Santa Maria, RS (ver mais >>)

Santa Maria, RS, Brazil

Luz do mundo

Foto: Markus Spiske /Pixabay

Foi numa tarde muito fria que ela nasceu. Melhor dito: foi numa tarde gélida que ela iluminou o semblante de seu pai, luz que ecoou. Não lembro quantas horas fazia que ela respirava, mas o suficiente para mudar nossas vidas. Fui visitá-la. Levei rosas. Rosas rosas em cabos longos sem espinho. Ela não sabia cheirar e ninguém soube o que fazer com o presente que foi colocado sobre uma bancada. Sentei-me ao seu lado e, sem cerimônia, ela me olhou com firmeza pela fresta daqueles olhos intensos. Parei, não havia nada tão importante quanto deixar que ela prendesse meu dedo indicador na sua mãozinha forte e tudo ficou pleno.
Fazem 15 anos e, desde então, o mundo não é o mesmo.
Ela nasceu antes do instagram e isso me deixou feliz, porque poderia ter inúmeras imagens dos seus primeiros olhares, todos parciais e sem fazer jus à sua existência. Ela nasceu antes dos likes ficarem furiosos no facebook e isso me deixou feliz, porque haveria menos likes do que ela mereceria, mesmo que nenhum deles expressasse a emoção profunda de estar em sua presença. No dia que que a seleção brasileira de futebol masculino tomou aquele 7 a 1 ela era uma guriazinha animada que se confundiu com os gols e replays infindáveis.
Fazem 15 anos e isso significa dizer que foi antes das passeatas do ‘passe livre’, antes da expressão ‘não é pelos 0,20 centavos’, antes das ruas tomadas pela diversidade de pessoas e opiniões a expressarem insatisfação com o andamento da política. Ela ainda era pequena nas manifestações que, em 2013, ocuparam as cidades grandes. Ainda não pegava ônibus no período das grandes greves que pararam o transporte público. Foram anos tão democráticos e os passeios pelas ruas, ao sol, eram mais livres. Não era difícil discutir a necessidade de avanço no campo dos direitos humanos naqueles dias. E mesmo das meninas pequenas, era esperado que refletissem sobre sua experiência no caminho de se tornarem mulheres. Isso era prazeroso para mim: saber que ela vivia um tempo em que os desafios da sua condição podiam ser discutidos abertamente por gurias atentas. Isso aquecia meu coração. Sentia que naquele espaço e tempo estávamos criando um tesouro, algo que comporia uma herança positiva. Faz pouco tempo, tão pouco tempo e passou rápido demais.
Todavia, não quero explicar essa mudança com poucas palavras, quero pensar alto com elas nesse espaço em comum do texto. A vida mudou. A violência aumentou e os violentadores parecem desavergonhados. E notícias tristes e acumulam nos feeds, em sites de jornais (nacionais e regionais) e elas nos contam sobre a crueldade que a violência contra as mulheres tem se tornado robusta, tão robusta como sem racionalidade. Por que matar mães, filhas, esposas, namoradas? Que pode um mundo sem mulheres? Existe mundo sem elas? Gustave Coubert, lá no século XIX, pintou a origem do mundo conhecido que só pode existir pelo parto que um corpo feminino é capaz de suportar.
Nesse tempo passado e presente, é na data do aniversário de minha sobrinha que meu coração se apequena ao pensar nos desafios pelos quais ela vai passar, em todos os perigos que ela vai enfrentar. Com qual sociedade presenteamos nossos amados e amadas? Uma sociedade que parece travar e retroceder em direção à agressividade ao invés de abraçar nossas diferenças e caminhar junto à promoção da vida? Tenho pensado sobre isso, sobre qual a herança que deixaremos para as luzes desse mundo: nossas sobrinhas e sobrinhos, nossos filhos e filhas, nossas crianças todas.
Toda a vida importa! (Ah, como a vida de todos os seres humanos deveria importar!)
Agora quero dizer uma vez e alto, com todas as letras: a vida das mulheres importa (pois são elas as que morrem nas mãos dos esposos, dos namorados e não o contrário)!  Mulheres, que desde pequenas, se agigantam e seguem, com infalível certeza, reinaugurando o mundo.
Esse é o meu presente para o seu futuro, para todos os futuros, para que haja futuro!

 

Paula Jardim Bolzan, historiadora e antropóloga, professora na UFN

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Foto: Markus Spiske /Pixabay

Foi numa tarde muito fria que ela nasceu. Melhor dito: foi numa tarde gélida que ela iluminou o semblante de seu pai, luz que ecoou. Não lembro quantas horas fazia que ela respirava, mas o suficiente para mudar nossas vidas. Fui visitá-la. Levei rosas. Rosas rosas em cabos longos sem espinho. Ela não sabia cheirar e ninguém soube o que fazer com o presente que foi colocado sobre uma bancada. Sentei-me ao seu lado e, sem cerimônia, ela me olhou com firmeza pela fresta daqueles olhos intensos. Parei, não havia nada tão importante quanto deixar que ela prendesse meu dedo indicador na sua mãozinha forte e tudo ficou pleno.
Fazem 15 anos e, desde então, o mundo não é o mesmo.
Ela nasceu antes do instagram e isso me deixou feliz, porque poderia ter inúmeras imagens dos seus primeiros olhares, todos parciais e sem fazer jus à sua existência. Ela nasceu antes dos likes ficarem furiosos no facebook e isso me deixou feliz, porque haveria menos likes do que ela mereceria, mesmo que nenhum deles expressasse a emoção profunda de estar em sua presença. No dia que que a seleção brasileira de futebol masculino tomou aquele 7 a 1 ela era uma guriazinha animada que se confundiu com os gols e replays infindáveis.
Fazem 15 anos e isso significa dizer que foi antes das passeatas do ‘passe livre’, antes da expressão ‘não é pelos 0,20 centavos’, antes das ruas tomadas pela diversidade de pessoas e opiniões a expressarem insatisfação com o andamento da política. Ela ainda era pequena nas manifestações que, em 2013, ocuparam as cidades grandes. Ainda não pegava ônibus no período das grandes greves que pararam o transporte público. Foram anos tão democráticos e os passeios pelas ruas, ao sol, eram mais livres. Não era difícil discutir a necessidade de avanço no campo dos direitos humanos naqueles dias. E mesmo das meninas pequenas, era esperado que refletissem sobre sua experiência no caminho de se tornarem mulheres. Isso era prazeroso para mim: saber que ela vivia um tempo em que os desafios da sua condição podiam ser discutidos abertamente por gurias atentas. Isso aquecia meu coração. Sentia que naquele espaço e tempo estávamos criando um tesouro, algo que comporia uma herança positiva. Faz pouco tempo, tão pouco tempo e passou rápido demais.
Todavia, não quero explicar essa mudança com poucas palavras, quero pensar alto com elas nesse espaço em comum do texto. A vida mudou. A violência aumentou e os violentadores parecem desavergonhados. E notícias tristes e acumulam nos feeds, em sites de jornais (nacionais e regionais) e elas nos contam sobre a crueldade que a violência contra as mulheres tem se tornado robusta, tão robusta como sem racionalidade. Por que matar mães, filhas, esposas, namoradas? Que pode um mundo sem mulheres? Existe mundo sem elas? Gustave Coubert, lá no século XIX, pintou a origem do mundo conhecido que só pode existir pelo parto que um corpo feminino é capaz de suportar.
Nesse tempo passado e presente, é na data do aniversário de minha sobrinha que meu coração se apequena ao pensar nos desafios pelos quais ela vai passar, em todos os perigos que ela vai enfrentar. Com qual sociedade presenteamos nossos amados e amadas? Uma sociedade que parece travar e retroceder em direção à agressividade ao invés de abraçar nossas diferenças e caminhar junto à promoção da vida? Tenho pensado sobre isso, sobre qual a herança que deixaremos para as luzes desse mundo: nossas sobrinhas e sobrinhos, nossos filhos e filhas, nossas crianças todas.
Toda a vida importa! (Ah, como a vida de todos os seres humanos deveria importar!)
Agora quero dizer uma vez e alto, com todas as letras: a vida das mulheres importa (pois são elas as que morrem nas mãos dos esposos, dos namorados e não o contrário)!  Mulheres, que desde pequenas, se agigantam e seguem, com infalível certeza, reinaugurando o mundo.
Esse é o meu presente para o seu futuro, para todos os futuros, para que haja futuro!

 

Paula Jardim Bolzan, historiadora e antropóloga, professora na UFN