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Santa Maria, RS, Brazil

Crônicas

O gelo e a janela embaçada

Ontem ao sair pela manhã, os campos e os telhados das casas estavam cobertos com uma fina camada branca de gelo. Dos bueiros das ruas saiam vapor, que pareciam os do chuveiro, quando a água está

O amor novato

A vista vinha de uma criança, com cerca de seus nove anos, que acabara de ganhar o seu primeiro animal de estimação. É satisfatório pensar que ali a felicidade estava empregada na forma mais pura e

Um Olhar Que Fala

Uma amizade das raras hoje em dia e que já dura vinte e três anos. Duas meninas que moraram na mesma rua, uma do lado da outra. É esse o início da minha história com ela

Um dente siso e uma lição

Sempre quando alguém fala sobre o dente do siso, mais conhecido como terceiro molar ou “o dente do juízo”, uma pergunta sempre surge no ar. Para quê ele serve? A resposta quase unânime das pessoas é

Não é só algo velho que queima

Patrimônio público e valor cultural: preservação e acesso A construção da cidade de Santa Maria fomentou a formação do principal meio ferroviário no interior do Estado. Por toda a sua história, a existência da Vila Belga

Aprender cerâmica hoje

Se tudo não estivesse perdido, o que você estaria fazendo hoje? O que você estaria escrevendo? Você faz o que faz por escolha ou por circunstância? Se não fosse aquele parafuso solto, a máquina de lavar

Luz do mundo

Foi numa tarde muito fria que ela nasceu. Melhor dito: foi numa tarde gélida que ela iluminou o semblante de seu pai, luz que ecoou. Não lembro quantas horas fazia que ela respirava, mas o suficiente

Belinha e a saudade

Quando eu tinha cinco anos ganhei de presente um cachorro. Seu nome era Hulk, em homenagem ao gigante verde da Marvel. Hulk era um vira lata da cor preta com uma mancha branca entre os olhos.

Sobrevivendo nas ruas

Vendedores ambulantes sempre fizeram parte das ruas dos centros urbanos, misturados entre os pedestres e os carros pelas praças, calçadas e vias das cidades. Em Santa Maria esta realidade não é diferente. No entanto, de dois

Ontem ao sair pela manhã, os campos e os telhados das casas estavam cobertos com uma fina camada branca de gelo. Dos bueiros das ruas saiam vapor, que pareciam os do chuveiro, quando a água está muito quente.

Ainda não havia nascido o sol, mas no céu estava começando a aparecer os primeiros sinais do amanhecer. Tinha poucas nuvens e a cor laranja misturado com um amarelo ouro dava um tom especial e brilhante ao despertar do dia. Essa mistura de cores com o gelo fino e branco, me remeteu a um tempo, lá pelos anos 80, onde essa mistura de cores me fez pensar nas sensações, sentimentos e lembranças da infância.

 Lembro que as manhãs eram assim: Acordava, e o sol que entrava pela janela que tinha uma cortina de renda, toda trabalhada com detalhes de pequenas rosas, refletia no chão da sala, formando um tapete florido de luz. Ali naquele sofá logo abaixo da janela, ficava olhando desenhos animados, coberta com uma colcha que chamávamos de acolchoado, era pesado e quente.

Nessa época o tempo parecia que passava mais lento! O cheiro de café passado irradiava por toda a casa. Era um cheiro de aconchego, quente e doce. O aroma de pão quentinho saído há pouco do forno, entrava pela fresta da porta da cozinha, que ficava ao lado da padaria, espalhava pela casa inteira. Esse era o cheiro da manhã!

Os vidros ficavam embaçados, era aconchegante lá dentro da casa. Ainda era cedo, os passarinhos cantavam lá fora. Quando já estavam terminando os desenhos animados, o sol entrava em toda a sala, aquecendo. Era hora de brincar com as bonecas no chão. Montava casinhas, quebra-cabeças e tantos outros.

O cheiro dos temperos exalava da cozinha para a sala, era minha mãe preparando o almoço. Mas os vidros da janela ainda estavam embaçados. Que coisa, está muito frio! O inverno chegou! E da janela embaçada do carro, só a lembrança ficou.

 

Texto: Maristela Santos

Crônica produzida durante o primeiro semestre de 2019 para a disciplina de Jornalismo II sob a orientação do professor Carlos Alberto Badke

A vista vinha de uma criança, com cerca de seus nove anos, que acabara de ganhar o seu primeiro animal de estimação. É satisfatório pensar que ali a felicidade estava empregada na forma mais pura e bonita. O protótipo de filhote, que nas minhas mãos, lambia com o sentimento de amor novato, dormia a quase todo o momento em meu colo, ou em alguma almofada que estava por perto.

De cor preta, vira-lata, porte pequeno, exibia o charme com o seu sorriso desajeitado toda vez que eu, ou alguém da família chegava em casa, por muitas vezes, a felicidade era tanta, ao ponto dela mesma realizar suas necessidades de forma involuntária. O amor crescia a passos pequenos, cada dia mais. 

O ano era 2014, recém tinha chegado da escola, logo perto do horário do almoço, o cansaço era visível no olhar, e a única coisa que eu mais gostaria, era do mesmo sorriso desajeitado, que na porta de casa, sempre me esperava. Abri a porta e logo a visão embaralhou-se, olhei para o sofá e logo de cara enxerguei a minha mãe, carregando no colo, o amor em forma de animal de estimação.

Os olhos desceram até onde se pode fazer o foco do que estava acontecendo, a pata esquerda tinha sido fraturada e semelhante a um balanço de pneu, balançava quase que sem parar. O som ao fundo, era misturado com gritos e ganidos intensos, a única solução era o veterinário mais próximo.

O carro naquele momento assemelhava-se a um cavalo que sofre chicotadas para acelerar os passos, a cirurgia já estava marcada por telefone, ao chegar lá, era só pedir a Deus e entregar nas mãos de quem poderia consertar aquela situação. Horas mais tarde a notícia do resultado vinha por telefone, era como um soco na boca do estômago, acabara não resistindo a anestesia, sofrendo um ataque do coração, quase que de imediato. 

A tristeza estava plantada em todos que conviviam com aquele animal. A questão é, será que era para ser a hora dela? 

Há alguns dias, estive relembrando esse momento junto da família, todos superados, mas com um toque de saudade dentro de cada coração. Eu nesse dia, tive que sair para o trabalho logo após o almoço. Ao sair da garagem dentro do carro, observei de longe um animal que vinha em minha direção. Como sempre minha mãe, senhora Divânia, deixa um pote de comida e água na porta de casa, era o mais provável de acontecer quando aquele animal chegasse mais perto.

O animal caminhava cada vez mais perto, mas algo estava errado, ele mancava como se algo o tivesse machucado, aproximando-se, consegui vê-lo, e a vontade de chorar veio segundos depois. O vira-lata assemelhava-se com o meu maior presente de anos atrás, e o problema que ele tinha, era o mesmo. Não sei dizer o que senti naquele momento, mas quando ele cruzou pelo carro, um olhar melancólico me hipnotizou, como se uma parte da minha infância fosse toda relembrada em questão de segundos, e o sentimento de saudade aflorar-se da forma mais bonita, um amor novato.

Texto: Kauan Costa

Crônica produzida durante o primeiro semestre de 2019 para a disciplina de Jornalismo II sob a orientação do professor Carlos Alberto Badke

Uma amizade das raras hoje em dia e que já dura vinte e três anos. Duas meninas que moraram na mesma rua, uma do lado da outra. É esse o início da minha história com ela que é companheira de uma vida. Subimos na mesma árvore, jogamos pedra na mesma casa, vimos os mesmos filmes e matamos muita aula juntas para comer batata frita escondidas durante a tarde.

Foto: Pixabay License

Quando você é criança, dançar na sala ao som de Latino – Festa no Apê com a sua melhor amiga pode ser uma das coisas mais divertidas a se fazer, e pra nós de fato era. Juntas, aprendemos a falar, a andar, a se defender e defender uma a outra. Medo? Só de a minha mãe chegar mais cedo do trabalho e nos pegar com o som no volume trinta em horário de aula. Foram muitos lanches, ‘’pousos’’, aventuras e histórias. ‘’Se você pedir, a minha mãe deixa’’, era a frase mais inteligente usada como uma estratégia para tentar dormir fora de casa.

É por isso e muito mais que eu sabia que o olhar dela era diferente dessa vez. Porque já brincamos muito de boneca, de casinha, pega-pega. Cantamos Zezé Di Camargo e Luciano em fita cassete, colecionamos CD’s da Wanessa Camargo e, anos mais tarde, comemos bolo chorando desilusões amorosas.

Para quem ainda tem uma amizade de infância pode ser fácil lembrar. sem precisar fazer qualquer esforço, de quando foram pequenos. E como – com sorte e vontade – é possível manter a amizade. Muitos obstáculos apareceram, entretanto lembranças são poderosas: brincadeiras, festa junina na escola, amigo secreto no fim do ano, famílias, o pote de margarina que virava panelinha, as duas aprendendo a gostar de coisas novas, a lembrança de nós duas no verão montando a piscina no fundo do pátio, na casa nova azul, ao lado da minha bisavó.

O tempo passou e a minha amiga de infância está me dando uma notícia com o olhar. O mesmo olhar que ela fazia quando brincava de boneca. Não tem mais fita cassete, não ouvimos mais Wanessa Camargo e faz tempo que não vamos a uma festa junina, mas nada disso importa. Porque o tempo é só e unicamente nosso. Ano a ano. Mudou o que fazemos, o que ouvimos e sobre o que falamos, mas ainda fazemos, ouvimos e brindamos juntas.

Amigas de infância são assim: o mundo muda, as relações mudam, mas tem um vínculo que só quem se conhece desde pequeno mantém. Para nós, uma intimidade de irmãs, pois acompanhei todas as histórias dela e ela, as minhas. Acompanhei o desabrochar de uma menina inocente com um chapeuzinho de festa na cabeça em todos os meus aniversários, mas que quando cresceu segurou a minha mão nos momentos em que conheci a maior dor do mundo. E agora ela está ali, diante de mim, um ar sagrado toma conta do lugar e ela nem precisou me explicar o olhar diferente. Somos amigas há vinte e tantos anos. Ela sentada no sofá da minha casa, às onze horas da noite de domingo e aí eu já soube: ela está grávida.

Crônica escrita pela acadêmica de Jornalismo Lilian Dias Streb, na disciplina de Jornalismo II, orientada pelo professor Carlos Alberto Badke.

Reimund Bertrams por Pixabay

Sempre quando alguém fala sobre o dente do siso, mais conhecido como terceiro molar ou “o dente do juízo”, uma pergunta sempre surge no ar. Para quê ele serve? A resposta quase unânime das pessoas é a de que ele não serve para nada.
Depois de passar uma noite infernal, sentindo uma dor excruciante, eu descobri que ele serve para algo: nos mostrar o quanto somos insignificantes.
Entendi o papel daquele dente que, para muitos, devido à nossa “evolução” como seres humanos mudamos fisicamente, ele ficou obsoleto, sem uma função. Mas o siso tem o papel de nos mostrar nosso real tamanho, nosso lugar no universo. Acreditamos ser maiores do que realmente somos. Temos que ter humildade e reconhecer o quanto somos frágeis. Sejamos humildes e gentis gentileza faz bem, apesar de ser algo raro nos dias de hoje.
Temos que olhar para o meio em que vivemos, não o mundo que criamos atrás de uma tela. Esse não é real, não podemos tocar, não podemos sentir, como a dor de um siso, que é real e incomoda.
Devemos nos incomodar sempre, com tudo, com a dor, nosso momento atual, a violência, fome, intolerância, e o que estamos nos tornando enquanto humanidade. Também com esse lugar onde pessoas tiram fotos transparecendo felicidade plena mas que, na verdade, por trás daquele momento, são vazias e infelizes.
Não é necessário mostrar as 24 horas do nosso dia. Melhor aproveitar aquele momento estando presente de corpo e alma, curtir cada segundo, guardar na memória, no coração e não em um ambiente virtual. Precisamos do toque, do cheiro, do beijo, precisamos de tudo isso, precisamos nos sentir vivos, não ser apenas um algoritmo ou um like.
Necessitamos sentir o frio na barriga que só um grande amor pode nos proporcionar. Bater na porta da casa de um amigo, para perguntar como ele está, olhando nos seus olhos. Tomar banho de chuva e caminhar na rua de pés descalços. Talvez, depois dessa lição, arranque esse dente, ou deixe aqui na minha boca para, às vezes, me causar incômodo, lembrando que estou vivo e posso sair caminhando por aí.

Por Fabian Lisboa, acadêmico de jornalismo na UFN. 

Patrimônio público e valor cultural: preservação e acesso

Vagão de Trem histórico – incêndio aconteceu na noite de domingo (14). Para delegado, trata-se de incêndio criminoso e Polícia aguarda resultados de perícia e busca testemunhas do caso. Fotos: Julia Trombini

A construção da cidade de Santa Maria fomentou a formação do principal meio ferroviário no interior do Estado. Por toda a sua história, a existência da Vila Belga causou impacto na vida econômica e social local, devido a sua expansão, à medida que a cidade também se desenvolveu. Mas, pensar nessa questão Férrea possibilita repensar diversos movimentos que marcaram a vida socioeconômica e cultural da cidade. A Vila Belga que é esse conjunto residencial construído inicialmente para funcionários de uma empresa, ao longo dos anos sofreu acréscimos, como demais habitações próximas. Ela ainda representa o período fundamental na história de Santa Maria, considerado um monumento digno de ser preservado e reconhecido pela população. Do mesmo modo, o conjunto onde está inserida,  conhecido como a “Mancha Ferroviária de Santa Maria”, e que engloba a Estação Férrea, as construções de apoio, as oficinas, o largo da estação até a Escola Manoel Ribas, entre outros pontos.

O início da construção da Vila Belga foi em 1901 e sobre sua conclusão e inauguração há divergências quanto à data. Já na década de 1980, houve uma diminuição significativa da atividade ferroviária e o tráfego de passageiros foi praticamente extinto. Por isso, a região em torno à estação entrou em decadência, processo que só começou a ser revertido nos últimos anos, com alguns projetos públicos para o local, algumas iniciativas privadas pontuais e o tombamento do sítio ferroviário, que incluiu a Vila Belga, no ano 2000.

O que restou do vagão incendiado.

Somente em 1982, o Município estabeleceu a lei de proteção do Patrimônio Histórico e Cultural do Município de Santa Maria(01) que em sequência, em 1996 ao tombamento provisório da vila(02) e ao projeto considera o complexo da Viação Férrea de Santa Maria como patrimônio histórico e cultural (03). Em 1997 é feito o tombamento municipal da Vila Belga(04) e, em setembro do mesmo ano, as casas são vendidas em leilão público pela Rede Ferroviária Federal S.A para os moradores que adquirem a maioria das casas. Em 1998, o Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Santa Maria entrega à prefeitura a nova regulamentação sobre a vila, especificando os atos legais e os ilegais a partir de então.

Porém, agora estamos em 2019. Essa semana todo mundo assistiu ao vídeo que mostra duas pessoas incendiando o vagão histórico, na Estação Férrea. E a Vila Belga ainda é um conjunto significativo de memória e que vai além disso, pois as transformações do espaço público revelam também a experiência urbana. Antigamente apenas ferroviários residiam no lugar devido às condições da estruturais da cidade, mas hoje é uma região que mostra essas relações mundanas sociais, pois as pessoas ainda residem na localidade. A Vila em questão trata da memória social e da preservação do patrimônio, que compõe-se de 80 unidades residenciais agrupadas duas a duas -um conjunto arquitetônico importante não apenas para a cidade, mas para a região como um todo.

É muito triste pensar que alguém (mesmo que seja um número pequeno de indivíduos) enxerga esse local apenas como um número da idade do tempo que passa, ou como um sinônimo de abandono (das pessoas, do interesse, do poder público) em si, e que deixa essa possibilidade de prioridade dos usos cotidianos e públicos dos espaços de patrimônio da cidade jogado, esquecendo que são justamente nesses espaços há uma conscientização de preservação, de valorização e de troca de conhecimentos e atrações culturais, e da democratização de acesso de todos os indivíduos que aqui residem, ou, então, daqueles que podem ocupar estes lugares.

(01) Lei Municipal nº 2.255 de 25 de maio de 1982. Dispõe sobre a proteção do Patrimônio Histórico e Cultural do Município de Santa Maria.

(02) PREFEITURA MUNICIPAL DE SANTA MARIA: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA. 1996. Processo de Tombamento da Vila Belga. Santa Maria.

(03) Lei Municipal nº 4.009 de novembro de 1996. Considera Patrimônio Histórico e Cultural Municipal o complexo da Viação Férrea de Santa Maria.

(04) Decreto Executivo nº 161 de 8 de agosto de 1997. Tombamento Municipal da Vila Belga.

Julia Trombini é jornalista escorpiana egressa da UFN. Fez parte da equipe do LabFem (Laboratório de Fotografia e Memória) como repórter fotográfica. Trabalhou também com diagramação, assessoria de imprensa e produção de conteúdo. Tem interesse em fotografia, audiovisual e temas de resistência política.

Se tudo não estivesse perdido, o que você estaria fazendo hoje? O que você estaria escrevendo? Você faz o que faz por escolha ou por circunstância?

Se não fosse aquele parafuso solto, a máquina de lavar que estragou de novo, o boleto atrasado, o bolo com gosto de queimado e tudo mais que pode dar errado. O que você estaria fazendo? Você abriria uma cadeira de praia no meio da praça só para ouvir histórias de amor – ou dor, já que é mais provável que ambos se encontrem. O que te impede de aprender cerâmica hoje?

Se não fosse a política, a economia, as relações exteriores, a guerra que todo mundo ignora e as perguntas sem respostas. Particularmente prefiro as perguntas. Talvez pela profissão, que vez ou outra serve de resposta. “Eu tenho formação em fazer perguntas”. Por isso, faço tantos questionamentos. Qualquer um pode dar as respostas, mas elas nunca vão servir para todos.

Se o que te impede é dinheiro, existe um livro que vai ser “a solução de todos os problemas financeiros”, você só precisa adquiri-lo por R$29,99. O impeditivo é tempo? Existem milhares de minutos em vídeo na internet dizendo que a solução é acordar às 5h todos os dias. Existe uma resposta e um método para alcançar qualquer coisa. Problema é quando você descobre que sempre vai haver uma nova coisa que impede. E uma nova pessoa ensinando o jeito certo de fazer qualquer coisa.

Não existe um jeito certo ou único de fazer as coisas. Não vai existir uma condição perfeita. Mas a chuva parou essa semana. Coloca a cadeira na praça e me conta uma história de dor – ou da roupa da semana passada que não secou.

 

Arcéli Ramos é jornalista egressa da UFN. Repórter da Agência Central Sul em 2015. Com pesquisas na área jornalismo literário e linguagem, hoje também estuda “Pesquisa de tendências”. É colaboradora na New Order, revista digital na plataforma Medium, e produz uma newsletter mensal

 

Foto: Markus Spiske /Pixabay

Foi numa tarde muito fria que ela nasceu. Melhor dito: foi numa tarde gélida que ela iluminou o semblante de seu pai, luz que ecoou. Não lembro quantas horas fazia que ela respirava, mas o suficiente para mudar nossas vidas. Fui visitá-la. Levei rosas. Rosas rosas em cabos longos sem espinho. Ela não sabia cheirar e ninguém soube o que fazer com o presente que foi colocado sobre uma bancada. Sentei-me ao seu lado e, sem cerimônia, ela me olhou com firmeza pela fresta daqueles olhos intensos. Parei, não havia nada tão importante quanto deixar que ela prendesse meu dedo indicador na sua mãozinha forte e tudo ficou pleno.
Fazem 15 anos e, desde então, o mundo não é o mesmo.
Ela nasceu antes do instagram e isso me deixou feliz, porque poderia ter inúmeras imagens dos seus primeiros olhares, todos parciais e sem fazer jus à sua existência. Ela nasceu antes dos likes ficarem furiosos no facebook e isso me deixou feliz, porque haveria menos likes do que ela mereceria, mesmo que nenhum deles expressasse a emoção profunda de estar em sua presença. No dia que que a seleção brasileira de futebol masculino tomou aquele 7 a 1 ela era uma guriazinha animada que se confundiu com os gols e replays infindáveis.
Fazem 15 anos e isso significa dizer que foi antes das passeatas do ‘passe livre’, antes da expressão ‘não é pelos 0,20 centavos’, antes das ruas tomadas pela diversidade de pessoas e opiniões a expressarem insatisfação com o andamento da política. Ela ainda era pequena nas manifestações que, em 2013, ocuparam as cidades grandes. Ainda não pegava ônibus no período das grandes greves que pararam o transporte público. Foram anos tão democráticos e os passeios pelas ruas, ao sol, eram mais livres. Não era difícil discutir a necessidade de avanço no campo dos direitos humanos naqueles dias. E mesmo das meninas pequenas, era esperado que refletissem sobre sua experiência no caminho de se tornarem mulheres. Isso era prazeroso para mim: saber que ela vivia um tempo em que os desafios da sua condição podiam ser discutidos abertamente por gurias atentas. Isso aquecia meu coração. Sentia que naquele espaço e tempo estávamos criando um tesouro, algo que comporia uma herança positiva. Faz pouco tempo, tão pouco tempo e passou rápido demais.
Todavia, não quero explicar essa mudança com poucas palavras, quero pensar alto com elas nesse espaço em comum do texto. A vida mudou. A violência aumentou e os violentadores parecem desavergonhados. E notícias tristes e acumulam nos feeds, em sites de jornais (nacionais e regionais) e elas nos contam sobre a crueldade que a violência contra as mulheres tem se tornado robusta, tão robusta como sem racionalidade. Por que matar mães, filhas, esposas, namoradas? Que pode um mundo sem mulheres? Existe mundo sem elas? Gustave Coubert, lá no século XIX, pintou a origem do mundo conhecido que só pode existir pelo parto que um corpo feminino é capaz de suportar.
Nesse tempo passado e presente, é na data do aniversário de minha sobrinha que meu coração se apequena ao pensar nos desafios pelos quais ela vai passar, em todos os perigos que ela vai enfrentar. Com qual sociedade presenteamos nossos amados e amadas? Uma sociedade que parece travar e retroceder em direção à agressividade ao invés de abraçar nossas diferenças e caminhar junto à promoção da vida? Tenho pensado sobre isso, sobre qual a herança que deixaremos para as luzes desse mundo: nossas sobrinhas e sobrinhos, nossos filhos e filhas, nossas crianças todas.
Toda a vida importa! (Ah, como a vida de todos os seres humanos deveria importar!)
Agora quero dizer uma vez e alto, com todas as letras: a vida das mulheres importa (pois são elas as que morrem nas mãos dos esposos, dos namorados e não o contrário)!  Mulheres, que desde pequenas, se agigantam e seguem, com infalível certeza, reinaugurando o mundo.
Esse é o meu presente para o seu futuro, para todos os futuros, para que haja futuro!

 

Paula Jardim Bolzan, historiadora e antropóloga, professora na UFN

Quando eu tinha cinco anos ganhei de presente um cachorro. Seu nome era Hulk, em homenagem ao gigante verde da Marvel. Hulk era um vira lata da cor preta com uma mancha branca entre os olhos. Foi meu fiel escudeiro durante muitos anos. Quando ele morreu, fiquei muito triste e prometi a mim mesmo que nunca mais ia ter cachorro.

Os anos passaram e ela apareceu. Chegou de mansinho e, sem esforço nenhum, arrebatou meu coração. Seu nome Belinha, uma lhasa apso, branca com o focinho despigmentado e um rosto extremamente expressivo para um cachorro. Minha filha de quatro patas, que quando a veterinária falou: “Se ela não for operada urgentemente, vai morrer”, cheguei à conclusão que não estava preparado para perdê-la.

Confesso que nunca me imaginei passando por essa situação, mas a vida tem das suas. Eu, agora, me via sentado na sala de espera do hospital veterinário, onde escrevi um pouco desse texto. Ao meu lado um cachorro hiperativo que, em pé, devia ter uns dois metros de altura, puxava a sua dona de um lado para o outro – uma senhora de um metro e cinquenta de altura e uns sessenta anos. À minha frente um gato preto dentro de um cesto de roupas improvisado como gaiola. Cercado de todos os tipos de cachorros, me olhava aterrorizado com aquela situação, tentando puxar na memória qual travessura tinha feito para a sua dona o estar  punindo daquele jeito. E eu ali, no meio daquele caos, pensando em como ia ser minha vida sem minha cadelinha dormindo todas as noites aos meus pés, ou me esperando chegar do trabalho.

Hoje, sentado aqui no sofá e terminando de escrever esse texto, que comecei  há um mês, com a Belinha deitada aos meus pés, lambendo uma pata, fico pensando: –  A vida é um grande filme feito de momentos editados por nós ao longo dos anos, e dos quais só nós vemos o resultado final. E um dos momentos que vou colocar no meu filme é esse: a imagem dela entre uma lambida e outra na pata, me olhando, sem imaginar no quanto é importante para mim.  Espero que a Belinha ainda fique comigo por muitos e muitos anos, que siga no seu sofá velho, amarelo e desbotado, latindo para o mundo.

PS: este texto foi escrito no dia 9 de maio de 2018. No dia 29 de maio do mesmo ano ela morreu. O sofá amarelo continua no mesmo lugar, junto com a saudade que nunca vai passar.

Fabian Lisboa é acadêmico de jornalismo da UFN

Cotidiano registrado na Praça Libertadores de América, em Arequipa (2019). Foto: Julia Trombini

Na América Latina, são os peruanos que lideram o índice da leitura de jornais, cerca de 71% da população, conforme estudo do Centro Regional para o Fomento do Livro na América Latina e no Caribe (CERLALC). Não que seja uma competição ou comparação, mas os números dizem muito sobre o lugar e como as pessoas buscam informações ou praticam o hábito da leitura. De acordo com a pesquisa, os argentinos são os que leem mais livros, seguidos pelos chilenos e brasileiros, que ficam em terceiro lugar – o que indica 4,96 livros por ano. Vale frisar que essa análise considera como leitor uma pessoa que leu alguma obra nos últimos 12 meses. E por isso conclui que 56% dos brasileiros são leitores. Mas e os outros 46%?

 

Julia Trombini é jornalista escorpiana egressa da UFN. Fez parte da equipe do LabFem (Laboratório de Fotografia e Memória) como repórter fotográfica. Trabalhou também com diagramação, assessoria de imprensa e produção de conteúdo. Tem interesse em fotografia, audiovisual e temas de resistência política.

 

Inácio Ferraz, 75 anos “Trabalho como engraxate deste guri. Nunca fiz ou consegui fazer outra coisa na vida…minha filha, pra ser doutor tem que ter estudo. E esse, eu nunca vi.”

Vendedores ambulantes sempre fizeram parte das ruas dos centros urbanos, misturados entre os pedestres e os carros pelas praças, calçadas e vias das cidades. Em Santa Maria esta realidade não é diferente. No entanto, de dois a três anos para cá, o número de pessoas que trabalham com o comércio informal tem aumentado consideravelmente. Esta situação se dá, principalmente, pelos altos índices de desemprego em todo o país, restando aqueles que foram demitidos ou que nunca foram absorvidos pelos trabalhos formais a sobrevivência por conta própria.

Alda Martins, 58 anos.
“Ahhh, eu trabalho como vendedora de doces nas ruas há mais de 40 anos. Sempre batalhei meu sustento dessa forma, minha irmã e eu. Mas o que se pode fazer, né? Eu preciso fazer o que faço. E quando vejo os fiscais da Prefeitura, mudo de calçada, vou pro outro lado, mas não dou chance de me tirarem minha mercadoria porque este é o meu sustento”.

Mas como é sobreviver sem um emprego com salário garantido no final do mês? Quais são as condições de trabalho para aqueles que vivem da venda ambulante ou de uma atividade rentável nas ruas da nossa cidade? Ao fotografar e entrevistar alguns trabalhadores de rua pode-se perceber que esta vida não é nada fácil. E como seria,
considerando as condições de trabalho destas pessoas?
Além das intempéries do tempo, da incerteza do lucro cotidiano e mensal, das pressões das responsabilidades e demandas familiares, das enfermidades do corpo, da impossibilidade de gerar lucro suficiente para um futuro que se torna incerto, há também a fiscalização da Prefeitura Municipal de Santa Maria sob todos estes trabalhadores da informalidade. E sobre esta questão em específico, o discurso dos profissionais informais foi unânime: “Não nos deixam trabalhar em paz nas ruas. Não nos deixam sobreviver onde queremos e achamos melhor para o nosso comércio e produtos!”.

Juliano Marafiga Cardoso, 38 anos “Olha moça, eu passei a minha vida inteira na rua. Fiz de tudo, sabe? Nós erámos em 16 irmãos e não tinha nem o que comer. Comi muito lixo pra me manter vivo. Até que consegui trabalhar na Prefeitura Municipal de Santa Maria, no governo do Schirmer e mudei um pouco o meu destino. Então melhorei de uns dezessete anos pra cá. Agora, quando mudou o prefeito, eu sai de lá e voltei pras ruas. Não é fácil, sabe? Mas tento viver dignamente. Só que preciso estar na rua. Não trancado no shopping popular, alí. Meu público não vai até lá comprar os meus panos de prato”.

João Rodrigues, 51 anos.
“Eu trabalho com venda de Cd´s e DVD´s há 15 anos. Não é uma vida muito fácil, não. Mas prefiro ser meu patrão”.

Diante de todas as dificuldades pelas quais passam estes trabalhadores, mas principalmente pelo cerceamento das condições de atuarem fora do Shopping Popular, localizado na Praça Saldanha Marinho, no centro da cidade, não há como não se colocar no lugar destes sujeitos e termos empatia por suas vidas sofridas. São pessoas que nunca
tiveram as mesmas chances que alguns têm para uma vida menos difícil ou melhor. São sujeitos que fazem o que podem para garantir sua dignidade. São seres humanos que tentam tão somente sobreviver nas ruas.

Rodrigo Pedroso da Silva, 42 anos.
“Eu quero apenas o suficiente pra minha vida”.

 

 

 

Texto e foto de Laura Fabrício, jornalista, fotógrafa e professora no curso de Jornalismo da UFN