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Santa Maria, RS, Brazil

Discoteca da memória: três discos brasileiros

Cada disco representando três décadas diferentes e estilos diferentes, e contendo altas doses de singularidade em sua sonoridade.

Gal Costa – Gal (1969)

   Em 1969 o AI-5 estava em alta. Caetano e Gil, presos, logo se exilaram em Londres. Sem seus dois membros fundadores e mais importantes, o tropicalismo estava fadado ao fim. Gal, sua protegida, se viu sozinha. Era a única figura de maior renome do movimento em seu país. Os Mutantes já haviam tomado independência e pulado fora. Nessas circunstâncias, Gal, capitaneando o tropicalismo, gravou seu disco mais lisérgico, experimental e agressivo. Com composições de Caetano, Gil, Jorge Ben, Roberto e Erasmo Carlos e Jards Macalé, o disco é repleto de groove e loucura. O disco já abre com uma guitarra berrando. Influenciado por Jimi Hendrix e Janis Joplin, o trabalho foge da brasilidade típica dos discos tropicalistas. A única veia meramente tropicalista aqui é a versão de País Tropical, um dos bilhões de hinos de Jorge Ben Jor, aqui num arranjo de samba rock lisérgico com participação de Gil e Caetano festejando pela faixa. No disco, Gal deixa seu lado mais doce de lado e taca o louco. Se esguela e ruge como uma leoa dominando todo o território. Um grito de liberdade, fúria e feminismo em épocas opressoras. Conta também com o auxílio de seu clã, em especial o guitarrista Lanny Gordin, seu mais fiel escudeiro naqueles tempos. Com sua guitarra de timbres por vezes cristalinos e limpos, por ora ácidos e distorcidos, soa como se fosse o segundo protagonista de todo o disco. Gal e Gordin parecem dialogar durante toda sua meia hora de duração. O contrabaixo também, para falar a verdade. Num timbre limpo e ressonante, as linhas dançam pelo disco inteiro, num ritual de celebração à beleza da música. Esse é um dos maiores prazeres que os discos brasileiros daquela época nos proporcionam, sua extrema preocupação com os graves. O contrabaixo nos trabalhos daquele período pulsam na mente. A sonoridade suja, psicodélica e feia de Gal instaura em nossos ouvidos o ambiente de angústia e raiva da época, e de sua intérprete. Mas é claro que também há momentos de calma e beleza em meio ao caos. Um disco fundamental.

Destaque: The Empty Boat – Uma composição tranquila de Caetano Veloso transformada num monstro lisérgico. Começa na leveza dos dias de glória e termina na loucura diária de um paranóico suicida. Mas tudo controlado, é claro. Jards Macalé participa berrando e se contorcendo junto a Gal, como se estivessem numa orgia de mortos, celebrando em meio a um groove irresistível. A guitarra cuspindo ácido e as linhas de baixo dançando sobre os corpos.

Jards Macalé (1972)

 Macalé foi um dos colaboradores menores do movimento tropicalista, sempre nos bastidores, compondo em parceria com os letristas Capinam e Wally Salomão. São eles os responsáveis por hinos de uma geração, como Gotham City, gravada pelos Brazões e Camisa de Vênus, e defendida por Macalé no IV Festival Internacional da Canção em 1969, numa apresentação caótica e malfadada. Na letra, a cidade violenta e sombria do Batman é usada como metáfora daqueles tempos estranhos. E também há Vapor Barato, gravada por Gal e O Rappa, resumindo toda a angústia de uma geração com desejo de fugir de toda aquela opressão militar. Em 1972, acompanhado de Lanny Gordin no baixo e Tutty Moreno na bateria, foi sua vez de entrar de vez na cena, com seu homônimo disco de estreia. Pós-tropicalista, até hoje não superado pelo próprio músico e por nada que veio depois, é um disco estranho e único na história. Não há como definir exatamente este trabalho. De uma inigualável beleza triste, Macalé mistura diversos estilos, às vezes em uma única música. Há samba, rock and roll, jazz e bossa nova só na faixa de abertura, Farinha do Desprezo. O disco soa orgânico devido a sua produção crua. Os arranjos apresentam quebras de ritmo dinâmicas e progressivas. Tudo muito paranoico e pertinente à época. As letras, escritas na maioria pelos seus dois colaboradores recorrentes já citados, seguem o desespero e melancolia de suas composições anteriores. A poética aqui é de uma beleza estonteante. Preste atenção em Meu Amor Me Agarra & Geme & Treme & Chora & Mata e diga se estou errado. O clima pesado e mórbido domina o álbum, exalando a melancolia dos tempos mais pesados da ditadura. As melodias passeiam pelo deprimido e pelo faceiro, este último devido mais uma vez à força do contrabaixo, que dança pelas músicas. Lanny também gravou os solos de violão, exibindo uma outra faceta de sua musicalidade. E assim temos mais uma obra-prima fundamental. Infelizmente (ou seria felizmente?), o disco não teve repercussão nenhuma, forçando Macalé a realizar trabalhos mais tradicionais, mas nada comerciais. E nosso herói maldito até hoje segue na ”periferia da música brasileira”. Um autêntico artista cult em terras tupiniquins.

Destaque: Mal Secreto – Uma das composições mais simples do disco, com poucas quebras de ritmo. Ainda sim complexa. Um samba-bossa-jazz de andamento calmo e emoção neutra como pano de fundo para uma letra, de autoria de Wally Salomão, que representa a maior característica dos brasileiros, de acordo com Macalé: nossa aparente alegria em momentos de tristeza. Mesmo na pior, seguimos em frente. Apesar disso, a dor permanece, mascarada em nossas entranhas. O baixo de Lanny dá toda a vivacidade à faixa. E há uma rápida quebra de ritmo, aumentado durante o trecho em que o eu-lírico se mostra vulnerável na solidão de todos os dias. Ao final, Tutty acrescenta uma leve ginga em meio à dor cotidiana.

Lobão e os Ronaldos – Ronaldo Foi Pra Guerra (1984)

 Após sair da Blitz e lançar seu primeiro disco solo, sem sucesso nenhum, Lobão se viu na necessidade de criar outra banda. Assim surgiram os Ronaldos e o melhor disco da cena roqueira brasileira dos anos 80. O ”Lobão” foi acrescentado por pressão da gravadora, com olhos centrados na grana, aproveitando o renome de nosso ser mais odiado. O trabalho é influenciado pela new wave da época, mas ainda sim altamente único, sem dever nada às suas influências. É um disco bem daquela época, e muito diferente também. A sonoridade não é tão pasteurizada quanto trabalhos relativos. Para os meus ouvidos, pelo menos, soa bastante atual, apenas com uma produção mais precária. Ou talvez eu esteja louco. Há uma leve crueza no som que me agrada bastante. Adoro os timbres dos instrumentos nesse disco. Sem aquelas baterias eletrônicas, moda nos anos 80, altamente datadas que abusavam do mal gosto da época. Fuja disso. Já o disco em si, é uma coleção de petardos pop. A angústia adolescente em seus melhores momentos. Há alegria, melancolia, ganchos, ganchos e mais ganchos. É também um disco simples, estúpido, bobo, jovem, chiclete e que ainda conta com Alice Pink Pank, a holandesa que conquistou o Brasil naquela década tão amada e odiada ao mesmo tempo. O leve sotaque gringo em seus vocais é um verdadeiro paraíso na Terra. Mais uma vez, perdão pela repetição. Também tocou os teclados, aqui discretos e nada poluídos. Alice foi o George Harrison dos Ronaldos, uma artesã em seu instrumento, acrescentando muito fazendo pouco. Toda vez que escuto Ronaldo Foi Pra Guerra, roda pela minha cabeça um filme adolescente dos anos 80. Aqueles de colegiais fazendo bobagem. Aliás, o disco inteiro poderia muito bem ser a trilha perfeita de um filme assim. Ou então nossos filmes bobos adolescentes da década de 80, como Areias Escaldantes. Sem pé nem cabeça, trilha repleta de bandas emergentes na época e altamente divertido. Na verdade, poderia muito bem virar um filme, todo baseado na sua sonoridade e temática melancólica e estúpida. Fica aí a dica de um revival oitentista nos nossos cinemas.

Destaque: Teoria da Relatividade – O single perfeito que nunca foi. Tem todo apelo radiofônico e nem sequer foi cogitado pra isso. Uma puta falta de sacanagem. Uma perfeita tradução do que podemos chamar por música pop, é um rock and roll animado com melodia das mais agradáveis, arranjos cheios de gancho e uma letra que descreve as típicas frustrações adolescentes. O cara lá, sozinho em sua cama, lendo, enquanto sua garota tá na cama com outro rapaz. E ele continua lá, lendo. Um verdadeiro ser humano tolerante esse. Os toques de teclado também fazem toda a diferença, com sabor de goma de mascar de tutti-frutti açucarado.

 

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Cada disco representando três décadas diferentes e estilos diferentes, e contendo altas doses de singularidade em sua sonoridade.

Gal Costa – Gal (1969)

   Em 1969 o AI-5 estava em alta. Caetano e Gil, presos, logo se exilaram em Londres. Sem seus dois membros fundadores e mais importantes, o tropicalismo estava fadado ao fim. Gal, sua protegida, se viu sozinha. Era a única figura de maior renome do movimento em seu país. Os Mutantes já haviam tomado independência e pulado fora. Nessas circunstâncias, Gal, capitaneando o tropicalismo, gravou seu disco mais lisérgico, experimental e agressivo. Com composições de Caetano, Gil, Jorge Ben, Roberto e Erasmo Carlos e Jards Macalé, o disco é repleto de groove e loucura. O disco já abre com uma guitarra berrando. Influenciado por Jimi Hendrix e Janis Joplin, o trabalho foge da brasilidade típica dos discos tropicalistas. A única veia meramente tropicalista aqui é a versão de País Tropical, um dos bilhões de hinos de Jorge Ben Jor, aqui num arranjo de samba rock lisérgico com participação de Gil e Caetano festejando pela faixa. No disco, Gal deixa seu lado mais doce de lado e taca o louco. Se esguela e ruge como uma leoa dominando todo o território. Um grito de liberdade, fúria e feminismo em épocas opressoras. Conta também com o auxílio de seu clã, em especial o guitarrista Lanny Gordin, seu mais fiel escudeiro naqueles tempos. Com sua guitarra de timbres por vezes cristalinos e limpos, por ora ácidos e distorcidos, soa como se fosse o segundo protagonista de todo o disco. Gal e Gordin parecem dialogar durante toda sua meia hora de duração. O contrabaixo também, para falar a verdade. Num timbre limpo e ressonante, as linhas dançam pelo disco inteiro, num ritual de celebração à beleza da música. Esse é um dos maiores prazeres que os discos brasileiros daquela época nos proporcionam, sua extrema preocupação com os graves. O contrabaixo nos trabalhos daquele período pulsam na mente. A sonoridade suja, psicodélica e feia de Gal instaura em nossos ouvidos o ambiente de angústia e raiva da época, e de sua intérprete. Mas é claro que também há momentos de calma e beleza em meio ao caos. Um disco fundamental.

Destaque: The Empty Boat – Uma composição tranquila de Caetano Veloso transformada num monstro lisérgico. Começa na leveza dos dias de glória e termina na loucura diária de um paranóico suicida. Mas tudo controlado, é claro. Jards Macalé participa berrando e se contorcendo junto a Gal, como se estivessem numa orgia de mortos, celebrando em meio a um groove irresistível. A guitarra cuspindo ácido e as linhas de baixo dançando sobre os corpos.

Jards Macalé (1972)

 Macalé foi um dos colaboradores menores do movimento tropicalista, sempre nos bastidores, compondo em parceria com os letristas Capinam e Wally Salomão. São eles os responsáveis por hinos de uma geração, como Gotham City, gravada pelos Brazões e Camisa de Vênus, e defendida por Macalé no IV Festival Internacional da Canção em 1969, numa apresentação caótica e malfadada. Na letra, a cidade violenta e sombria do Batman é usada como metáfora daqueles tempos estranhos. E também há Vapor Barato, gravada por Gal e O Rappa, resumindo toda a angústia de uma geração com desejo de fugir de toda aquela opressão militar. Em 1972, acompanhado de Lanny Gordin no baixo e Tutty Moreno na bateria, foi sua vez de entrar de vez na cena, com seu homônimo disco de estreia. Pós-tropicalista, até hoje não superado pelo próprio músico e por nada que veio depois, é um disco estranho e único na história. Não há como definir exatamente este trabalho. De uma inigualável beleza triste, Macalé mistura diversos estilos, às vezes em uma única música. Há samba, rock and roll, jazz e bossa nova só na faixa de abertura, Farinha do Desprezo. O disco soa orgânico devido a sua produção crua. Os arranjos apresentam quebras de ritmo dinâmicas e progressivas. Tudo muito paranoico e pertinente à época. As letras, escritas na maioria pelos seus dois colaboradores recorrentes já citados, seguem o desespero e melancolia de suas composições anteriores. A poética aqui é de uma beleza estonteante. Preste atenção em Meu Amor Me Agarra & Geme & Treme & Chora & Mata e diga se estou errado. O clima pesado e mórbido domina o álbum, exalando a melancolia dos tempos mais pesados da ditadura. As melodias passeiam pelo deprimido e pelo faceiro, este último devido mais uma vez à força do contrabaixo, que dança pelas músicas. Lanny também gravou os solos de violão, exibindo uma outra faceta de sua musicalidade. E assim temos mais uma obra-prima fundamental. Infelizmente (ou seria felizmente?), o disco não teve repercussão nenhuma, forçando Macalé a realizar trabalhos mais tradicionais, mas nada comerciais. E nosso herói maldito até hoje segue na ”periferia da música brasileira”. Um autêntico artista cult em terras tupiniquins.

Destaque: Mal Secreto – Uma das composições mais simples do disco, com poucas quebras de ritmo. Ainda sim complexa. Um samba-bossa-jazz de andamento calmo e emoção neutra como pano de fundo para uma letra, de autoria de Wally Salomão, que representa a maior característica dos brasileiros, de acordo com Macalé: nossa aparente alegria em momentos de tristeza. Mesmo na pior, seguimos em frente. Apesar disso, a dor permanece, mascarada em nossas entranhas. O baixo de Lanny dá toda a vivacidade à faixa. E há uma rápida quebra de ritmo, aumentado durante o trecho em que o eu-lírico se mostra vulnerável na solidão de todos os dias. Ao final, Tutty acrescenta uma leve ginga em meio à dor cotidiana.

Lobão e os Ronaldos – Ronaldo Foi Pra Guerra (1984)

 Após sair da Blitz e lançar seu primeiro disco solo, sem sucesso nenhum, Lobão se viu na necessidade de criar outra banda. Assim surgiram os Ronaldos e o melhor disco da cena roqueira brasileira dos anos 80. O ”Lobão” foi acrescentado por pressão da gravadora, com olhos centrados na grana, aproveitando o renome de nosso ser mais odiado. O trabalho é influenciado pela new wave da época, mas ainda sim altamente único, sem dever nada às suas influências. É um disco bem daquela época, e muito diferente também. A sonoridade não é tão pasteurizada quanto trabalhos relativos. Para os meus ouvidos, pelo menos, soa bastante atual, apenas com uma produção mais precária. Ou talvez eu esteja louco. Há uma leve crueza no som que me agrada bastante. Adoro os timbres dos instrumentos nesse disco. Sem aquelas baterias eletrônicas, moda nos anos 80, altamente datadas que abusavam do mal gosto da época. Fuja disso. Já o disco em si, é uma coleção de petardos pop. A angústia adolescente em seus melhores momentos. Há alegria, melancolia, ganchos, ganchos e mais ganchos. É também um disco simples, estúpido, bobo, jovem, chiclete e que ainda conta com Alice Pink Pank, a holandesa que conquistou o Brasil naquela década tão amada e odiada ao mesmo tempo. O leve sotaque gringo em seus vocais é um verdadeiro paraíso na Terra. Mais uma vez, perdão pela repetição. Também tocou os teclados, aqui discretos e nada poluídos. Alice foi o George Harrison dos Ronaldos, uma artesã em seu instrumento, acrescentando muito fazendo pouco. Toda vez que escuto Ronaldo Foi Pra Guerra, roda pela minha cabeça um filme adolescente dos anos 80. Aqueles de colegiais fazendo bobagem. Aliás, o disco inteiro poderia muito bem ser a trilha perfeita de um filme assim. Ou então nossos filmes bobos adolescentes da década de 80, como Areias Escaldantes. Sem pé nem cabeça, trilha repleta de bandas emergentes na época e altamente divertido. Na verdade, poderia muito bem virar um filme, todo baseado na sua sonoridade e temática melancólica e estúpida. Fica aí a dica de um revival oitentista nos nossos cinemas.

Destaque: Teoria da Relatividade – O single perfeito que nunca foi. Tem todo apelo radiofônico e nem sequer foi cogitado pra isso. Uma puta falta de sacanagem. Uma perfeita tradução do que podemos chamar por música pop, é um rock and roll animado com melodia das mais agradáveis, arranjos cheios de gancho e uma letra que descreve as típicas frustrações adolescentes. O cara lá, sozinho em sua cama, lendo, enquanto sua garota tá na cama com outro rapaz. E ele continua lá, lendo. Um verdadeiro ser humano tolerante esse. Os toques de teclado também fazem toda a diferença, com sabor de goma de mascar de tutti-frutti açucarado.