A Agência CentralSul de Notícias faz parte do Laboratório de Jornalismo Impresso e Online do curso de Jornalismo da Universidade Franciscana (UFN) em Santa Maria/RS (Brasil).
Nos últimos meses o termo “masculinidade” e suas discussões me chamaram atenção. Comecei a pesquisar sobre a temática e até participar de rodas de conversa sobre essa questão que atinge diversas esferas da sociedade: a masculinidade tóxica. E quando escrevo masculinidade tóxica, me refiro a ela em diferentes perspectivas: relacionamento, comportamento, emoções, sociabilidade, entre outras questões que ferem o individual e o coletivo.
Essa toxicidade começa logo cedo, na formação enquanto indivíduo homem, e nos obriga a ter um comportamento forte, viril e rígido, forçando a colocar de lado tudo que equivale ao feminino. A sociedade machista e masculinista nos exige a ser homem, mas não qualquer homem. Tem que ser “Homem com H maiúsculo”. Mas afinal, o que é ser homem? O que é um homem? Que homem é esse?
Passei a me questionar ainda mais sobre essas questões, depois de assistir o documentário O Silêncio dos Homens, uma iniciativa do site Papo de Homem, lançado recentemente. O filme aborda um ponto importante: o silêncio das emoções, que nos são retiradas logo na infância, com a famosa frase “homem não chora”. Além disso, nos mostra que esse silêncio é a raiz de diversos problemas, como a violência doméstica, o suicídio, alcoolismo, depressão e o vício em pornografia. Também apresenta que apenas três em cada 10 homens possuem o hábito de falar sobre seus medos e dúvidas com amigos.
De certa forma, soa até estranho dizer que os homens são silenciados, devido a nossa construção histórica, onde o homem sempre é colocado no topo da cadeia social. E me refiro justamente a maneira como os homens são criados, tendo que mostrar firmeza a todo instante. Não podemos agir com comportamentos ligados ao feminino, devemos ter um bom emprego, ser o líder da família, flertar com mulheres, não chorar, gostar de futebol e por aí vai. Essas são só algumas atitudes, ou melhor, obrigações do que parece ser uma “cartilha” para se tornar um homem. Ah! E se você falhar em alguma delas, pronto, logo você é rotulado de “viado”. E no ideário da masculinidade tóxica, “viado” não é homem.
Essa construção de ser masculino, se naturalizou com o patriarcado e a dominação com ele trazida. O homem sempre foi visto como símbolo de poder, logo, tudo que se associa ao feminino é colocado um ou mais degraus abaixo. Nós, homens, somos ensinados a buscar por uma hipermasculinidade, a fim de manter a dominação dos homens sobre as mulheres e, também, de homens sobre homens, causando danos para ambos. Dessa forma, o homem acaba fortalecendo a manutenção de seus privilégios, a partir do momento em que não se coloca aberto para refletir seus comportamentos.
Falar sobre masculinidade é perceber o quanto ela interfere no comportamento masculino e os seus impactos no coletivo. O movimento surge como forma de repensar o papel do homem na sociedade, de escutar, de mostrar suas vulnerabilidades e de entender que ser homem está além da supervalorização de características, sejam físicas ou culturais, associadas ao masculino. Por isso, faço um convite especialmente aos homens: assistam ao documentário O Silêncio do Homens e vamos refletir sobre nossas práticas masculinas.
Assista ao documentário “O Silêncio dos Homens”, com direção de Ian Leite e Luiza de Castro. O filme é fruto de um projeto que ouviu mais de 40.000 pessoas sobre questões de masculinidade.
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Deivid Pazatto é jornalista egresso da UFN, pós-graduando em Estudos de Gênero na UFSM e militante do movimento LGBTQ+. Foi repórter da Agência Central Sul e monitor do Laboratório de Produção Audiovisual (Laproa) durante a graduação
No início deste mês, o prefeito da cidade do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, determinou que a história em quadrinhos Vingadores: a cruzada das crianças fosse recolhida da Bienal do Livro. O motivo, segundo ele, é que a HQ de super-heróis, em que dois personagens homens se beijam, tem “conteúdo sexual para menores”. Além disso, o prefeito ordenou que qualquer obra com abordagem LGBTQ+ fosse embalada em plástico preto e avisada como “conteúdo impróprio”.
Mas a tentativa de censura de Crivella não deu muito certo. A resposta veio do público que, no dia seguinte, em menos de meia-hora, esgotou todos os exemplares da HQ na Bienal do Rio de Janeiro. Quando os fiscais, mandados pelo prefeito, chegaram ao festival literário, nenhum exemplar foi encontrado. Em nota, a Bienal afirmou que o espaço é democrático e reconhece todos os tipos de literatura.
O ato de censura viralizou na internet. A imagem da HQ, com os dois personagens se beijando, era encontrada facilmente nos feeds das redes sociais. O youtuber Felipe Neto comprou cerca de 14 mil livros com temáticas LGBTQ+ e distribuiu de graça na Bienal. As obras distribuídas por Neto estavam em embalagem preta, com o aviso: “este livro é impróprio para pessoas atrasadas, retrógradas e preconceituosas”, uma forma de ironizar o pedido de Crivella. Além disso, a imagem do beijo estampou a capa de um dos maiores jornais do país, a Folha de São Paulo.
Ao limitar o conhecimento e o acesso a diversidade, a atitude de Crivella demonstra a censura explicita. Desde a ditadura militar livros não são censurados dessa maneira. O prefeito simplesmente decidiu, que o beijo entre os dois personagens na HQ, era inapropriado para menores de idade e que o conteúdo era sexual. Mas desde quando beijo é pornografia? Um beijo no livro não vai influenciar uma criança, e sim mostrar outras relações afetivas, as quais uma grande massa conservadora tenta esconder.
Em minha existência, convivi e fui “influenciado” por uma sociedade heteronormativa, assistindo muito mais do que um beijo entre pessoas cis-heterossexuais na televisão, por exemplo. Quem não lembra da banheira do Gugu na década de 1990? Um programa na tardes de domingo, que seria “para a família”, exibia homens e mulheres seminus a procura de um sabonete na banheira. E vejam só, mesmo assistindo a banheira do Gugu, não sou ou “virei” heterossexual.
Crivella, ao ordenar os fiscais a retirarem livros da Bienal, nos mostra o quão difícil é ser LGBTQ+, principalmente no último ano. Nosso amor, ou o nosso beijo não machuca ninguém. Além disso, não se faz política com religião. As atitudes de Crivella em censurar o nosso beijo, estão ligadas a suas ideologias, carregadas de preconceito e com o pensamento de que ainda vivemos nos tempos em que a homossexualidade era proibida.
Censurar livros com temática LGBTQ+ é um perigo a nossa democracia e liberdade. O conservadorismo nos assombra, e as minorias são as primeiras vítimas. Vale lembrar, que esse tipo de censura contra a diversidade não é primeira vez. Em um caso mais recente, no ano de 2017, a exposição Queermuseu foi censurada em Porto Alegre, respondendo a críticas de grupos que viram nas obras “apologia a pedofilia, zoofilia e blasfêmia”.
Mas por que o nosso beijo incomoda? Ele incomoda a partir do momento em que ocupamos espaço. O conservadorismo não quer que tenhamos direitos. Para eles, nosso lugar é e sempre será no armário. Romper com padrões heteronormativos é afrontar uma estrutura baseada na opressão das minorias. Um beijo gay incomoda, pois desestabiliza uma lógica de dominação não consentida, que coloca a homossexualidade como imoral. O ato de censurar, é assegurar que as LGBTQ+ não tenham liberdade. É limitar o conhecimento.
Muito mais que a censura, o ato de Crivella é a LGBTfobia escancarada, ou melhor, mascarada como “preocupação com as crianças e a família”. A atitude só comprova um pensamento retrógrado, no qual coloca as LGBTQ+ como pessoas que não são dignas do direito ao afeto. O problema não é o beijo em si, mas o fato de serem dois homens. Por mais que o Supremo Tribunal Federal nos assegure algum tipo de direito, a política conservadora sempre acha uma brecha para ferir tudo que se refere a diversidade. A todo instante tentam nos intimidar.
A repercussão internacional desse caso, talvez seja o reflexo de um sensibilização para/com o combate a LGBTfobia. Receber o apoio de inúmeras pessoas, só nos fortalece e mostra que não estamos sozinhos. Se a tentativa é nos colocar no armário, sentimos muito, mas não vai ser dessa vez. Nunca mais. Não podemos deixar espaço para o preconceito se materializar. Nosso beijo vai continuar rompendo barreiras. Vamos ocupar os livros, a televisão, as ruas e qualquer espaço que for nosso por direito.
Amor não deve ser censurado!
Deivid Pazatto é jornalista egresso da UFN, pós-graduando em Estudos de Gênero na UFSM e militante do movimento LGBTQ+. Foi repórter da Agência Central Sul e monitor do Laboratório de Produção Audiovisual (Laproa) durante a graduação.
RuPaul’s Drag Race é um reality show estadunidense apresentado pela drag queen RuPaul. Desde 2009 na televisão, a cada edição um grupo de drag queens dos Estados Unidos é selecionado para a disputa. Na competição elas são submetidas a provas que testam desde suas habilidades com maquiagem e figurino, até o talento com a dança, atuação e canto. A vencedora recebe um prêmio em dinheiro e o título de “America’s Next Drag Superstar”. Desde a sua estreia, há 10 anos, RuPaul já elegeu 16 artistas que receberam a tão sonhada coroa do universo drag.
O programa já exibiu 11 temporadas regulares, além do RuPaul’s Drag Race All Stars, spin-off que dá uma segunda chance as ex-competidoras e teve a sua 5ª temporada gravada recentemente. A proposta de Drag Race se tornou um sucesso nos EUA e fora dele. Efeito disso é a ascensão da cultura drag, chegando em lugares nunca antes ocupados. Historicamente marginalizadas, hoje as drag queens conquistam cada vez mais espaço na mídia e versões do reality show despontam em outros países.
A responsável pelo programa, RuPaul, além de apresentadora, é modelo, cantora, compositora, atriz e escritora. A drag queen pode ser considerada umas das grandes responsáveis em popularizar a arte do tranformismo no mundo contemporâneo. Desde sua primeira aparição como modelo, ela já protagonizou grandes campanhas publicitárias, lançou livros, linhas de maquiagem, perfumes e até barra chocolate. Também foi a primeira drag a ter um programa na televisão, o The RuPaul Show, transmitido pela VH1 entre 1996 e 1998.
Em 2009, depois de uma pausa de mais de 10 anos como apresentadora, RuPaul volta a televisão. Com o reality show RuPaul’s Drag Race, ela leva aos telespectadores a arte drag, proporcionando um novo olhar para a cultura pop LGBTQ+. O programa também promoveu debates sobre questões de gênero, política, família e outros aspectos que perpassam a comunidade queer.
O sucesso do reality foi imediato nos Estados Unidos, alcançando altos índices de audiência. Nos últimos anos o programa ganhou algumas versões fora do país. A primeira foi em 2015, o The Swicht Drag Race, no Chile, que já contabiliza com duas edições. Em 2018 foi a vez da Tailândia com o Drag Race Thailand, que finalizou a segunda temporada esse ano. Em outubro, estreia a primeira temporada do Reino Unido, o RuPaul’s Drag Race UK, que será apresentado por RuPaul. Além desses países, o Canadá e a Austrália já confirmaram as suas versões, sem datas de estreias definidas..
Esses números retratam o quanto RuPaul expandiu a cultura drag queen nos últimos anos. Nas redes sociais, grandes fanbases são formadas. As drag queens, campeãs ou não de suas edições, são tratadas como verdadeiras celebridades. No Instagram, por exemplo, cerca de 25 ex-competidoras já ultrapassaram o número de 1 milhão de seguidores. Em 2018, o programa ganhou o Emmy de melhor programa de reality, uma das maiores premiações da televisão mundial.
No Brasil, a difusão de Drag Race pela internet, provocou um novo olhar para essa arte. Efeito disso são as inúmeras drag queens que despontaram na internet, televisão e na música após o sucesso do programa no país. Pabllo Vittar é um exemplo desse fenômeno. A drag contou em entrevista que se montou pela primeira vez após assistir o reality. O sucesso de Pabllo no país, desencadeou um novo nicho musical, o Drag Music. Gloria Groove, Aretuza Lovi e Lia Clark também são algumas drag queens cantoras que surgiram a partir desse efeito.
RuPaul’s Drag Race impactou e modificou a forma de enxergar essas artistas. Se hoje o Brasil é um dos maiores consumidores da arte drag, RuPaul é uma das grandes responsáveis por esse feito. O sucesso de Pabllo e de outras drag queens na música, por exemplo, é um reflexo da ascensão da cultura drag. A influência do reality pode até ser vista como um processo de globalização nesse meio. A partir do programa, a arte foi ressignificada, servindo como uma referência para a expressão de habilidades e comportamento. Drag queens “nascem” a partir de RuPaul’s Drag Race.
Esse efeito da ascensão drag no Brasil, pode ser visto em Santa Maria também. Ao fazer uma busca nas redes sociais, encontrei cerca de 50 perfis de drag queens que atuam por aqui. Comparado às grandes cidades e levando em conta o contexto de um município interiorano, Santa Maria pode ser considerada um reduto drag. Há alguns anos atrás, esse número era bem reduzido.
A celebração da arte drag queen no mundo, está apenas começando, na medida em que a cada dia o reality ganha novos fãs. RuPaul’s Drag Race já está há 10 anos nos Estados Unidos, e só agora ganhou versões em outros países. O programa serviu como um espaço para consolidar a arte drag por lá, expandindo para outros lugares aos poucos. Hoje a cultura drag alcançou prestígio inimaginável há algum tempo, para um comunidade que sempre foi marginalizada.
RuPaul’s Drag Race, assim como Pabllo Vittar aqui no Brasil, são símbolos da conquista e da visibilidade da cultura LGBTQ+ na mídia. Esse processo de consolidação da arte drag ainda é recente, mas desponta como a legitimação de um movimento. Ser drag queen está além da maquiagem e das roupas, mas é um ato político e de resistência frente a uma sociedade conservadora e heteronormativa.
Deivid Pazatto é jornalista egresso da UFN, pós-graduando em Estudos de Gênero na UFSM e militante do movimento LGBTQ+. Foi repórter da Agência Central Sul e monitor do Laboratório de Produção Audiovisual (Laproa) durante a graduação.
Se você não é um fã de sertanejo, certamente já deve ter ouvido ou conhece algum clássico desse estilo musical. Com o crescimento desse mercado nos últimos anos, surgiram diversas vertentes nesse meio. Do sertanejo universitário ao feminejo, os cantores e cantoras desse estilo dominam as paradas musicais do país. Mas você já ouviu falar do Pocnejo? A expressão desse novo estilo foi lançada pelo cantor Gabeu, há pouco mais de um mês, com a música “Amor rural”, escrita por ele e seu namorado, Well Bruno. Fugindo dos padrões heteronormativos do sertanejo, o artista de 21 anos canta sobre o amor não assumido entre dois homens.
Mas o que é o Pocnejo? A referência vem do termo “poc”, usado na comunidade LGBTQ+ para denominar gays. Muito mais que isso, o pocnejo lançado por Gabriel Felizardo, nome de batismo do cantor, surge para romper com o machismo na cultura da música sertaneja. O cantor lança uma nova perspectiva sobre abordagem dos relacionamentos nas canções desse estilo que é composto, em grande parte, por homens heterossexuais. Afinal, LGBTQ+ também sofrem por amor!
A música de Gabeu se assemelha muito ao sertanejo raiz cantado pelo seu pai, o Solimões, da dupla Rio Negro & Solimões. Com mais de 750 mil visualizações, o videoclipe de “Amor Rural” foi lançado há dois meses no YouTube. Com direito a brincos e unhas pintadas, Gabeu rompe com a estética masculina, quebrando padrões heteronormativos da música sertaneja. Além disso, o cantor proporciona um novo olhar sobre o amores homoafetivos: a dificuldades de dois homens viverem um amor no campo. Confere aí!
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A música sertaneja teve início na década de 1910 e trazia em suas letras a vida difícil no campo. Conhecida como música caipira, esse sertanejo raiz que explorava o cotidiano difícil de quem morava no interior, passou por diversas transições, mas sem nunca perder a sua essência. De lá pra cá, já tivemos o sertanejo romântico, com a influência do country; o sertanejo universitário, com elemento mais pop’s; e o feminejo, com a grande e forte presença das mulheres nesse estilo.
Com o passar do tempo, o sertanejo renovou a sua linguagem, mas ainda assim carrega em suas letras frases machista e homofóbicas. O pocnejo surge como uma possibilidade de expandir a discussão sobre as problemáticas que permeiam o sertanejo e, para além disso, discutir temas da comunidade LGBTQ+ e as dificuldades de quem vive no interior.
Acompanho o trabalho do Gabeu há algum tempo nas redes sociais, antes mesmo de “Amor Rural”. Por e-mail, ele me respondeu algumas perguntas:
Deivid: O sertanejo também é um espaço para as poc?
Gabeu: O sertanejo é um meio predominantemente hétero e masculino, e isso faz com que a gente não gere uma identificação com as figuras do sertanejo e com as narrativas apresentadas, sabe? Só agora que estamos vendo mulheres com uma força bem grande no dentro desse meio. Existe também uma ideia de que o homem deve ser bruto, rústico e sistemático que não dialoga com a vivência de pessoas LGBTQ+. Mas eu acredito que apresentando outros tipos de narrativas, outras histórias dentro da música sertaneja, ela possa sim ser um espaço para nós pocs.
D: Como você percebe a recepção do pocnejo? O mercado do sertanejo está aberto a essa nova proposta, já que esse é um meio heteronormativo?
G: Então, eu mesmo nunca esperei que o mercado sertanejo fosse se abrir para essa proposta, e não aconteceu de fato. Tudo bem que esse ainda é o meu primeiro trabalho, primeira música, vamos ver como as coisas se desenrolam ao longo da minha carreira. Mas eu também não tenho essa pretensão de adentrar esse mercado, a minha proposta é justamente dialogar com um público que não se enxerga no sertanejo tradicional, não acho que o meu público seja o mesmo, por exemplo, do meu pai. Acho que o negócio é fazer sertanejo fora do meio sertanejo, pra conseguir atingir outras pessoas.
D: Qual a sua visão em relação a músicas sertanejas (antigas e atuais) que trazem em suas letras temáticas machistas e homofóbicas?
G: Eu acho que existem tantas possibilidades pra um compositor, tantos caminhos a percorrer na criação de uma música, que eu realmente não vejo o porquê de se usar o preconceito pra isso, ainda mais hoje que existe a informação sabe? Antigamente não existia todas essas discussões a respeito de sexualidade e gênero, mas hoje elas estão aí, por isso eu acho muito mais grave uma música ser preconceituosa hoje do que há 50 anos atrás.
D: A falta de cantores e cantoras assumidamente LGBTQ+ no sertanejo é um fator para o distanciamento entre a comunidade LGBTQ+ e o estilo musical? Por quê?
G: Com certeza, como eu disse anteriormente, nós LGBTQ+ não nos enxergamos nas figuras do sertanejo, nos grandes nomes de duplas (que eu adoro inclusive), não gera identificação. Pensando nisso eu comecei a me questionar se a comunidade não gosta de sertanejo simplesmente porque não gosta mesmo, por causa do ritmo, dos timbres, ou se o buraco era mais em baixo, e é. Essa ausência de cantores e cantoras assumidos, que falam sobre sexualidade e gênero dentro do sertanejo faz com que muitos de nós pensemos coisas do tipo “não é pra mim“, “sertanejo é coisa de hétero“, “gay não ouve sertanejo”, entre outros. Eu percebo que com esse boom das mulheres no sertanejo o público LGBTQ+ cresceu, porque é comum também que a gente se identifique mais com essas mulheres que passam uma imagem de mulher forte e independente.
D: Com um trecho da sua música, lhe pergunto: por quanto tempo mais vamos amar no escuro?
G: Eu queria dizer que por pouco tempo, mas nós temos muitos passos para dar ainda, muitas coisas pra conquistar, tanto no âmbito pessoal quanto no político. No pessoal porque cada um tem as suas questões internas, cada um tem uma família diferente, vive em um contexto diferente e almeja coisas diferentes. No político, porque eu acredito que não só no sertanejo, não só na música, não só nas artes, nós precisamos de representatividade LGBTQ+ em todos os lugares, inclusive dentro da política, pra que nós tenhamos pessoas que realmente entendam todas as nossas questões e pra que precisemos cada vez menos amar no escuro.
Antes mesmo de Gabeu, em fevereiro deste ano, a drag queen Reddy Allor lançou música “Tira o Olho”. Com uma proposta que se assemelha ao sertanejo universitário, a artista denominou o som como dragnejo. Assim como Gabeu, Reddy abre espaço para a comunidade LGBTQ+ no meio sertanejo. Esse sertanejo queer surge com a extrema necessidade de, mais uma vez, rompermos com as dicotomias de gênero e explorarmos os diferentes campos das artes.
Seja o pocnejo ou o dragnejo, o importante é ocuparmos esses espaços. A cultura LGBTQ+ está muito atrelada ao pop e as grandes divas e, por diversas vezes, esquecemos que existem LGBTQ+ em outros lugares e vivendo diferentes realidades. Precisamos apoiar essas novas vozes e através delas resistirmos. Os heterossexuais também precisam ouvir sobre amores LGBTQ+. Vamos cantar o nosso amor rural, urbano ou em qualquer lugar.
Deivid Pazatto é jornalista egresso da UFN. Foi repórter da Agência Central Sul e monitor do Laboratório de Produção Audiovisual (Laproa) durante a graduação. É militante do movimento LGBTQ+, aborda questões pertinentes sobre essa temática em seus textos.
Nova York, 28 de junho de 1969. Como de costume, durante a madrugada, policiais invadiram o bar Stonewall Inn. Nessa noite, gays, lésbicas, transexuais e drag queens, decidiram não tolerar mais o abuso durante as batidas policiais, que eram rotina à época. Na década de 1960 a homossexualidade era considerada doença e o sexo homossexual era ilegal no Estados Unidos. Os LGBT+ viviam escondidos em bares clandestinos. O grito em Stonewall deu início à luta pelos direitos de uma comunidade que, até então, era reprimida e presa sem razão.
Diante da forte represália naquela noite, a partir de uma reação inesperada, os policiais foram acuados pelos frequentadores do bar. Durante vários dias de confronto e violência, carros foram incendiados e muitas pessoas agredidas. O ato recebeu o apoio da população da cidade, que se uniu para defender uma comunidade que era obrigada a viver escondida, marcando uma virada do movimento LGBT+ nos Estados Unidos e no mundo. Um ano após a data, cerca de 10 mil pessoas se reuniram em uma marcha e deram início às passeatas em favor dos direitos LGBT+.
No Brasil, o movimento LGBT+ se estabelece no início da década de 1970, quando alguns grupos começaram a se mobilizar. Entre eles o SOMOS e o Jornal Lampião da Esquina, este último, um importante veículo de comunicação que facilitou a articulação dos movimentos sociais em meio à ditadura. Mesmo com um grupo estabelecido, muitos LGBT+ foram perseguidos e presos durante o governo militar. Conhecida como uma prática de “higienização”, segundo relatório da Comissão Nacional da Verdade, estima-se que a polícia prendeu 1,5 mil pessoas somente na cidade de São Paulo. Além disso, policiais torturaram e espancaram sobretudo as travestis.
Com o fim da ditadura na década de 1980, o movimento LGBT+ se enfraquece com a chegada da AIDS. Essa fase é marcada pelos inúmeros casos da doença, que foram diretamente relacionadas com o comportamento sexual de homossexuais, sendo apelida de “câncer gay” ou “peste gay”. A partir de uma desmoralização pública, o movimento que prezava pela liberdade sexual é posto em xeque, então é necessária uma reestruturação da comunidade LGBT+, que se voltou para a luta no combate à AIDS. Sendo assim, outros grupos se estabeleceram, como o Grupo Gay da Bahia, a mais antiga associação em atividade na luta pelos direitos homossexuais.
No fim da década de 1980, junto do combate a AIDS, o movimento LGBT+ começa a crescer. Mas é nos 1990 que começamos a ocupar espaços. Já no início da década, no mês de maio, a Organização Mundial da Saúde (OMS) retirou a homossexualidade da sua lista de doença. Com o reconhecimento, os grupos de militância começam a se estabelecer de forma plural e em constante ascensão. Nessa década também começam a se organizar as primeiras paradas do orgulho LGBT+. Hoje, o Brasil tem a maior parada LGBT+ do mundo, reunindo milhões de pessoas na cidade de São Paulo. Em 2019, cerca de três milhões de pessoas estiveram presentes na Avenida Paulista, segundo a organização.
Nossas conquistas
Nos últimos anos, a comunidade LGBT+ garantiu muitos direitos, entre eles o reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo, aprovada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2011. Essa ação concedeu aos parceiros direitos e deveres semelhantes ao casamento, como à adoção. Já em 2013, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou uma resolução que obriga todos os cartórios do país a celebrar casamentos homoafetivos.
No que confere aos direitos da população transexual, desde 2008, o Sistema Único de Saúde (SUS) oferece tratamentos hormonais e realiza procedimentos cirúrgicos, incluindo a chamada de “redesignação sexual” para mulheres trans. Nesta semana, o mesmo procedimento foi autorizado pelo Ministério da Saúde aos homens trans. O SUS também reconhece a utilização do nome social em seus formulários desde 2009. Em 2011, o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), também passou a utilizar o nome social em suas provas. Já em 2018, todos os servidores públicos transexuais passaram a ter seu nome social reconhecido.
Em 2018, o STF reconheceu que transgêneros podem alterar o nome e o gênero no registro civil, mesmo sem a realização da cirurgia de redesignação sexual para comprovar sua identidade. Antes disso, a alteração só era feita diante da comprovação via atestados médicos. Com a medida, transexuais podem se dirigir aos cartórios para solicitar a mudança apenas por autodeclaração. Mesmo com alguns avanços para a população trans, a transexualidade ainda não saiu da lista de doenças da OMS. Apesar de não ser mais considerada uma doença mental, passou a ser considerada uma “incongruência de gênero”.
A conquista mais recente da população LGBT+ no Brasil foi a criminalização da LGBTfobia. No dia 13 deste mês, o STF aprovou a ação que pune crimes de ódio contra a população LGBT+, equiparando as penas por ofensas às previstas na lei contra racismo. Uma das pautas mais antigas e necessárias da comunidade foi aprovada por oito do 11 ministros.
Os parágrafos acima retratam um pouco do que é a luta dos LGBT+ desde a revolta de Stonewall. Em 50 anos de história, o movimento passou por diversas fases que nos permitiram refletir a força da comunidade que, mesmo com dificuldade, continua na luta em busca de igualdade, respeito e liberdade. Muitos direitos foram conquistados, mas ainda é pouco frente à violência que a comunidade LGBT+ está submetida diariamente.
Nesses 50 anos, devemos muito da nossa luta à Stonewall. Aquele 28 de julho foi um grito de basta frente às atrocidades que a comunidade LGBT+ vivia. Mas ainda não descansamos. Vivemos no país que mais mata LGBT+ no mundo. O país que mais consome filme adulto com travestis e transexuais, também é o que mais extermina. Que histórias como a de Dandara dos Santos não se repitam.
E mesmo diante que um governo abertamente LGBTfóbico, conquistamos a criminalização da LGBTfobia. Esse é só um sinal de que o movimento LGBT+ resiste e ninguém tomba . Se há 50 anos lutamos para garantir nossos direitos, hoje a nossa luta é para não perdê-los.
Deivid Pazatto é jornalista egresso da UFN. Foi repórter da Agência Central Sul e monitor do Laboratório de Produção Audiovisual (Laproa) durante a graduação. É militante do movimento LGBTQ+, aborda questões pertinentes sobre essa temática em seus textos.
Nos últimos dias, a comunidade LGBT passou por duas datas importantes no que confere o momento de reivindicarmos nossos direitos. Em 15 de maio, o dia do orgulho de ser travesti e transexual; já no dia 17, o dia internacional contra a LGTBfobia. Esse texto poderia ser uma reflexão sobre a importância dessas datas para a visibilidade da comunidade LGBT, mas, neste mês, outro assunto que envolve visibilidade e preconceito ganhou destaque: o ginasta olímpico Diego Hypólito se declarou homossexual. Mas o que tem demais nisso? O relato de alguém que sofreu homofobia no esporte e o impacto do preconceito na vida de um atleta.
Em uma entrevista especial para o site UOL, no início de maio, Hypólito contou sobre o seu processo de descoberta e aceitação como homossexual, acompanhado pelo medo e a culpa. O preconceito no esporte e das grandes marcas patrocinadoras levaram o ginasta a esconder e não aceitar a sua sexualidade por anos. “Eu tinha certeza que se um dia eu saísse do armário publicamente, perderia patrocínios e minha carreira seria prejudicada”, desabafa.
Após a declaração do ginasta, diversos sites de notícias publicaram trechos de sua entrevista. Instantaneamente, inúmeros comentários surgiram nas publicações. Entre apoio e admiração, um comentário, ou melhor, vários comentários que diziam: “ele foi o último a saber”, me chamaram a atenção. Durante anos, o ginasta foi muito questionado a respeito de sua sexualidade, e algumas pessoas até já “desconfiavam” ou “sabiam” que ele era/é homossexual. Entretanto, ele não foi o último a saber da sua sexualidade, mas as pessoas foram às últimas a entenderem que ele é mais uma vítima de homofobia no esporte.
O preconceito no esporte é algo real e precisa ser combatido. O futebol é o exemplo mais forte do quanto se perpetua discriminação nesses espaços. O machismo e a LGBTfobia são muito presentes. Quem nunca ouviu, quando criança, que futebol era coisa de menino? Ou quando um juiz e jogadores são xingados de “viado” pela torcida? Em fevereiro deste ano, o jogador do Vasco, Felipe Bastos, usou palavrashomofóbicas para hostilizar jogadores e a torcida do Fluminense, com quem disputou a final da Taça Guanabara.
Casos como esses ganham maior destaque no futebol, pela forte influência que esse esporte tem no Brasil. O preconceito se perpetua em todas as modalidades, como no caso de Diego Hypólito. O esporte, de um modo geral, costuma ser hostil com a comunidade LGBT, e parte disso está enraizado em nossa cultura. Prova disso é utilizar termos pejorativos, de cunho LGBTfóbic, para agredir outra pessoa, como no exemplo já citado.
Enquanto o futebol é considerado “coisa de homem”, a ginástica é “coisa de mulher”. Esse reflexo de uma cultura machista, opressora e LGBTfóbica, atrapalha o crescimento do esporte no país. Muitos pais de meninos têm receio que seus filhos se arrisquem em acrobacias na ginástica, segundo uma entrevista do técnico Marcos Goto para o site UOL.
“Se meu filho fizer ginástica ele vai virar mulher”, relata. Em 2012, Goto era técnico do atleta Arthur Zanetti. Uma das apostas das olimpíadas daquele ano, Zanetti teve sua carreira desmoralizada após um vídeo íntimo vazado, com ocorreu com o também atleta Sérgio Sasaki. Exposto ao lado de outro homem, todo o seu trabalho foi colocado em xeque.
O preconceito que fez Hypólito esconder sua sexualidade por anos, e julgou o talento de Zanetti, também colocou em questionamento a participação de Tiffany Abreu como jogadora de vôlei. Em um caso recente, Tiffany, a primeira mulher trans a participar da Liga Feminina de Vôlei, foi vítima de transfobia. Durante um jogo, em março deste ano, após marcar um ponto para o seu time, o técnico do time do adversário, Bernardinho, foi flagrado pela transmissão da TV dizendo: “Um homem é f**da”. O insulto transfóbico não ficou restrito apenas a Bernardinho, mas também partiu de outras jogadoras. O desempenho de Tiffany foi criticado devido a fatores biológicos da atleta.
Além do preconceito, o anonimato da sexualidade no esporte abre uma brecha para casos de abuso. Em sua entrevista, Hypólito também relatou de abusos sofridos durante trotes por outros ginastas. “Já me deixaram pelado, junto com outros dois atletas, para escrever no nosso peito a frase “Eu”, “sou”, “gay”. Uma palavra em cada um para nos humilhar”. Em 2016, o técnico da seleção brasileira de ginástica, Fernando de Carvalho Lopes, foi acusado de abusar sexualmente de cerca de 40 atletas. Na ocasião, Hypólito prestou depoimento e relatou o bullying sofrido pela equipe do treinador que permitia ataques de cunho sexual.
O fato de Hypólito revelar sua sexualidade, apesar de não ter obrigação, é de extrema importância para a visibilidade e representatividade LGBT no meio esportivo. Ao lado do ginasta e de Tiffany, outros atletas se unem para formar uma rede na luta contra o preconceito. Ian Matos (saltos ornamentais), Marta (futebol) , Rafaela Silva (judô), Larissa França (vôlei), Mayssa Pessoa (handebol) entre outros, mostram o talento e o orgulho da comunidade LGBT e servem de inspiração para novos atletas. Precisamos expor os casos de LGBTfobia no esporte quantas vezes forem necessárias para que isso acabe. Basta!
No mês contra a LGBTfobia, mais uma data histórica…
Ontem, 23, o Supremo Tribunal Federal (STF) formou maioria para criminalizar a LGBTfobia no Brasil. Até agora, seis, dos 11 ministros, votaram a favor de enquadrar o discurso de ódio e a violência contra a população LGBT na Lei do Racismo (Lei 7.716/89). As duas ações em votação tratam da omissão do Congresso, que há 18 anos discute o tema, mas não define uma lei para punir os agressores.
O debate que ocorre no STF desde fevereiro, já tinha os votos favoráveis dos ministros Celso de Mello, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes. Na tarde de ontem, a ministra Rosa Weber e o ministro Luiz Fux votaram a favor da criminalização. O julgamento foi suspenso e será retomado no dia 5 de junho para o voto dos outros cinco ministros. Essa é a terceira vez que a votação é suspensa, desde 13 de fevereiro, data em que a sessão foi iniciada.
Em 18 anos de omissão do Congresso para criminalizar a LGBTfobia, de 2000 a 2018, 4.151 LGBT foram assassinados no país, segundo dados do Grupo Gay da Bahia. Assim que o julgamento for concluído, qualquer tipo de agressão ou discriminação contra lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros será crime no Brasil. A decisão do STF é uma grande vitória para uma população que vive em meio a governo conservador presidido por um LGBTfóbico.
Ver também: Não podemos esquecer de criminalizar a LGBTfobia
Deivid Pazatto é jornalista egresso da UFN. Foi repórter da Agência Central Sul e monitor do Laboratório de Produção Audiovisual (Laproa) durante a graduação. É militante do movimento LGBTQ+, aborda questões pertinentes sobre essa temática em seus textos.
O título desse texto poderia ser outro, direcionado apenas aos pais, mas sabemos que existem diferentes formações familiares. Por família, entende-se todo e qualquer grupo que conviva entre si sob um mesmo teto. Para além disso, a família é uma instituição que educa, orienta e influencia o comportamento social de cada indivíduo. Esse texto não aborda estruturas familiares, mas a importância do apoio familiar na vida de um LGBT+ e os reflexos de quando esses filhos são expulsos de casa.
O processo de descoberta de um LGBT+ é muito individual, mas um ponto em comum, é que desde pequenos a sociedade nos diz que pertencer a alguma dessas “letras” é errado. Se perceber LGBT+ é o primeiro passo para infinitas lutas que travamos dentro de nós. Um dos primeiros embates é o momento de “revelar” a sexualidade e/ou identidade de gênero à família. O medo da não aceitação aparece, cobranças são feitas e tudo parece desmoronar. Enquanto a vida nos ensina a sobreviver, a sociedade não faz o mesmo.
Medo. Essa é uma palavra muito presente na vida de um LGBT+. A rejeição familiar é uma das problemáticas que mais geram transtornos psicológicos nessas pessoas. Prova disso é o alto índice de suicídio na população LGBT+. Um estudo realizado na Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, com jovens entre 13 e 17 anos, concluiu que adolescentes lésbicas, gays e bissexuais são cinco vezes mais propensos a tentar suicídio do que heterossexuais. No Brasil, em 2018, o Grupo Gay da Bahia (GGB) registrou 100 suicídios de LGBT+. Os números foram coletados através de uma pesquisa feita pelo GGB, ainda assim, faltam dados oficiais para entendermos melhor a profundidade do problema.
Além de transtornos psicológicos, expulsar um filho LGBT+ de casa, muitas vezes, os coloca no mundo das drogas, na prostituição, na rua, provocando uma fragilidade gigante frente a uma sociedade que aponta o dedo a todo instante. Mas destaco os problemas emocionais, por ter sofrido isso durante a adolescência. O receio da rejeição familiar me fez, muitas vezes, rezar para que eu não fosse gay. Entre meus 12 e 15 anos, repetia essa conversa todas as noites antes de dormir. “Não quero que meu pais tenham vergonha de mim”. Meu maior medo era ser expulso de casa e não ter para onde ir; que as pessoas que eu mais amo deixassem de me amar.
Meus pais não me expulsaram de casa. Meu receio foi em vão até os 18 anos, quando eles souberam da minha sexualidade. Conto essa experiência, para conseguir expor um pouco do que é o medo da rejeição familiar enfrentado por um LGBT+. Minha história se torna pequena comparada a inúmeros casos de rejeição familiar que realmente acontecem. Mas ela poderia ter um final diferente, infeliz, devido aos problemas emocionais que me acompanharam no período da adolescência.
Esse medo não é só meu, mas também de outros LGBT+: receio da reação dos pais ao saberem que a filha é lésbica; incerteza sobre o que os avós pensarão sobre a bissexualidade de sua neta; medo que o pai nunca mais fale com o filho ao descobrir que ele é gay. Enquanto famílias rejeitam e expulsam seus filhos, outras criam uma rede de apoio. Há 10 anos, a ONG Mães Pela Diversidade, conscientiza pais e mães sobre a importância do apoio da família para com seus filhos. Presente em 23 estados brasileiros e formada por mães e pais de LGBT+, o grupo alerta sobre a LGBTfobia: “Meu filho não será estatística”.
A família é o nosso primeiro vínculo afetivo. Algumas pessoas dizem que é nosso “porto seguro”, mas o que fazer quando esse porto não está aberto para nós? Para onde vamos correr depois de uma tempestade provocada pela sociedade? A família não pode intimidar. Além de educar, ela tem o dever de acolher e dar amor. A sociedade já é muito cruel com a gente. Não precisamos de mais um mar tempestuoso que nos expulsa para fora dele.
Famílias, não expulsem seus filhos LGBT+ de casa. Ame-nos e nos respeite do jeito que somos. Não crie expectativas e nem projete um futuro para seus filhos. Tenham orgulho. Nós só queremos o seu amor.
Deivid Pazatto é jornalista egresso da UFN. Foi repórter da Agência Central Sul e monitor do Laboratório de Produção Audiovisual (Laproa) durante a graduação. É militante do movimento LGBTQ+, aborda questões pertinentes sobre essa temática em seus textos.
Observe estes dados:
2014: 329;
2015: 319;
2016: 343;
2017: 445;
2018: 420.
Esses são os números, segundo o Grupo Gay da Bahia (GGB), de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais assassinados nos últimos cinco anos no Brasil. 1.856 vítimas de uma violência estrutural. Em 2018, a cada 20 horas, um LGBT+ foi morto de forma brutal no país. Em um contexto de ascensão de um governo conservador, que estimula a violência, os números de agressões contra esse grupo vulnerável não dão indícios de que estejam próximo do fim.
Há pouco mais de um mês, o Supremo Tribunal Federal (STF) deu início ao julgamento da criminalização da LGBTfobia, uma reivindicação histórica do movimento LGBT+ no país. As duas ações julgadas, uma proposta pela Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT) e a outra pelo Partido Popular Socialista (PPS), pautam a omissão do Legislativo no que confere a crimes relacionados contra a população LGBT+.
A primeira sessão iniciada no dia 13 de fevereiro, foi retomada pela última vez no dia 21 de fevereiro. Durante quatro sessões, dos 11 ministros, apenas quatro declararam seus votos favoráveis à criminalização da LGBTfobia, que equipara a violência e a discriminação contra LGBTs ao crime de racismo. Mesmo com duas ações enfatizando a omissão do Congresso, novamente a votação no STF foi suspensa, sem uma data prevista para o retorno do julgamento. Nesse caso, não só o Legislativo foi e é omisso, mas também a Corte, por suspender uma pauta urgente da comunidade LGBT+, já que estava em debate um tema que retrata a realidade do país que mais assassina essa população no mundo. A omissão do Legislativo em levar pautas LGBTs adiante tem uma grande contribuição de forças conservadoras. Com grande empenho, a bancada fundamentalista religiosa, que só cresce a cada eleição, é uma das maiores barreiras para que a violência contra LGBTs se torne crime e que ações afirmativas em prol dessa população sigam adiante para votações.
A pauta de criminalização da LGBTfobia se torna tão polêmica devido ao entrave entre conservadores e defensores dos direitos humanos. De um lado, a grande mobilização de setores conservadores, sobretudo religiosos, defendem que a criminalização da LGBTfobia implicaria na restrição da liberdade religiosa – disfarçada, muitas vezes, de discurso de ódio e intolerância. Do outro, grupos de ativistas e a própria comunidade LGBT+, que reivindica uma pauta antiga em favor da liberdade e da vida.
Criminalizar a LGBTfobia se torna urgente diante da atual conjuntura de conservadorismo estabelecida pelo atual governo. Mas não basta apenas a criminalização, se esse mesmo governo nos tira outras alternativas que militam em busca da educação em respeito à diversidade. Ações como a retirada, nos planos de educação, de diretrizes que contribuem para o enfrentamento à discriminação de gênero e orientação sexual enfraquecem uma luta que não é de hoje e nos levam a invisibilização. Uma invisibilidade que é reforçada por programas como o Escola Sem Partido, que proíbe a discussão de gênero na educação de crianças e adolescentes nas escolas.
Levar essas pautas para as escolas é o início para a desconstrução de uma cultura preconceituosa e da violência estrutural, que ficam evidentes através dos números de crimes contra a população LGBT+ citados aqui. Números esses que só são obtidos através de manchetes ou relatos, graças ao empenho do GGB, a mais antiga associação do Brasil que luta pelos direitos LGBT+. Já que, devido ao despreparo policial e uma certa resistência desses órgãos em reconhecer o motivo específico desses crimes, muitos casos são subnotificados ou não são resolvidos.
E aponto esse despreparo com convicção. Em 2016, após receber ameaças motivadas pela homofobia, compareci a uma delegacia de Santa Maria para registrar um boletim de ocorrência. Após relatar as ameaças e apresentar provas, o policial deu risada e disse que eu não poderia fazer um registro alegando ser vítima de homofobia. “Não tem lei pra isso!”
Mas porque criminalizar a LGBTfobia? Principalmente, para que mais vidas não sejam perdidas. Para que não tenham mais casos como o da travesti Dandara, espancada e executada em praça pública, em 2017, na cidade de Fortaleza. Para que famílias não façam mais vítimas, como Itaberly, morto pela mãe e padrasto, também em 2017, no estado de São Paulo. Para que LGBTs possam sair na ruas de mãos dadas sem sofrer insultos ou ter a cabeça atingida por uma lâmpada. Mas esses casos são apenas a ponta do iceberg em uma imensidão de atrocidades que não chegam ao nosso conhecimento.
Por esses e por outros motivos é que não podemos esquecer de criminalizar a LGBTfobia. Hashtags como a #CriminalizaSTF, que ganharam força nas redes sociais próximo ao dia da votação, mostraram o grande apoio para que isso se torne realidade. Mas não podemos lembrar da criminalização da LGBTfobia apenas na semana da votação, em datas comemorativas ou na Parada LGBT+. Devemos reivindicar todos os dias, para não cair no esquecimento, não só do STF ou do Congresso, mas de toda a população.
A LGBTfobia bate em nossa porta todo dia. Amanhã pode ser eu, você, sua irmã, seu tio, algum de seus amigos, sua colega de trabalho, seu professor. Tornar essas agressões e insultos em crime é uma urgência social e que não podemos deixar para amanhã. Se em outros governos já havia dificuldades para que esses temas, não só nas escolas, mas em diversos setores fossem discutidos, o que nos reserva um governo conservador, de um presidente que diz: “Seria incapaz de amar um filho homossexual. […] prefiro que um filho meu morra num acidente do que apareça com um bigodudo por aí” ?
Criminalizar a LGBTfobia é um grito de socorro. Parem de nos matar!
Deivid Pazatto é jornalista egresso da UFN. Foi repórter da Agência Central Sul e monitor do Laboratório de Produção Audiovisual (Laproa) durante a graduação. É militante do movimento LGBTQ+, aborda questões pertinentes sobre essa temática em seus textos.
Em 2016, a ex-presidenta Dilma Rousseff assinou um decreto que permite a travestis e transexuais usarem o nome social em todos os órgãos públicos, autarquias e empresas estatais federais. O nome social é nome escolhido por essas pessoas de acordo com o gênero ao qual se identificam, independentemente do nome com que foram registrados no nascimento, como forma de legitimar a sua existência de acordo com a identidade que expressam na sociedade. Porém, esse decreto muitas vezes não é cumprido, o que leva ao constrangimento dessas pessoas ao serem chamadas pelo nome de nascimento em algumas instituições.
Um dos grandes fatores que acometem esse desrespeito é a transfobia, e está muito ligado à estrutura machista da sociedade – e aqui podemos frisar a brasileira. O Brasil desponta como o país mais transfóbico do planeta, com altos índices de homicídio contra a população trans.
Segundo a ONG europeia, a Transgender Europe (TGEu), em nenhuma outra nação há tantos registros de homicídios de pessoas transgêneras como no Brasil. O Grupo Gay da Bahia (GGB), em seu relatório anual, aponta que em 2017, 42,9% das LGBT assassinadas eram travestis ou transexuais – em número, foram 191 vítimas de transfobia, dos 445 homicídios registrados no ano passado.
Ser travesti ou transexual no país que mais mata essa população é uma tarefa de resistência diária. No levantamento feito pela Transgender Europe, que traz os números de transfobia entre 2008 e 2016, revela o quão assustador é pertencer à população trans e morar no Brasil. Os números levantados mostram que o Brasil teve 868 mortes durante o período de oito anos, liderando o ranking. Em seguida aparecem México, com 259; Estados Unidos, com 146 e; Colômbia e Venezuela, empatadas, com 109. O Brasil registrou 3,5 vezes mais mortes que o segundo colocado. Além disso, a expectativa de vida da população trans é de 35 anos, metade da média nacional.
O nome é a nossa primeira identidade. É através dele que nos apresentamos e o que nos diferencia em público. Em nossa cultura, os nomes possuem uma binaridade de gênero que nos é atribuído logo no nascimento, após o reconhecimento do sexo. Muitas vezes não gostamos do nome que nos é dado ao nascer, mas essa situação se torna muita mais complexa quando se trata de travestis e transexuais. Ao perceber que o sexo atribuído ao nascer e sua identidade são opostas, transgêneros travam diversos conflitos internos, começando pela utilização de um nome social que é desrespeitado. Algo que parece tão simples, porém, é uma questão de dignidade humana.
Sexo e gênero estão ligados à construção da identidade. O sexo é um atributo biológico, que nos classifica como feminino, masculino ou intersexo. O gênero representa como nos reconhecemos na sociedade e aí entram diversos fatores para a sua construção. Segundo a filósofa Judith Butler, o gênero é uma construção cultural, no sentido de que vamos nos apropriando de diferentes significados culturais para a construção de nossa identidade. Mas há uma associação cultural padrão entre o sexo e gênero. Essa expectativa nos limita logo ao nascer, e está muito ligada ao sexo biológico – órgão masculino = homem; órgão feminino = mulher. Essa construção cisgênera acaba caindo por terra quando os transgêneros se diferem desse padrão binário. O sexo acaba sendo o oposto do gênero vivenciado. E ter recebido um nome que não condiz com o gênero o qual se identifica, é muito difícil para travestis e transexuais.
Ao se perceber e entender com uma identidade diferente, o nome civil de travestis e transexuais representa uma pessoa que elas não são mais. A utilização e reafirmação desse nome gera diferentes conflitos internos e o que configura uma violência, seja no momento em que o outro pronuncia esse nome ou quando uma travesti ou transexual é obrigada a escrever o nome civil.
Essa autoagressão também é um dos fatores de provocam a depressão dessas pessoas. Por sofrerem violência, a população trans está mais suscetível a desenvolver quadros depressivos, levando muitas vezes ao suicídio. A transfobia vivenciada no dia-a-dia de transgêneros perpassa o âmbito familiar e está presente em diversos setores da comunidade. A violência institucional em relação a travestis e transexuais é a que mais fere quando se fala em respeito ao nome social. Universidades, hospitais e delegacias provocam diferentes tipos de constrangimento a essa população, começando pelo desrespeito ao nome social.
Após ataques transfóbicos e ao recorrerem às delegacias para prestar um boletim de ocorrência, transgêneros não tem seu nome social respeitado. Nesse sentido surge a necessidade de delegacias especializadas no atendimento a pessoas LGBT em todo Brasil. No que confere às travestis e transexuais, algumas delegacias das mulheres no país acabam direcionando o seu foco de atendimento também para essa população, como é o caso das delegacias especializada de Atendimento à Mulher (Deam) do Acre e na Paraíba, que desde 2017 garantem o direito de travestis e mulheres transexuais.
Após ouvirem e obrigadas a fazer o boletim de ocorrência com o nome de batismo nas delegacias, se agredidas, muitas vezes travestis e transexuais recorrem aos hospitais e a história se repete. O constrangimento retorna quando, para o atendimento, os profissionais da saúde utilizam o nome civil para cadastros. Em muitos casos, alguns profissionais negam atendimento, como foi o caso de uma travesti de Canela (RS), que após passar mal foi até o Hospital de Caridade de Canela. Ao se deparar com a travesti usando roupas ditas femininas, uma enfermeira omitiu socorro e ameaçou chamar o segurança. O caso aconteceu em 2011, mas só em novembro do ano passado o hospital foi condenado a pagar R$ 30 mil reais por omitir atendimento à travesti.
Uma pesquisa conjunta realizada em 2012 pela professora Martha Souza, doutora em Ciências pela USP, e pelo professor Pedro Paulo Pereira, doutor em Antropologia pela UNB, acompanhou a trajetória de 49 travestis residentes em Santa Maria em busca de cuidados com a saúde. Intitulada Cuidado com saúde: as travestis de Santa Maria, Rio Grande do Sul, a pesquisa traz diversos relatos dessa população, entre eles a posição de marginalização que as travestis são colocadas. Durante a pesquisa, os autores contam que ocorreu uma tentativa de homicídio com travestis gêmeas. As irmãs relataram que após saírem com dois homens e eles perceberem que as duas eram travestis, foram agredidas com chave de fenda e alicate. Após pedirem socorro para um segurança de uma boate, foram todos para a delegacia. “Mesmo com testemunha, acabamos como bandidas. Ninguém acredita em travesti. Depois, precisamos ir até o serviço de saúde. […] Mesmo explicando que estava doendo muito, não deram remédio”, conta Whitney, uma das irmãs, com 22 anos na época.
Felizmente as irmãs gêmeas de Santa Maria se salvaram. Mas essas agressões se repetem dia após dia. A forma como a vida de travestis e transexuais são assassinadas é muito cruel. Facadas, pedradas, tiros. Mutiladas, dilaceradas, torturadas. Dandara é o maior exemplo da crueldade que a população trans está suscetível. Em fevereiro de 2017 ela foi torturada, agredida com socos, chutes, e golpes de pedra e pau em praça pública na cidade de Fortaleza, no Ceará. A exposição na qual Dandara foi submetida não ficou apenas em praça pública, mas foi parar nas redes sociais. 12 homens foram acusados de tirar a vida da travesti – até o mês de outubro desse ano, seis agressores foram condenados e estão presos.
O uso das redes sociais facilitou a comunicação e ampliou que mais informações pudessem circular e que esses casos viessem a conhecimento público. Essas mortes não são contabilizadas por delegacias e cabe às ONG’s fazer esse registro. O Grupo Gay da Bahia, criado em 1980, a mais antiga associação em defesa dos direitos LGBT, colhe todas essas informações, anualmente, através da internet, amigos ou outras redes que vão se fortalecendo para que eles possam contabilizar a proporção da LGBTfobia no país. A Rede Trans Brasil e a ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) também são duas associações que fazem esse monitoramento, voltado apenas para a população trans. Até novembro desse ano, a ANTRA já registrou 149 assassinatos contra pessoas trans no Brasil.
Toda a vulnerabilidade a qual travestis e transexuais estão submetidas vem da transfobia que está impregnada nas raízes culturais do nosso país, muito ligada ao machismo, que acaba por refletir na população trans pelo fato de elas transpassarem os padrões heteronormativos. Não podemos esquecer dos homens transexuais, que por vezes são invisibilizados. Em casos de homicídios, os homens trans não são contabilizados nas estatísticas, por serem registrados com o nome de batismo nas ocorrências, novamente ferindo a identidade dessas pessoas. As mortes desses homens muitas vezes não são investigadas ou passam a ser enquadradas na lei do feminicídio, não configurando como um ato de transfobia.
Os reflexos da transfobia ferem todos os campos da sociedade que são por direito de travestis e transexuais. A população trans é marginalizada em todos os setores da sociedade e essa exclusão reflete no grande número de travestis e transexuais que trabalham na prostituição. Devido a falta de oportunidade, essa acaba sendo a única opção de sobrevivência para a população trans, já que a oportunidade de outros empregos são muito pequenas, e se restringe a poucas empresas dispõem dessas políticas. Uma estimativa feita pela ANTRA, aponta de 90% da população trans recorre a prostituição ao menos em algum momento da vida.
Entre os motivos para a exclusão e marginalização da população trans, estão os grandes níveis de violência no contexto histórico do país – e aqui podemos citar a ditadura militar, onde travestis e transexuais eram perseguidas e mortas. A falha do Estado em investigar os crimes contra essa população, também é um dos motivos que leva ao aumentos desses números de violência. A vulnerabilidade da população trans na prostituição também é uma falha do Estado. Existem pouquíssimas políticas públicas que inserem essas pessoas seja nas universidades ou empregos.
A inclusão de travestis e transexuais nas universidade permite a oportunidade de entrarem no mercado de trabalho. O respeito ao nome social nesses espaços, pode representar uma importante condição de permanência dessa população nas faculdades, pois ali elas passarão a ser respeitadas e incluídas. Hoje, diversas universidades respeitam o nome social no Brasil. Em janeiro desse ano, o Ministério da Educação (MEC) autorizou o uso do nome social na educação básica para travestis e transexuais.
No Brasil não há legislações que garantam os direitos básicos de travestis e transexuais. Das poucas iniciativas nacionais, só constam o decreto sancionado pela ex-presidenta Dilma Rousseff que determina o uso do nome social em órgão públicos. Com isso travestis e transexuais também passam a ter o nome social respeitado, por exemplo, no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), onde são reconhecidos pelo nome que escolheram e nas eleições, a partir desse ano, onde mais de 6 mil eleitores votaram com o nome social. Também há uma portaria (nº 2.803, de 19 de novembro de 2013,) que determina a oferta do processo transexualidor (processo de hormonioterapia e cirurgia de adequação do corpo biológico à identidade de gênero e social), pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Essa decisões são frágeis, devido a falha do Estado e as diversas repressões que as pautas LGBT sofrem no Congresso Nacional. Reflexo disso é a não criminalização da LGBTfobia no país que mais mata LGBT. Em 2006, o projeto da ex-deputada Iara Bernardi chegou a ser aprovado na câmara, mas ao chegar ao Senado foi adiado e arquivado em 2014. Desde o início do mês de outubro desse ano, o site do Senado Federal está realizando uma consulta pública sobre o projeto de Lei do Senado nº 515/2017 que criminaliza a LGBTfobia, com autoria da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa. A consulta dá direito de votar sobre a alteração da Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, e o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, para punir a discriminação ou preconceito de origem, condição de pessoa idosa ou com deficiência, gênero, sexo, orientação sexual ou identidade de gênero.
Mesmo com mais de 400 mil votos a favor e quase 7 mil contra a alteração, as bandeiras que envolvem a comunidade LGBT sofrem ataques e não seguem em discussão no Congresso devido aos parlamentares da bancada BBB (do boi, da bala e da bíblia) que vão contra os direitos dessa população. Todos os processos de transfobia citados, são reafirmados por lideranças conservadoras, que buscam a invisibilização do movimento e a exclusão de LGBT em todos os espaços.
O que ainda garante esses direitos, são as poucas lideranças representativas eleitas e algumas iniciativas estaduais e municipais. Uma dessas iniciativas é o Transcidadania, criado em 2015 pelo então prefeito da cidade de São Paulo, Fernando Haddad, que tem o objetivo de promover os direitos humanos e oferecer melhores condições de vida a uma parcela tão marginalizada da sociedade, como as travestis e transexuais. O programa concede bolsas de estudo e transferência de renda à população trans, levando educação, capacitação e garantia de direitos.
O nome social frente às diversas violências contra a população trans é um direito a dignidade humana. Ser reconhecida ou reconhecido com o nome o qual se identifica é uma forma de existir e legitimar a sua existência enquanto cidadãs(os). O uso do nome social auxilia a população em tarefas que parecem corriqueira para pessoas cisgêneras, mas que são um problema para quem é transgênero, como a simples tarefa de abrir uma conta em um banco ou se candidatar a uma vaga de emprego. O uso da aceitação do nome social deveria ser obrigatório em todas as instituições e estabelecimentos para evitar os diferentes tipos de constrangimentos já mencionados quando utilizado o nome de batismo.
Ter o nome social reconhecido é o passo inicial na luta contra a transfobia, por isso a extrema importância para que a aceitação desse nome seja ampliada a todos os setores da sociedade. Um processo que era burocrático, hoje está mais acessível. Para obtenção da Carteira do Nome Social, a pessoa precisa ter no mínimo 16 anos e levar a Certidão de Nascimento no local onde feita a Carteira de Identidade na sua cidade. Após solicitar a Carteira de Nome Social, leva cerca de 10 dias para ficar pronta. Em fevereiro desse ano, o presidente Michel Temer sancionou o decreto nº 9.278/18 que regulamenta a lei nº 7.116 de 29 de agosto de 1983, para que as carteiras de identidade possam abranger o nome social de pessoas transgêneras. Para emitir a Carteira de Identidade com o nome social, basta que o interessado manifeste sua vontade através de um requerimento escrito e apresentar a Certidão de Nascimento. Junto com o nome civil, a identificação no novo documento virá acompanhada de “nome social”. A partir de 2019, todos os órgãos identificação deverão obedecer o novo decreto.
Desse modo, com a nova norma, não é mais necessário contratar advogados e passar por processos na Justiça para conseguir o nome social. O decreto articulado pelo Ministério do Direitos Humanos, é uma homenagem a João W. Nery, um dos maiores ativistas transgêneros do país. João, que faleceu em 26 de outubro desse ano, foi o primeiro homem trans no Brasil a passar por uma cirurgia de redesignação sexual (mudança de gênero). O projeto que leva o nome do ativista, parado há anos no Congresso, visa que a pessoa trans não precisará se submeter a cirurgia ou hormonização caso deseje alterar os documentos.
A nova carteira que trará o nome civil e o nome social juntos, pode não ser o suficiente para evitar situações constrangedoras, já que ela sugere os dois nomes e isso ainda permite ataques transfóbicos. As falhas do Estado são muito grandes é de extrema urgência políticas públicas para uma população que é dizimada no país. O desrespeito ao nome social é apenas a ponta do iceberg em um país que omite, esconde, máscara a transfobia em todos os setores da sociedade. Ser travesti e transexual no Brasil, é resistir e lutar pela vida todos os dias.
Artigo produzido para a disciplina de Jornalismo Humanitário, no segundo semestre de 2018, sob a orientação da professora Rosana Cabral Zucolo
“Foram anos lutando contra mim e eu me superei. Comecei a me sentir pessoa, gente, porque antes eu me sentia um bicho. A partir daí eu vi que eu consegui fazer as coisas.”
Esse foi um dos relatos ouvidos durante a construção desta reportagem. Temos o intuito de apresentar, principalmente, o serviço desenvolvido nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), suas metodologias de atendimento, demandas, relação com o restante da rede de saúde mental e como se dá a relação dos usuários com esse sistema de saúde em Santa Maria.
Durante os meses de abril e maio, entre visitas e conversas, podemos conhecer o serviço de saúde mental do município, que conta com quatro centros: o CAPS II Prado Veppo, que atende pessoas com transtornos mentais graves; o CAPS Ad II Caminhos do Sol e o CAPS Ad II Cia do Recomeço, que são voltados para usuários dependentes de álcool e drogas; e o CAPSi II O Equilibrista, por onde passam crianças e adolescentes com transtornos psíquicos.
A realização das visitas aos locais, além de contribuírem para o esclarecimento de cada unidade, também serviram para que buscássemos respostas das demandas mencionadas pelas equipes dos CAPS e pelos próprios usuários. Junto com as unidades, conhecemos o funcionamento do centro de internação Paulo Guedes, localizado no Hospital Universitário de Santa Maria (HUSM). Também ouvimos profissionais do setor e usuários dos serviços psicossociais e participamos da Pré-Conferência de Saúde Mental, que ocorreu na Universidade Franciscana (UFN), com acadêmicos e professores da área de saúde que atuam na rede.
Durante esses dois meses, as visitas aos CAPS, à unidade Paulo Guedes e a entrevista com a coordenadora de Saúde Mental, Claudia Pinto, ocorreram por intermédio do Núcleo de Educação Permanente em Saúde (NEPeS). A primeira foi realizada no início do mês de abril e a partir daí mergulhamos nos Centros de Atenção Psicossocial.
Nesse período, podemos ver a dedicação dos profissionais em manter as atividades e oficinas, mesmo trabalhando com a equipe mínima reduzida. Logo nas primeiras visitas, ouvimos relatos das equipes das unidades sobre a carência de profissionais e o inchamento da rede que não consegue suprir a grande demanda de usuários. Evidenciamos a falta de estrutura e investimento nesses serviços por parte dos órgãos públicos.
Encontramos, ainda, a dificuldade de obtenção de respostas por parte da Coordenadoria de Saúde Mental e Secretaria de Saúde de Santa Maria. Entre os questionamentos sem respostas, está os valores dos aluguéis pagos pelos imóveis, que custam em média R$ 7,5 mil/mês, para cada unidade.
Os CAPS, que se localizam na região central da cidade, também trocam de endereço constantemente, devido as condições das residências. As alterações afetam, principalmente, os usuários das unidades Ad (álcool e drogas,) que precisam se adaptar as mudanças. Isso porque, esses centros atuam por meio de “territórios”, os quais estabelecem para onde cada usuário deve ir, a partir do local em que moram.
É importante saber que os centros constituem-se dentro da chamada Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), uma das estratégias desenvolvidas pela Política Nacional de Saúde Mental. A estrutura faz parte de uma implantação realizada no Sistema Único de Saúde, com o objetivo de atender, nos diferentes graus de complexidade, pessoas que demandam atendimentos voltados à saúde mental. Em Santa Maria a prefeitura é responsável por essas unidades.
CAPS, as demandas de um sistema invisível em Santa Maria (Acesse o link para ler a reportagem completa)