Um trecho da canção Como Nossos Pais, escrita por Belchior e imortalizada na voz de Elis Regina, diz que qualquer canto é menor do que a vida de qualquer pessoa. A premissa é verdadeira. Não é tarefa fácil resumir a vida de alguém em uma música, livro ou filme; ainda mais quando o retratado é uma personalidade conhecida, com milhões de fãs e ainda está viva. Rocketman é uma cinebiografia dirigida por Dexter Fletcher e lançada em 2019, que se propõe a contar um pouco mais sobre a vida do cantor britânico Elton John.
O conflito que faz a trama avançar aparece logo na primeira cena: o protagonista, já na faixa dos 40 anos, com a carreira consagrada e a conta bancária recheada de milhões chega com uma roupa extravagante numa sessão de terapia em grupo. Lá ele se define como alcoólatra, viciado em cocaína, sexo e compras. Diz que precisa de ajuda para melhorar e a terapeuta pergunta como ele era quando criança. O que vemos a seguir é uma sucessão de idas e voltas no tempo, pelos seus relatos sobre a infância, quando ainda se chamava Reginald Dwight, o início da carreira, da fama e dos relacionamentos.
Confesso que, ao saber que Elton era um dos produtores do filme, fiquei preocupado. Eles têm um grande poder sobre a obra e o cantor de Candle in the Wind poderia vetar determinados temas e fatos para lapidar uma imagem mais limpa de si mesmo. Talvez esconder erros do passado a fim de atrair um público maior, que gere mais cifras na bilheteria. Não é o que acontece, pelo contrário. Em entrevistas, tanto Taron Egerton, seu intérprete na película, quanto Fletcher destacaram o quanto Elton lhes deu liberdade criativa para compor sua persona da forma que julgassem mais adequada.
Realidade e fantasia se misturam, mas não se confundem
Embora não creditado, foi Dexter Fletcher quem assumiu as gravações de outro filme sobre astros da música que foi lançado no ano passado, Bohemian Rhapsody. Ele entrou após a demissão do diretor Bryan Singer. Seu trabalho em Rocketman, ao contrário do filme que narra a trajetória da banda Queen, tem a ludicidade como um dos elementos mais marcantes. De fato, a persona de Elton John permite esse tipo de abordagem para representá-lo. O filme flerta muito com o surrealismo e tem um pé na psicologia. Cenas como a do camarim, em quem Elton confronta a si mesmo através de seu reflexo no espelho, ou dentro da piscina são um mergulho no inconsciente do personagem. Esses não são recursos novos no cinema, mas que nesta obra aparecem bem empregados e ajudam a ilustrar as inseguranças do cantor.
E se Rocketman procura refletir a mente do personagem, a escolha do roteirista Lee Hall em apresentar a trajetória o biografado em uma narrativa não linear foi um acerto. A medida em que o protagonista é questionado pela terapeuta sobre seu passado, voltamos e avançamos no tempo junto com as memórias do biografado. Afinal, nossa mente não é linear. Passamos por momentos importantes de sua vida, como seus primeiros dedilhares no piano, quando consegue uma bolsa para estudar piano na Royal Academy of Music, ou ainda quando assume sua homossexualidade para sua mãe. Vemos sua busca pela própria identidade e como ele deixa de ser o pequeno e tímido Reginald Dwight para se tornar o superastro Elton John. Outro ponto forte é que, apesar de elogiar o talento de Elton, dá o crédito merecido ao seu amigo Bernie Taupin.
Um ponto forte da obra são as elipses, transições que indicam a passagem de tempo no cinema. Com tantas idas e vindas na história, esse recurso é empregado de maneira criativa sempre conectada com as ideias centrais da direção e do roteiro: a ludicidade e a não linearidade da história. A edição eficiente de Chris Dickens ajuda a tornar essas mudanças de tempo e espaço mais naturais ao espectador.
Bons intérpretes e direção de arte dão vida a um mundo de fantasia
Três atores vivem Elton: Matthew Illesley na infância, Kit Connor na pré adolescência e Taron Egerton que o encarna dos 15 até os 40 anos. Todos se encaixam bem nas fases da vida do cantor, mas o grande destaque vai para Egerton, que conseguiu pegar trejeitos como a maneira de Elton sorrir. Entretanto, é bom destacar, ele não o imita. Cria sua própria versão do cantor, de uma maneira que não parece caricato. São os atores que interpretam todas as músicas do filme.
Como elenco de apoio temos Jamie Bell, lembrado como o protagonista de Billy Elliot (2001), cujo roteiro também foi escrito por Hall. Na cinebiografia, ele tem em uma performance sutil mas eficiente de Bernie, amigo e co-autor de várias músicas de Elton. Já Richard Madden, conhecido pelo papel de Robb Stark na série Game of Thrones, encarna o ambicioso produtor John Reid, com quem Elton teve um relacionamento. Bryce Dallas Howard vive Sheila, a mãe sincera e cruel do protagonista.
Uma das características mais conhecidas de Elton John é o vestuário extravagante. Logo, sua cinebiografia não poderia deixar esse aspecto de fora. Com plumas, paetês, sapatos exóticos e uma gama variada de óculos em formatos e estilos diferentes, o figurinista Julian Day recriou trajes icônicos usados pelo cantor em shows e videoclipes, mas também imprimiu na película criações suas, ao estilo do protagonista.
Um exemplo é a roupa da cena de Goodbye Yellow Brick Road, canção que faz alusão à famosa estrada de tijolos amarelos do clássico O Mágico de Oz (1939). Day não deixou escapar a referência. O traje que Egerton utiliza nesta cena faz referência ao filme estrelado por Judy Garland. O chapéu remete ao Espantalho, a camisa prateada ao Homem de Lata, o casaco de pele ao Leão Covarde e os sapatos são de rubi, como os que Dorothy usa.
A direção de arte consegue nos transportar com naturalidade para os diferentes períodos e momentos da vida de Elton. Algumas vezes identificamos a época em que a história se passa pelo figurino, corte de cabelo e objetos de cena. Aliás, a roupa com que Egerton entra na sessão de terapia reflete muito de seu estado de espírito naquele momento, com chifres, asas e uma gola imensa. Nesse momento, o protagonista vive uma de suas piores fases, repleta de demônios internos. À medida que vamos conhecendo mais sobre Elton, ele vai deixando elementos da roupa para trás, despindo-se de sua persona pública. É onde conseguimos desvendá-lo.
A obra contar a história do artista
Aqueles que forem assistir ao filme curiosos para ver os momentos e a maneira como as canções foram compostas poderão se decepcionar. Pois, à exceção de You Song, cujo ponto em que nasce é representado com fidelidade, o longa não se restringe a mostrar estes momentos. Rocketman se propõe a algo mais: usa a obra de Elton John como um meio de contar a história. Um acerto, pois suas músicas estão repletas de suas dores, amores e conflitos. São fragmentos de sua personalidade e ajudam a ressaltar um ser humano, repleto de fragilidades.
Vemos a música incorporada na diegese da narrativa, nas falas dos personagens. E esse uso das músicas de Elton não se aplica só ao protagonista. Em uma cena, vemos o pai, mãe e avó clamando pelo mesmo sentimento, na versão do filme para I Want Love. Essa escolha fez com que as letras e melodias ganhassem um papel maior, ligados de maneira intrínseca com a história e os personagens. Somos brindados ainda com a faixa inédita (I’m Gonna) Love Me Again, apresentada nos créditos finais e escrita por Bernie Taupin e Elton John, que a canta junto com Taron Egerton.
As músicas não são apresentadas em uma ordem cronológica de lançamento, o que pode incomodar os que conhecem muito sobre a trajetória de Elton. Ou ainda fazer com que alguns espectadores acreditem que as músicas foram lançadas em períodos diferentes. Algo perdoável porque cumpre o papel que se propõe: o de colocar a obra inserida dentro da vida do autor, ilustrando seus sentimentos e os daqueles que o cercam.
Rocketman é uma fantasia musical com um pé na realidade, onde Elton entra em suas lembranças, canta consigo mesmo e, no final, entende que precisa perdoar a todos mas o mais importante é reconciliar-se consigo mesmo para poder seguir em frente. O filme captura a essência de sua persona e mostra o homem por trás do ícone musical, com suas qualidades e defeitos. É preciso coragem para se assumir como alcoólatra, viciado em cocaína, sexo, além de expor uma tentativa de suicídio. O filme sofreu cortes em países como Rússia, numa tentativa de atenuar uso de drogas e eliminar referências a sua homossexualidade. Polêmicas a parte, o filme cujo DVD já está em pré-venda conta a história de um homem, que conquistou um dos postos mais altos de sua geração, mas que ao mesmo tempo não se sentia digno de amor. Vale conferir.
Nome: Rocketman.
Diretor: Dexter Fletcher.
Distribuidora: Paramount Pictures.
Ano: 2019.
Tempo: 2h.
País de origem: Reino Unido.
Bilheteria: 185,5 milhões USD.
Onde encontrar: Saraiva.