiros, infectologistas, dermatologista, ginecologista, psicóloga, farmacêutica, técnica de enfermagem e uma clínica geral para casos mais comuns de HIV, sífilis e gonorreia. Todo tratamento e acompanhamento acontece na Casa, e a pessoa só é encaminhada para outro lugar se tiver uma infecção oportunista, como a neurossífilis e a tuberculose, que necessitam do apoio de outros serviços especializados.
A Casa 13 atende pacientes a partir dos 17 anos, e realiza quatro tipos de testagem para HIV, Sífilis, Hepatite B e Hepatite C, e as infecções mais frequentes no local são de HIV e sífilis, com grande variação de faixa etária, englobando desde adolescentes até idosos.
ACESSO AOS ATENDIMENTOS
O serviço é oferecido para a população em geral, com foco nos profissionais do sexo e na comunidade LGBT. Os atendimentos são apenas para os moradores de Santa Maria (com exceção daqueles pacientes que já estão em tratamento no Hospital Universitário de Santa Maria). Os atendimentos no local são realizados mediante documento de Identidade e comprovante de residência.
ENDEREÇO:
Rua Riachuelo, nº 364 (esquina com a Pinheiro Machado), centro.
HORÁRIO DE ATENDIMENTO:
De segunda a sexta-feira, das 8h às 11h30min e das 13h às 16h30min.
TELEFONE:
(55) 3921-1263
Por Diego Garlet e Fernando Cezar, para a disciplina Jornalismo Investigativo, durante o segundo semestre de 2017, sob orientação da professora Carla Torres.
Você sabe os sintomas da Aids? Já parou para fazer o teste de HIV? Ou tem ideia do número de infectados em Santa Maria? De acordo com a Vigilância Epidemiológica do Município, só no primeiro semestre de 2017, foram 142 pessoas identificadas com a doença, entre homens e mulheres de 15 a 80 anos.
O mesmo levantamento, realizado em 2007, mostra 91 casos durante todo aquele ano, com pessoas da mesma faixa etária. Se seguir nessa crescente, 2017 irá fechar com quase 300 diagnosticados com a doença. Assim, no período de 10 anos, o número de infectados por ano identificados pela vigilância terá triplicado. Ainda, de acordo com a pesquisa, os índices mais altos aparecem entre homens de 30 a 39 anos e mulheres de 20 a 29 anos. A partir do vídeo produzido para esta reportagem, pode-se tanto refletir tanto sobre prevenção, quanto ter alguns esclarecimentos sobre o tratamento, na palavra de quem vive essa realidade.
A reportagem tentou contato a Secretaria da Saúde do Município para obtenção de dados em detalhe, mas, mesmo após vários contatos, não houve retorno.
Por Victória Azambuja, Lucas Cirolini e Camila Fogliarini, para a disciplina de Jornalismo Investigativo, no segundo semestre de 2017, sob a orientação da professora Carla Torres.
Fazia sol em uma segunda de inverno em Santa Maria. O dia era 26 de junho mas, depois que anoiteceu, nunca mais foi apenas um dia comum para Maria*. Naquela noite, a vendedora, de 27 anos, estava tranquila em casa, junto com o filho, quando o marido chegou bêbado. Ele discutia, gritava, quando perdeu o controle e começou a chutar e socar a mulher. Tudo em frente ao filho do casal.
Maria conseguiu fugir das agressões daquele homem que ela mal reconhecia como seu marido, ligou para a polícia e foi amparada pela lei Maria da Penha. A medida protetiva que a mulher havia solicitado foi atendida e, legalmente, ela estava protegida. Entretanto, apesar de não ter acontecido outras agressões físicas, desde o dia 26 Maria passou a ser constantemente ameaçada e humilhada verbalmente pelo, agora, ex-marido.
– Muitos perguntam o motivo da minha separação, o porquê, se parecíamos sermos tão felizes. Não foi só um tapinha – desabafa Maria.
Entretanto, nem todas as mulheres têm a chance de chegar a tempo até a polícia. É o caso de Taisa Macedo Paula, 26 anos, e a Michele Albiero Wernz, 33 anos, vítimas dos dois casos de feminicídio que aconteceram esse ano em Santa Maria.
Quando estavam comemorando o Dia dos Namorados, em 12 de junho, Taisa e o companheiro Carlos Rudinei de Oliveira da Silva, 34 anos, encontraram-se no carro do homem para conversar após uma discussão que tiveram dentro da casa dela. Ela entrou no veículo e os dois seguiram em direção a Itaara. Quando chegaram até a localidade de Limeira, no interior do município, Silva assassinou a mulher com golpes de martelo. O crime só foi descoberto mais de um mês depois, no dia 18 de julho, após a polícia encontrar o corpo da jovem enterrado em uma propriedade rural. Ela estava grávida de quatro meses.
Já o segundo feminicídio aconteceu em 25 de outubro. Michele morava junto com o companheiro, Rodrigo Tormes dos Reis, e com dois filhos em um apartamento na região central da cidade. Ali ela foi morta a facadas pelo homem. Conforme o relato do pai da vítima aos policiais, Reis era ciumento e as brigas entre o casal eram recorrentes. Enquanto Michele era esfaqueada, gritava por socorro, que chegou tarde demais.
*O nome é fictício para preservar a identidade da vítima
A lei Maria da Penha
No mês de agosto, a Lei Maria da Penha, que garante a proteção às mulheres contra qualquer tipo de violência doméstica, seja física, psicológica, patrimonial ou moral, completou 11 anos de vigoração no Brasil. Mais recente ainda, em 2015, foi sancionada a Lei do Feminicídio, em que casos de violência doméstica e familiar, menosprezo e discriminação contra a condição de mulher passam a ser vistos como qualificadores de um homicídio, colocando-o também no rol dos crimes hediondos. As mulheres são violentadas e mortas por circunstâncias totalmente diferentes do que os homens. De acordo com o artigo 5º da Maria da Penha, a violência doméstica contra mulher é caracterizada como “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”.
Conforme a delegada Débora Dias, titular da Delegacia da Mulher, o número de ocorrências tem diminuído há cerca de dois anos, mas ainda preocupa. Em Santa Maria, em 2016, foram registradas 3.102 boletins de ocorrência de violência contra a mulher. Neste ano, eram 2.600 registros até o dia 14 de novembro. Dos casos, cerca de 40% deles são agressões físicas e em torno de 60% psicológicas.
– A maioria dos casos registrados são de mulheres de classes mais baixas, mas isso não significa que não há violência em todas as classes. O que acontece é que em casos em que a mulher é de uma classe social mais alta, a gente só vai descobrir quando ela está no hospital, porque ela não denuncia – explica a delegada.
Quando a denúncia é feita por meio de um boletim de ocorrência, testemunhas são ouvidas, há instauração de um inquérito e as medidas protetivas são solicitadas – como determinar que o agressor não se aproxime da vítima-, até 48 horas a partir da instauração do inquérito. Ao chegar no judiciário, o juiz tem até outras 48 horas para deferir ou indeferir o pedido.
– Tem casos em que a mulher não realiza o exame e, quando chega na hora do depoimento, elas pensam em desistir, dizer apenas que caíram. Por isso o plantão começou a fazer fotografias das lesões para ter, ao menos, uma prova do crime – comenta Débora.
Por que as mulheres permanecem na relação abusiva?
A ideologia de gênero é um dos principais fatores que levam as mulheres a permanecerem em uma relação abusiva. Muitas delas internalizam a dominação masculina como algo natural e não conseguem romper com a situação de violência e opressão em que vivem.
Além da ideologia de gênero, outros motivos também são frequentes, tais como: a dependência emocional e econômica, a valorização da família e idealização do amor e do casamento, a preocupação com os filhos, o medo da perda e do desamparo diante da necessidade de enfrentar a vida sozinha, principalmente quando a mulher não conta com nenhum apoio social e familiar. Além disso, ela também acaba culpando-se pelas agressões.
– Ela tenta se justificar, tenta encontrar o ‘como eu deixei chegar até aqui’, e isso é muito interessante de ser analisado, porque a culpa nas relações sempre vai existir, mas o quanto essa violência acaba com o psicológico não pode ser dimensionado. Não é culpa de nenhuma mulher. A gente precisa se responsabilizar pelas nossas vidas e se empoderar, porque é assim que vamos conseguir compreender que essa agressão não se combate com opressão, e é preciso levantar a cabeça para enfrentar os abusos e na próxima vez dizer ‘não com esse tipo de homem não mais’ – explica a psicóloga Bharbara Agnoletto.
Para tentar entender quem são essas mulheres que vivem a violência conjugal na cidade, a psicóloga participou do projeto de pesquisa “Subjetividade da Mulher Que Vivencia A Violência Conjugal”, desenvolvido em 2015 no curso de Psicologia da Unifra. A partir da psicanálise, doze mulheres foram estudadas – seis casadas e seis separadas dos agressores. Em 2017, o projeto está na fase de análise dos relatos das mulheres.
– O estudo considerou a individualidade de cada uma, e que a mulher não deve ser vista como a vítima. Ela não é uma coitadinha, mas a protagonista da própria vida – relata Bharbara.
Como identificar a violência contra a mulher
_ Ter medo do homem com quem se convive
_ Ser agredida e humilhada
_ Sentir insegurança na sua própria casa
_ Ser obrigada a manter relações sexuais
_ Ter objetos e documentos destruídos ou escondidos
_ Ser intimidada com arma de fogo ou faca
_ Ser forçada a “retirar a queixa”
Denuncie
_ 190: Brigada Militar
_ Delegacia de Polícia de Pronto-Atendimento: (Rua dos Andradas, 1397). Telefone (55) 3222-2858
_ Delegacia de Polícia Para a Mulher: (Rua Duque de Caxias, 1169). Telefone (55) 3222 – 9646 / 3217 – 4485 / (55) 3226-7799
_ Rede Lilás, que apoia mulheres vítimas de violência no Estado. Telefone: 0800-541 0803
Por Julia Trombini, Tisa Lacerda e Victoria Debortoli para a disciplina de Jornalismo Investigativo, desenvolvida no segundo semestre de 2017, sob a orientação da professora Carla Torres