“Encontre algo que você ame, e deixe isso te matar”. Essa é uma das frases de Arlequina, o casal que mais fez sucesso este ano. Mas até onde você deve deixar o amor controlar a sua vida? Depois do lançamento do filme Esquadrão Suicida, o relacionamento de Arlequina e Coringa, os vilões em Batman, mais do que nunca se tornou alvo de romantização. Há quem insista em dizer que “apesar de complicado, é um relacionamento em que os dois se amam independente de qualquer coisa”. Porém, não há nada de romântico nesse relacionamento; na verdade, ele é abusivo.
O relacionamento abusivo existe quando uma pessoa usa a sua influência e poder sobre a outra; é o uso inadequado de persuasão, quando o abusador busca controlar as ações do parceiro, é possessivo e machuca o outro, psicológica ou fisicamente.
Arlequina era psicóloga de Coringa no hospício. Ele a manipula, faz ela se apaixonar e o ajudar a fugir. Mas quando ela captura o Batman para provar seu amor, ele a agride, física e verbalmente, dizendo que só ele poderia derrotar o Batman, achando-se melhor que ela. Esse complexo de superioridade também caracteriza um relacionamento abusivo.
No final, Arlequina até pensa em deixá-lo, mas isso só até receber uma mensagem do vilão, que a faz ter esperanças de um final feliz. Há quem diga que se Arlequina quisesse deixá-lo, já o teria feito. Mas assim como em relacionamentos reais, seu parceiro sabe exatamente como manipulá-la para mantê-la por perto.
Agressão, complexo de superioridade e manipulação. Comportamentos da ficção muito parecidos com os da vida real. Prova disso são os relatos anônimos de uma pesquisa realizada pela internet com 325 pessoas.
“De início ele fez de tudo para que todos à minha volta acreditassem na pessoa extremamente calma e gentil que ele dizia ser, os abusos demoraram a aparecer. Só percebi quem ele realmente era quando me contou rindo que uma ex tentou suicídio por causa dele e, por isso, ela era motivo de piada em toda conversa com os amigos. Por outro lado, as ex que o tinham deixado eram sempre más, loucas, pessoas que tentaram destruir a imagem dele. Comecei a quase não ver meus amigos e família, as agressões físicas/sexuais tinham como desculpa o fato de eu precisar ser punida pelos meus comportamentos errados. Eu sempre precisava estar marcada por grandes hematomas de mordidas, porque, para ele, essa era a única forma de mostrar a todos que eu namorava. Um dia colocou-me sentada entre a tela de segurança e a janela do prédio, a mais de dez andares do chão. Entrei em depressão profunda e me tornei a outra namorada que tentou se matar”.
Como você pode ver, relacionamentos abusivos são mais comuns do que se imagina. Segundo uma pesquisa feita pelo Instituto Avon, em parceria com o Data Popular, a cada 5 jovens, 3 já sofreram algum tipo de violência nos relacionamentos. Na pesquisa feita pela internet, com 325 pessoas (284 mulheres e 41 homens) entre os dias 19 de outubro e 5 de novembro deste ano, 197 disseram que já tiveram um relacionamento abusivo.
Mas o que caracteriza um relacionamento abusivo afinal?
Diferentemente do que muitos imaginam, relacionamento abusivo não é sinônimo de agressão física. De acordo com a psicóloga Renata Krug, pós-graduada em Terapia de Casal e Família, um relacionamento é abusivo quando alguém fere os direitos do outro de pensamento e liberdade. Na sociedade atual, esses limites estão borrados e muita coisa pode ser aceita. Todavia, alguns comportamentos serão sempre abusivos, como agressão física, sexual, verbal e moral. A relação abusiva é caracterizada como o desejo de controlar o parceiro e tê-lo para si, é colocar a pessoa no lugar de “coisa”.
Definir quando um relacionamento é abusivo pode ser muito difícil, porém, os principais indicativos desse tipo de relação são: ciúme exagerado, sentimento de posse, controle sobre as decisões e ações do parceiro, vontade de mantê-lo em isolamento, violência verbal e/ou física, relações sexuais obrigadas.
De acordo com a delegada Débora Dias, titular da Delegacia Especializada de Atenção à Mulher de Santa Maria, todo tipo de violência pode ser denunciado: lesão corporal, ameaças, constrangimentos, injúria, difamação, calúnia, cárcere privado, estupro, etc. A Lei 11340/06, conhecida como Lei Maria da Penha protege todas as mulheres de agressões físicas, morais e psicológicas, incluindo mulheres lésbicas, trans e bissexuais que sofrem violência doméstica e familiar. Ela também pode ser aplicada por analogia para proteger homens, isso por não existe lei similar para os mesmos.
O maior problema dos relacionamentos abusivos é que eles são difíceis de identificar. Normalmente, as agressões são sutis. Nos relatos da pesquisa feita pela internet é possível perceber algumas atitudes aparentemente normais que passam a ser indício de relações opressoras.
“No começo achava que era ciúmes normal de início de namoro, mas depois foi se tornando algo doentio, insuportável. Ele começou a colocar defeito em tudo, na roupa que eu usava, nos amigos que eu tinha, queria me privar de fazer qualquer coisa e me ameaçava dizendo que se eu terminasse com ele iria se afundar no mundo das drogas. Teve uma vez em que ele me ligou dizendo que estava em cima duma ponte e iria se jogar, caso eu não fosse para casa em 5 minutos. Acredito que aguentei isso por acabar aceitando o que ele pedia por ter no pensamento a frase “vou fazer isso para não me incomodar” e acabava cedendo as suas chantagens. Eu temia terminar com ele por medo do que ele seria capaz de fazer comigo e com ele mesmo, e eu iria me sentir culpada”.
O abusado
A psicóloga Renata Krug explica que “muitas pessoas não conseguem se libertar de um relacionamento abusivo porque estão psicologicamente e/ou socialmente ligadas ao agressor”. Muitas vezes, depende dele, inclusive, financeiramente. Outra questão é que muitas vezes a pessoa pode ter sido criada em uma situação abusiva e, por isso, acredita que aquilo é normal. A delegada Débora Dias conta que o principal motivo das vítimas voltarem atrás e retirarem as denúncias é o medo, mas tem ainda a falta de apoio familiar, a situação econômica, os filhos, a autoestima baixa, entre outros. Ela também ressalta que é muito importante desde o início do relacionamento que se preste atenção nas cenas de ciúmes excessivo, “que não são sinais de amor, mas de posse. Jamais se deve ceder em mudar de roupa, cabelo, maquiagem ou trabalho porque o parceiro não gosta. Há milhares de pessoas no mundo, alguém vai gostar e ponto. Temos que prestar atenção e preservar nossa dignidade, respeito e amor próprio em primeiro lugar”.
O abusador
Geralmente a pessoa que passa por situações abusivas acaba reproduzindo nos outros um vínculo semelhante, mesmo que de forma inconsciente. Ela pode estar na posição de agressora por ter a sua autopercepção tão crítica que teme ser enganada, traída ou derrotada pelo outro o tempo todo. Isso é muito comum em homens que sofrem bullying ou presenciam violência em casa quando crianças. É o que mostram os dados em que 64% dos agressores já presenciaram violência contra a mãe, conforme pesquisa da Avon.
Crianças que foram criadas sem atenção e sendo mandadas por seus pais, reproduzem o mesmo pensamento com seus filhos, diz a psicóloga Renata. Segundo ela, “o acesso ao estudo, cultura, pensamento crítico e a profissionais da saúde é muito importante. Estes ajudam a problematizar a situação e pensar criticamente em outras possibilidades”.
Veja a seguir o relato de uma menina que alega ter sido a abusadora:
“Quando eu estive na posição de opressora, obviamente não percebia isso e nem conhecia a expressão relacionamento abusivo. Apenas agora vejo o que fiz, depois de muitos anos, pois sentia prazer em ter alguém submisso, não sabia os efeitos que isso teria. Quando terminamos, meu ex tentou se matar. Um ano depois voltamos e ao terminar, ele tentou de novo. Logo depois, ele começou tratamento para depressão. Eu não tinha conhecimento do extremo que a situação tinha chegado”.
Consequências do abuso
Essas experiências podem deixar algum tipo de trauma. A vítima pode ter medo de se relacionar de novo, ter problemas de ansiedade, pesadelos, retração e se torturar com perguntas como o motivo de ter escolhido uma pessoa assim, ou como não percebeu que aquilo estava acontecendo. A psicóloga Renata diz que os sintomas são inúmeros e que dependem da personalidade e da capacidade de resiliência do psicológico de cada pessoa. Na maioria das situações é necessário um tratamento multidisciplinar. Por isso é bom contar com ajuda de profissionais da saúde, como psicólogos ou assistentes sociais. É importante trabalhar a autoestima e entender o que levou a pessoa a manter um relacionamento insatisfatório.
Amigos e familiares
É possível que a vítima não se dê conta da situação em que está ou se recuse a acreditar na verdade. De acordo com Renata, a família e os amigos podem ajudar a pessoa a identificar o abuso e se livrar do que a impede de seguir. Embora essa ajuda seja necessária, ela nem sempre acontece. É complicado admitir para as pessoas próximas que você foi uma vítima e, muitas vezes, quando se dispõe a falar pode ser criticada e ouvir expressões como “eu não sabia que você era ingênua a esse ponto” ou “é gostar de ser trouxa”, “como você deixa ele fazer isso”? A questão não é deixar ou gostar, o problema está nos abusos mascarados do dia a dia, e frases como essas acabam deixando a pessoa com a autoestima ainda mais baixa. A pessoa que é abusada não é culpada pelo que sofreu. O coletivo UNAS diz que o mais importante é não estar sozinha e ter apoio de familiares e amigos é essencial. “A culpa não é de vocês! Não há palavra, ação, comportamento seu que justifique abuso por parte de qualquer pessoa. Reconhecer um relacionamento abusivo é doloroso e sair dele é mais complicado ainda, mas lembre-se que você merece o melhor, é forte e não está sozinho”. O amor não abandona, nem ameaçada, nem agride, isso é abuso.
Por Ariadne Marin, Bibiana Iop, Flora Quinhones e Mariana Olhaberriet para o Jornal Abra