A Comissão de Finanças da Câmara aprovou em 05 de junho deste ano o projeto que institui o “Estatuto do Nascituro” , no qual são assegurados constitucionalmente direitos que protegem o ser humano ainda no útero materno. Considera-se aqui o nascituro desde o período de concepção até o nascimento, incluindo os seres humanos concebidos “in vitro”, os produzidos através de clonagem ou por outro meio científica e eticamente aceito. A aprovação do projeto foi uma ação coordenada do líder do PMDB, Eduardo Cunha (RJ), em defesa da vida, da família e contra o aborto.
A matéria ainda precisa ser analisada pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), pelo Senado e obter a sanção presidencial antes de entrar em vigor. No entanto, já soma muita mobilização, opiniões contrárias e algumas favoráveis associadas à bancada religiosa. Em meio à elas, grupos organizados defendem ser fundamental discutir sobre os artigos do projeto que tendem a privilegiar o direito à vida de uma célula em detrimento à saúde, segurança e autonomia da mulher. Questionam os critérios utilizados para julgar que uma vida é mais importante do que outra?
Retrocesso de direitos
O projeto apresenta entre suas principais ações considerar um embrião uma pessoa já nascida, digna de todos os direitos jurídicos, e criminalizar ainda mais a mulher que abortar. A partir desse âmbito, se aprovado o estatuto, uma mulher que engravidar de um estupro não poderá abortar, mesmo com riscos irreparáveis à saúde física e psíquica.
Toda e qualquer mulher que sofrer um aborto espontâneo (o que acontece naturalmente em 25% das gestações) será investigada pela polícia, que terá que verificar se ela perdeu o feto acidentalmente, ou se provocou o aborto. E ainda, se uma mulher estiver grávida e com câncer não poderá buscar a cura, porque a quimioterapia afetaria o embrião.
Uma das primeiras polêmicas que figuram em torno do assunto é a disputa sobre dar ou não o estatuto de pessoa a células humanas. Para os que defendem o nascituro como pessoa, células recém-fecundadas são mais do que produtos do corpo humano: seriam personalidades jurídicas com direitos e proteções do Estado, superiores até mesmo aos direitos das mulheres.
Outro dos artigos que mais tem causado discussões é aquele que garante ao nascituro fruto de violência sexual o direito de receber, através de assistência social, um salário mínimo até os 18 anos. O artigo já está sendo chamado, ironicamente, de “bolsa estupro” por aqueles que se opõem ao projeto. O fato é que o artigo ignora a mulher ou a menina violentada e as consequências para ela.Os questionamentos implicam no fato de que o estatuto estaria atropelando os direitos da mulher. A enfermeira Lurdes Panciera ressalta que as consequências causadas pelo estupro tem força maior em questões psicológicas, mas a mulher pode também ficar infértil.
Entre os outros pontos considerados equívocos e apresentados pela proposta está o aborto. Ele seria, em qualquer caso, considerado crime hediondo – aquele onde não se pode recorrer a fiança, cumprido inicialmente sempre em regime fechado – tanto quanto o próprio estupro que também é considerado crime hediondo.
A crítica se dá pelo fato de serem dois atos moralmente distantes, assumindo o mesmo peso perante a lei. Um soco no estômago das vítimas que, vale lembrar, na maioria dos casos são meninas com menos de 18 anos que enfrentam gestações de alto risco. Muitas vezes elas são vítimas de pedofilia.
O que é dito sobre o Estatuto
“Acho a questão muito polêmica, porém acredito que o aborto deveria ser legal apenas em caso de estupro, gravidez com risco de vida à gestante e em casos de feto anencéfalo. O Estatuto do Nascituro visa proteger a vida e eu concordo em parte com a lei, porém acredito que nos casos citados acima, a gestante deva ter o direito de interromper a gestação”. Rosana Dessotti – 20 anos – acadêmica de Direito (Unifra).
” É um total absurdo tirar da mulher o direito de querer ou não ter o filho, ainda mais quando se trata de uma gravidez indesejada. Outro agravante: filho proveniente de uma violência sexual. Toda vez q retiramos da mulher (e do seu companheiro, no caso dos relacionamentos conduzidos com amor) a autonomia sobre a vontade de continuar uma gestação, estamos impondo uma vontade e subtraindo o direito individual de a pessoa decidir sobre seu próprio corpo. Por isso, considero este estatuto mais uma entre várias manifestações de atraso que enfrentamos neste retorno ao medievalismo”. Paulo Leandro – 49 anos – jornalista e professor universitário com PHd em Cultura e Sociedade pela Universidade Federal da Bahia.
“Eu acho um dos maiores retrocessos da história brasileira este ponto. Em casos de Estupro eu sou completamente a favor do aborto. Gravidez acidental eu sou a favor em certos pontos. Este segundo é bem mais delicado, até porque camisinha, pílulas e outros meios existem aos montes e de graça, só que não podemos generalizar este quesito como se todos tivessem o mesmo nível de instrução que nós. Acho que é ridículo uma lei mandar sobre o corpo de uma pessoa, sem deixar ela escolher suas atitudes – Luis David F. Padilha – 21 anos – acadêmico de Publicidade e Propaganda (Unifra).
” Devemos admitir que o Estatuto do Nascituro tem um mérito importante: colocar na agenda nacional a questão da laicidade do Estado democrático e a questão da autonomia das mulheres em decisões envolvendo suas vidas e seus corpos. Houve uma primeira versão desse Projeto em 2005, que não prosperou e foi arquivada em 2007, mas reapareceu nesse mesmo ano com o nº 478/2007, apresentado pelo Dep. Luis Bassuma (então PT-BA). Tal projeto de lei atropelou um caráter inegociável do Estado no século XXI: há muito se tornou irreconciliável estados teocráticos. Religião e política têm se revelado combinação explosiva. Estado democrático requer respeito à pluralidade religiosa, sem que o próprio Estado adote uma linha religiosa e, muito menos, a imponha a tod@s. A aprovação desse PL na primeira Comissão da Câmara a que foi submetido (Comissão de Finanças e Tributação), em 05.06.2013, causou um mal-estar que se espalhou como um rastilho pelo país, e, em contrapartida, gerando um saudável debate.
Sobre as mulheres, o Estatuto do Nascituro incide ameaçando sua liberdade de escolha, retrocedendo a conquistas de nosso Código de 1944, que admitia às mulheres interromperem uma gravidez em caso de estupro e em caso de riscos à vida da mulher. Pois com o Estatuto do Nascituro, religiosos – especialmente fundamentalistas evangélicos que têm uma bancada expressiva no Congresso – defendem que “há vida” na célula-ovo mesmo antes de fixar-se no útero da mulher. Ora, “vida” assim genericamente, concordamos existir, pois não há vida em cada espermatozoide? Então, será o caso de defendê-los, pois detêm vida? A questão REAL fica completamente turvada: defendemos a vida humana e, no caso, a vida da mulher.
Ao longo da História da Igreja muitas foram as discussões teológicas sobre o início da vida humana. Nunca houve unanimidade sobre esse ponto, apesar de um consenso misógino sempre se reafirmar sobre a crença de que, no caso de uma menina, a vida humana se estabelecia mais rapidamente. E se o embrião fosse do sexo masculino precisaria de muito mais tempo….
Hoje a mulher é compreendida como uma cidadã, sujeito de moralidade, de liberdade, de eticidade. Decisões que ela deve intransferivelmente tomar em todas as áreas – e, aqui, na área dos Direitos Reprodutivos.” Ana Liési Thurler, professora de filosofia formada pela Unifra, hoje aposentada, doutora em Sociologia pela UNB/Sourbonne.
“A vítima é penalizada duas vezes por um erro que não é seu. Um doente a ataca e ela se torna refém dos homens: do que a atacou e dos deputados que a punem com esta lei esdrúxula. A vítima revive sua tragédia para sempre ao gerar um filho do seu agressor. Trauma para a mãe que não supera a agressão e o inocente que sofre para o resto de sua vida o peso da violência do pai e a impossibilidade de amor da mãe.” Jorge Barcelos, 50 anos, professor da UFPb
“Sou absolutamente contra ao estatuto do nascituro, ele atinge diretamente os direitos das mulheres. Éridículo uma mulher não poder decidir o que fazer em relação ao seu corpo. Sou à favor da descriminalização do aborto justamente porque acredito nesse direito em que as mulheres devem ser amparadas pelos serviços de saúde, tendo condições de realizar um aborto seguro, uma vez que, observamos muitas morrendo por se submeterem à realização de abortos em clínicas clandestinas em péssimas condições. Sem falar que o gasto que o país tem para tratar essas mulheres é muito maior do que se essas tivessem sido acolhidas para realização de um procedimento seguro. Quando se trata de um caso onde a mulher sofre violência sexual, isso é ainda mais grave, esse projeto de lei se mostra como um retrocesso de algo que já foi conquistado com muita luta. Mais uma vez vemos um Brasil onde não se investe em prevenção e educação do seu povo pois se acha mais fácil remediar com “bolsa tudo”, onde quem merece não é punido pelos seus atos, onde não se faz justiça, onde é gritante a necessidade de revisão de direitos humanos e onde vemos uma saúde pública que não cumpre os princípios de equidade e integralidade.” – Júlia Heinz – 20 anos – estudante de Enfermagem (Ufsm)
” É delicado falar sobre isto, porque abarca além de um viés feminista, os direitos humanos, pois a partir de um determinado momento o embrião já é visto como um ser humano em formação. Mas, no ponto de vista das leis, ele é um retrocesso, mesmo sendo apenas um projeto vem acompanhado com muita polêmica, dado a maneira rude como é proposto, praticamente tirando a culpabilidade das mãos do agressor, e colocando uma “pena” para a mulher que terá que conviver com um evento traumático, durante toda a vida. Enfim, acredito que este projeto de lei, não deve passar e ser aprovado, pois os autores e ex-deputados Luiz Bassuma (PT-BA) e Miguel Martini (PHS-MG), forçam algo que deveria caber a decisão apenas à vítima. Everson Daniel S. DaCosta, 33 anos, Professor de Filosofia e Psicólogo.
Questões delicadas na luta pelo direito ao próprio corpo
A mobilização expressou a insatisfação com o projeto. Durante o ato foram levantadas questões deixadas de lado pelo Estatuto, mas que possuem forte relação como consequência se o mesmo entrar em vigor. O debate levou em consideração a liberdade de escolha, a saúde da mulher – envolta em quesitos psicológicos e de saúde pública -, e até mesmo de direitos humanos negligenciados. De acordo com uma das representantes do grupo, Carolina Barin, “as mulheres passariam a ser figurantes do seu próprio corpo em nome de ideologias filosóficas e religiosas que nem dizem respeito a suas crenças.”
Organizado por membros do coletivo Marcha das Vadias via facebook, as reflexões feitas ali, segundo Carolina, ainda terão espaço livre durante a segunda edição da marcha, que na cidade será realizada no dia 20 de julho próximo.
Por Mariane Bevilaqua e Yuri Nascimento, Jornalismo Unifra.
Uma resposta
Excelente matéria.
Sou pela liberdade de escolha.