Norberto Bobbio, historiador e filósofo italiano ligado aos pensamentos jurídico e político, escreveu em um de seus livros, A Era dos Direitos, que a transição do século XX para o XXI marcava a era do Poder Judiciário. O século XX fora o período do Poder Executivo, da crença nos grandes líderes em meio às guerras e à instauração de novos regimes; anteriormente, o XIX, em meio ao florescimento do pensamento liberal, havia sido a era do Poder Legislativo, da representatividade.
O caminho repleto de percalços da história do Brasil registra pelo menos um golpe político correspondente a cada era de esplendor dos três poderes, coincidência ou não. Cada qual com as suas devidas desculpas e subterfúgios, mas todos eles de caráter conservador. Há ainda outro detalhe curioso: o termo “Quarto Poder” foi cunhado no século XIX, na Inglaterra. Em paralelo a todas estas transformações da Idade Contemporânea, a Mídia sempre esteve lá, desempenhando algum tipo de papel. Talvez nunca como protagonista, mas saindo sempre fortalecida com o passar de cada período histórico, mantendo a sua regularidade de ganho de influência através dos séculos. Falar do cenário político no Brasil a partir da Era Vargas é ter de obrigatoriamente dedicar um capítulo especial à imprensa.
“Há décadas em que nada acontece e há semanas em que décadas acontecem”. A frase em questão, atribuída ao líder revolucionário bolchevique Vladimir Lenin, caberia bem como uma frase de efeito sobre 2016, ano que foi marcado por uma sucessão de importantes acontecimentos no cenário político nacional como há muito não se via. A abertura do processo de impeachment contra Dilma Rousseff no fim de 2015 fora uma prévia do que estava por vir: a agitação que havia mobilizado as ruas nos três anos anteriores finalmente chegava aos três poderes, atingindo principalmente o Legislativo e o Executivo.
É provável que o momento político que mais permeie o imaginário do povo brasileiro seja o da votação do processo de impeachment na Câmara dos Deputados. O show de horrores transmitido ao vivo em tevê aberta causou constrangimento até mesmo ao senso comum e àqueles favoráveis ao afastamento de Dilma. A maioria das manifestações dos deputados naquela sessão do dia 17 de abril foi inominável. Dedicatórias, motivações de cunho pessoal, argumentos absolutamente incompatíveis com a acusação que constava na peça processual. Na Esplanada, um muro dividia manifestantes a favor e contra o impeachment tal qual torcidas organizadas – e, sejamos honestos, o grau de paixão e de polarização política no Brasil pelo menos desde as eleições de 2014 vem superando o que acontece no futebol. Mas não se deu aí o encontro mais interessante dos quatro poderes.
Em março, um mês antes da tragicômica votação na Câmara, a mídia se via diante de duas cenas envolvendo os mesmos protagonistas: Lula e Sergio Moro. A primeira delas, a condução coercitiva do ex-presidente para prestar depoimento à força-tarefa da Operação Lava-Jato, acabou se tornando um espetáculo sem necessidade, tendo sido vazado de alguma forma para a imprensa antes de acontecer. O acontecimento causou um imenso furor, mas nada comparado com o que viria a seguir: poucos dias depois, Moro divulgaria para a imprensa áudios de conversas por telefone grampeadas envolvendo Lula, Dilma e o PT. Em ambos os episódios, mas principalmente neste, Sergio Moro foi alvo de duras críticas de juristas e advogados, já que havia derrubado o sigilo sem que houvesse prova coletada nos áudios. Segundo a lei, esse material deveria ter sido destruído. Quanto mais porque ali havia assuntos de foro íntimo.
Horas antes do vazamento dos áudios, Dilma havia anunciado Lula como o novo ministro da Casa Civil, numa estratégia de proteção à figura do ex-presidente após o episódio da condução coercitiva, já que isso garantiria a ele o foro privilegiado. Naquele momento não se sabia, mas a combinação destes dois acontecimentos do dia levaria a uma mistura explosiva, de efeito imediato e irreversível. Como interlocutoras e diretamente interessadas, a Globo e a filial Globo News trabalharam o tema à exaustão. Esta última foi incansável no período da tarde. Em Brasília, centenas protestavam na Esplanada, manifestação que, transmitida, seria rapidamente reproduzida em todo o Brasil. A um mês da votação na Câmara, o impeachment parecia ganhar uma batalha decisiva.
Dez dias após assumir interinamente, Michel Temer viu o seu recém-nomeado ministro do Planejamento cair na escuta telefônica. E dessa vez, ao contrário do que acontecera dois meses antes, o conteúdo dos áudios revelava uma bomba: Romero Jucá, em conversa com Sérgio Machado, argumentava que era preciso “estancar a sangria” que as investigações da Operação Lava-Jato estavam provocando, e que em breve chegariam à alta cúpula do PMDB. Estava escancarado o caráter golpista por trás do impeachment. Mais cedo e mais grave do que todos esperavam.
O complô manchava um processo já frágil em si mesmo, considerando que a própria peça utilizada para a abertura do pedido de impeachment vinha sendo alvo de críticas de muitos juristas e advogados por não haver nela material suficiente que sustentasse a teoria de crime de responsabilidade por parte da presidente. E jazia ali, naquele momento, uma prova irrefutável de um plano para derrubá-la, envolvendo uma das figuras mais próximas do presidente interino, parte diretamente interessada. Evidentemente o episódio não foi abafado. Mas a falta de uma elucidação maior sobre o caso e sobre o que estava em jogo por parte da mídia nos relembrou que a indignação, como qualquer outra coisa, pode ser seletiva. Como se portará a grande mídia diante de um escândalo que, dessa vez, envolve diretamente o nome do presidente da república?
Texto redigido para a disciplina de Legislação e Ética em Jornalismo