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Vivência e resistência de pessoas trans em Santa Maria

Relatos de mulheres e homens trans a partir de suas narrativas.

Marquita segurando a bandeira trans, símbolo que representa a comunidade transgênero. Foto: Heloisa Helena.

“Eu digo que a gente foi uma geração muito resistente porque viemos de um estigma de preconceito muito grande em cima da nossa população, por causa de uma doença. Nós sobrevivemos a tudo aquilo e estamos aqui”

Era outono do ano de 1967 quando veio ao mundo um menino, julgado por seu sexo biológico. Aos 17 anos começou o processo de se reconhecer como uma pessoa trans, termo que era pouco utilizado naquela época, pois usavam a palavra travesti como definição. Assim surge Marquita Quevedo, no ano de 1985, em plena pandemia de HIV/AIDS no Brasil, em um ambiente cheio de preconceito contra a população LGBTQIA+ e desinformação sobre a doença.

Ela relata a discriminação que sofreu nos anos 1980 por conta da epidemia, era agredida, xingada e expulsa de bares. “Era muito real na nossa cidade, em pleno Calçadão tinha uns espaços que quando a gente passava ouvia gritos ‘olha a AIDS’, ‘vocês estão matando a população’.” Porém, esse não foi o primeiro preconceito em sua trajetória.

Somente há quatro anos o Ministério dos Direitos Humanos retirou a transexualidade da lista de doenças ou distúrbios mentais. Em agosto de 2018, a Organização Mundial da Saúde publicou a 11ª edição do CID (Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde), que deixou de incluir o chamado “transtorno de identidade sexual” ou “transtorno de identidade de gênero”. Desde 1952 a população trans era considerada portadora de distúrbios mentais, reforçando o estereótipo de que eram doentes.

Aos 15 anos, Cilene deu o grito de liberdade. Se reconheceu como mulher, feminina e delicada. Na infância foi apelidada de “sorriso”, o sorriso largo estava quase sempre presente em sua trajetória. Mas, aos 11 anos, seu sorriso desmanchou ao ser abusada na escola. Após ser descoberta, através de uma carta contendo uma declaração de amor para um colega de sala de aula em um colégio apenas de meninos, Cilene foi encaminhada ao psicólogo.

“Na sala dele eu tirava toda a minha roupa e ele tocava nas minhas partes íntimas. Na segunda sessão foi piorando, embora eu sentia dor, na época eu imaginava que fazia parte do tratamento. Na terceira sessão, eu parei de ir e acredito que ele iria concluir o ato.”

E nessa travessia perigosa que é a vida, Cilene começou sua caminhada em busca de ser quem realmente desejava. “Eu tenho muitos motivos para ser uma pessoa revoltada e agressiva, porque só a gente sabe o que carregamos nessa vivência toda”.

Cilene menciona uma das suas principais marcas de resistência:

Cilene Rossi trabalha como assessora parlamentar no Legislativo de Santa Maria gerando representatividade para o público trans em espaços políticos. Foto: Vitória Gonçalves.
Cilene Rossi trabalha como assessora parlamentar no Legislativo de Santa Maria gerando representatividade para o público trans em espaços políticos. Foto: Vitória Gonçalves.

É sobre o caminho difícil que Cilene fala. É sobre um caminho de perdas e abandonos. De pedras e espinhos. De preconceito e discriminação. De luta e resistência. Mesmo diante de todos os desafios, Cilene não se recolheu em si mesma. E procurando compreender o que havia nela que tanto incomodava os outros, foi construindo para si a história de sua vida.

Viver no país que mais mata travestis e transexuais é um ato de resistência. O Brasil lidera o ranking mundial de mortes por transfobia, de acordo com a ONG Transgender Europe (TGEU). Os dados são alarmantes. Segundo o dossiê anual da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), em 2021, 140 pessoas trans foram assassinadas no país, sem contabilizar os demais atos de violência física e moral. 140 vidas, 140 histórias interrompidas. A idade média das vítimas foi de 29 anos. “Nossa maior vingança será envelhecer. Qualquer travesti que passe dos 35 anos estará se vingando desse CIS-tema” – Keila Simpson Presidenta da Antra.

Cisgênero é o indivíduo que se identifica com o sexo biológico com o qual nasceu.

Gráfico produzido a partir dos dados do dossiê anual da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) divulgado em 2021. Produzido por Vitória Gonçalves.
Gráfico produzido a partir dos dados do dossiê anual da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) divulgado em 2021. Produzido por Vitória Gonçalves.

No começo do século 21 surgiram entidades nacionais como a Articulação Nacional de Travestis, Transexuais e Transgêneros (Antra), a Rede Trans e o Instituto Brasileiro de Transmasculinidades, com o propósito de falar sobre questões relacionadas a população tras e gerar visibilidade. Entretanto, descobrir-se neste cenário ainda possui dificuldades.

“Eu sou uma mulher trans, mas é nítido que a maioria nem me considera mulher”. Descobrir-se diferente. Reconhecer-se. Autoproclamar-se. Assumir-se enquanto mulher trans exigiu de Davina Kurkowski todo um processo de negociação, consigo mesma e com o mundo externo. “Pelo fato de eu ser transsexual, a maioria dos homens acham que eu sou alvo de sexo fácil. Já fui assediada várias vezes em Santa Maria, na rua, indo para o cursinho, quando estava trabalhando. Era algo que acontecia quase todos os dias.”

Davina relata como as pessoas reagem de forma preconceituosa ao vê-la na rua:

Sem contar com qualquer respaldo social, mulheres como Davina estão desprotegidas e se tornam extremamente vulneráveis a múltiplas formas de assédio e ataque, sendo radicalmente privadas de direitos. Neste momento, a jovem se depara com a bruta realidade de uma mulher trans na sociedade. O desconforto em utilizar o banheiro feminino do shopping, olhares que transmitem medo, nojo e ódio acompanham Davina no seu cotidiano.

“Escutei vários comentários, uma vez me chamaram de traveco. No começo da transição eu não me sentia confortável para usar vestido e saia em público mas, pela primeira vez, devido ao verão e ao calor, coloquei um vestido. Estava voltando do shopping com duas amigas, eu me sentia ótima e  quando estávamos passando pelo calçadão, aquele homem que está sempre cantando música gospel e gritando com as pessoas começou a gritar olhando pra mim ‘porque vocês adoram o diabo’.”

Quando se fala em homens trans há pouco levantamento aprofundado no país sobre a população masculina, o reconhecimento das identidades de gênero desses sujeitos, a invisibilidade social e política enfrentada por eles, bem como as várias formas de violência que os atingem diariamente.

“Eu posso não ter passado nenhum confronto físico, nem moral, mas é bem humilhante e degradante não ter acesso a um direito básico. É de certa forma violento na vivência”. Cauã de Bairros tem apenas 21 anos, mas já possui uma grande bagagem de experiências e vivências. Aos 17 anos deu adeus ao gênero feminino, rótulo que foi imposto a ele ao nascer, mas que nunca o pertenceu. O direito básico a que o jovem se refere é ser reconhecido pelo nome social na documentação.

 

Cauã atualmente cursa música na UFSM e faz parte da equipe da Casa Verônica Foto Cauã - Arquivo pessoal.
Cauã atualmente cursa música na UFSM e faz parte da equipe da Casa Verônica Foto Cauã - Arquivo pessoal.

No ano de 2019 ele era calouro, no curso de licenciatura em Teatro na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e ainda não tinha modificado o nome na certidão de nascimento e RG. “Na época ainda não tinha uma política facilitada para o nome social. A maior burocracia era o nome, porque as pessoas olhavam o nome social e achavam que era enfeite. Pra mim isso foi o pior, questão do nome na carteira do Restaurante Universitário (RU), portal do aluno, matrícula e carteira de ônibus”.

O jovem conseguiu fazer a retificação do nome por conta de uma lei  (Provimento n° 73 de 2018) instaurada no ano de 2018, que facilitou o processo ao retirar a obrigatoriedade do requerimento de laudos médicos para alteração. Atualmente, para mudar basta a autodeterminação da pessoa interessada em modificar o nome. “Pensa que desagradável ter que pedir para um médico olhar teu corpo e atestar aquilo, para você poder ter acesso ao nome básico. É só teu nome”. Felizmente Cauã não precisou passar pela consulta médica graças a alteração da lei.

Alguns direitos e o acesso a eles tem evoluído ao longo dos anos, mas o preconceito persiste intrínseco na sociedade como mencionado nos relatos de quem convive diariamente com essa realidade.

O desafio no mercado de trabalho

A realidade das pessoas trans em busca da sua independência financeira

“A falta de oportunidade e de inclusão me fez trabalhar na noite. Eu não vou dizer que todas estão na noite por necessidade, mas 95% sim […] Hoje o público trans tem muitas oportunidades, por conta de quem esteve na linha de frente batalhando pelo público LGBT.” 

A noite muitas vezes não tem regra, não tem leis, não tem descanso. Mas não para Cilene, que optou por ter disciplina nos 15 anos que viveu a rotina do trabalho na prostituição. Conheceu todas as drogas na noite – ou quase todas. Mas se considera abençoada de não ter se viciado em nenhuma delas.

“Esses 15 anos para mim era um trabalho. Do qual, eu tinha horário para chegar na rua e horário para ir embora, e final de semana eu não trabalhava. O corpo precisa descansar e a alma também. Porque você sobrecarrega”

Ao falar sobre as marcas que a compõem, sobre as experiências que vivenciou, sobre a sua vida, a sua história, a sua luta, Cilene relatou as agressões, os assédios e a conquista pelo território. No mundo da prostituição, toda esquina é conquistada, assim como os clientes.

“Muitas vezes a gente apanha mas a gente revida para apanhar com dignidade. Tu não aceitou quieta, tu lutou também. Perdeu, infelizmente perdeu. Mas no mundo da noite, tu só conquista seu espaço assim, apanhando e voltando, apanhando e voltando, uma hora desistem e te permitem ficar”

De acordo com Cilene, o mundo da noite envolve muitos gritos e xingamentos. E o desejo de estar em cima de um salto alto, muitas vezes se torna um pesadelo. Há noites em que não é escolhida e noites em que o corpo implora por descanso. Quando jovem, sempre contribuiu em casa, apesar das tentações de um mundo perverso, seu objetivo sempre foi o mesmo.

“Eu nunca joguei meu dinheiro fora, sempre ajudei meus sobrinhos. Geralmente a mulher trans que trabalha na noite, elas estão vulneráveis ao álcool e a droga, uma coisa leva a outra.”

Depois de vivenciar muitos mundos, conhecer seus próprios abismos e reencontrar-se consigo mesma diversas vezes nesse caminho, uma oportunidade de emprego surgiu na Estação Rodoviária de Santa Maria contribuindo com a sua construção.

“Eu se pudesse aparecer de forma mais feminina, ótimo. Mas não é privilégio de muitas. Cilene Rossi foi toda uma construção. Antigamente as condições eram precárias, algumas já tinham sorte de nascer bonitas, conseguir clientes à noite. Chamávamos na rua de “bater portinhas”. Atualmente, Cilene tem 51 anos e exerce a profissão de assessora parlamentar da vereadora Marina Callegaro (PT). Com seu trabalho, auxiliou 23 mulheres trans a fazerem a troca do nome social. Considera esse passo como um empoderamento para que pessoas como ela se reconheçam como cidadãs e como desejam ser reconhecidas.

Definitivamente, a inclusão de pessoas trans no mercado de trabalho ainda é um desafio. Mas, como conta Marquita, a área da beleza era uma alternativa para pessoas trans trabalharem, pois o local se mostrava parcialmente receptivo a essa população.“Eu digo que a minha profissão era ser cabeleireira.  Até alguns anos atrás era a profissão onde a gente se encontrava e não tinha preconceito, a gente era aceita no meio do salão”, relembra. Atualmente, Marquita trabalha com a produção cultural de eventos em Santa Maria.

Tentar se colocar no mercado de trabalho sendo uma pessoa trans pode resultar em cicatrizes profundas e desgastes emocionais. No final de 2019, logo antes da pandemia do coronavírus, Cauã estava procurando emprego, mas não havia resultados. Nas experiências para conquistar algumas vagas, houve muitos questionamentos desnecessários e nem um pouco profissionais dos colegas da empresa.

“Fiz o teste de uma semana em uma sorveteria. A moça que estava me treinando começou a me perguntar por que eu tinha cabelo comprido, se eu era gay, se eu ‘dava’, coisas bem íntimas que não tem nada a ver com o espaço de trabalho e, por causa do meu cabelo comprido, ela achou que eu era gay e ela tinha essa permissão.”

Davina também se deparou com dificuldades ao buscar por empregos. Antes da transição, ela conseguiu uma oportunidade de estágio, mas quando terminou o ensino médio, o estágio foi cancelado. De acordo com a jovem, após trocar seu nome social e começar a fazer currículo como Davina, as entrevistas de emprego nunca mais surgiram. Até o momento, seu único trabalho depois da transição foi como babá e como modelo.

Essa realidade reflete a dificuldade desse público ao tentar ingressar no mercado de trabalho. Muitas vezes não avançam sequer nos processos seletivos e não são contratados apenas por serem quem são.

As adversidades no dia a dia de pessoas trans

O impacto do preconceito na vida da comunidade T

“O momento que sofri o primeiro preconceito foi dentro da família e aí tive que me tornar forte”

Como acontece com a grande maioria das mulheres e homens trans, Marquita não teve apoio da família. A exclusão familiar ocorreu quando tinha apenas 14 anos, foi expulsa de casa e mudou de cidade para morar com um tio, após dois anos retornou para Santa Maria apenas com a roupa do corpo. Sem lugar para morar e família para acolhê-la, dormiu nas ruas da cidade e foi amparada pelos iguais a ela.

Marquita comenta como era o preconceito na década de 80:

Na trajetória de Davina, seu pai se tornou um dos primeiros desafios preconceituosos que ela enfrentaria. Na busca por tentar encontrar uma explicação para os seus sentimentos, resolveu assumir-se, a princípio, como um homem homossexual para a família, iniciando um processo de negociação entre a sua identidade e a aceitação dos outros. Após Davina e sua mãe saírem de casa na pandemia da covid-19, a jovem começou a refletir e descobriu que haveria uma (des)construção em sua vida. No final de 2020, Davina nasceu e a relação com o pai ficou em pedaços.

Cauã, por sua vez, teve o apoio da mãe desde o começo da transição, tanto emocional quanto financeiro. Por mais que fosse difícil, ela estava sempre presente para apoiá-lo. Porém, por parte do pai houve, no início, uma certa rejeição e dificuldade durante o primeiro ano de transição. Seus avós paternos optaram por cortar relações e nunca mais falaram com o neto. Alguns familiares mais próximos de Cauã se mantiveram em sua vida, pessoas que ele chama de parceria.

“Infelizmente grande parte das mulheres trans encontram o preconceito dentro da família. Muitas são expulsas de casa, pela própria mãe ou pelo pai, geralmente pelo pai. Tem mães que também não aceitam, porque esperavam um homem que casasse e tivesse filhos. Mas também tem muitas mães que abraçaram a causa junto aos filhos, eu acho isso lindo” – Cilene

Cilene costuma dizer que foi abençoada por ter sido acolhida pela família, apesar de ter sido uma construção. Foi criada em um meio onde predominava o amor e o respeito. O pai era militar, no começo foi difícil a aceitação e compreensão, mas com a convivência ele a aceitou, embora não a chamasse de Cilene. “Ele nunca me chamou pelo nome social, e eu não esperaria isso de um homem de 80 anos”. Cilene sempre colocou a família em primeiro lugar e amou-os de forma incondicional. Infelizmente, seus pais já faleceram, mas ela recorda carinhosamente dos dois e segue a vida pregando os ensinamentos de amor e respeito que ambos a ensinaram.

Passabilidade: a influência da aparência na vida de pessoas trans

Cilene fala sobre sua história com muita leveza e humor, assim como compartilha a sua vida de uma forma muito sincera, aberta e acolhedora. Apesar de ser designada ao gênero masculino ao nascer, sempre lutou pela existência da mulher que vivia dentro de si, sem perder o humor, a graça e a alegria.

De acordo com a revista Veja, aproximadamente 70% das mulheres trans se submetem a cirurgia de redesignação sexual e apenas 35% dos homens trans procuram pela cirurgia genital. Segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), as filas de acesso para a redesignação sexual superam os dez anos de espera, atualmente.

Mas apesar do índice ultrapassar a metade da população trans feminina, algumas mulheres optam por não realizá-la e se consideram satisfeitas com seu corpo. Este é o caso da Cilene, embora a aparência feminina, o cabelo longo, os seios fartos, a maquiagem, façam parte da sua personalidade. Cilene nunca cogitou realizar a cirurgia de redesignação sexual.

“Estou satisfeita com meu corpo, não pretendo me mutilar, nunca tive a idéia de cirurgia. Respeito aquelas que não aceitam o órgão, mas eu me aceito perfeitamente”.

Apesar da cirurgia ser considerada uma afirmação de gênero pela revista Veja, a mudança na forma de se vestir, de se comportar ou até mesmo de se montar, passou a ser a principal necessidade de mulheres que se descobriram trans, logo, quanto mais feminina, mais mulher aos olhos da sociedade.

Cilene participou, em 2019, da Parada do Orgulho LGBT Alternativa organizada pelo Coletivo Voe apresentando uma de suas performances - Foto: Vitória Gonçalves.
Cilene participou, em 2019, da Parada do Orgulho LGBT Alternativa organizada pelo Coletivo Voe apresentando uma de suas performances - Foto: Vitória Gonçalves.

No “processo da Marquita”, como ela mesma chama, começou a se montar, passar maquiagem e usar roupas femininas. Em suas próprias palavras, essa construção vem muito da heteronormatividade. “Tem que ter peito, tem que ter cabelo comprido, tem que ter uma passabilidade para poder estar inserida na sociedade e no mercado de trabalho. Independente da aparência estética que se tem, a identidade de gênero é uma coisa e a aparência é outra coisa. Em uma sociedade que julga as pessoas pelo órgão genital, isso tem de ser repensado.”

Atualmente, Marquita é uma ativista da causa LGBTQIA+ e coordenadora do ONG Igualdade - Foto: Vitória Gonçalves.
Atualmente, Marquita é uma ativista da causa LGBTQIA+ e coordenadora do ONG Igualdade - Foto: Vitória Gonçalves.

“É um processo de auto-aceitação, olhar o seu corpo e se aceitar, isso tem uma pressão muito grande. Afeta a autoestima e saúde mental da nossa população. A saúde mental é muito debilitada, por todo esse processo da pressão, da transfobia e lgbtfobia.” – Marquita

Assim como Marquita e Cilene, apesar de terem vivido as experiências em épocas diferentes, Davina também sentiu uma pressão estética ao se assumir como mulher trans. “[…] no começo eu sentia muita pressão estética, de me parecer com uma mulher cis. Sentia essa necessidade de vestir coisas femininas e me esforçar ao máximo para ter essa aparência delicada […]”.

Davina considerava seu corpo fora do padrão e vivenciou um período difícil e delicado, onde foi necessário uma constante luta por reconhecimento e aceitação. A jovem sentia muita disforia pelo próprio corpo, se sentia desconfortável com sua altura, seus ombros largos e suas mãos grossas. O verão era um incômodo, suas veias das mãos ficavam nítidas, mais um motivo para despertar a sua frustração.

Foi complicado, no começo foi bem difícil. Eu sentia mesmo essa pressão, mas não sei se a pressão vinha das pessoas ou eu me pressionava, acredito que eu mesma. Agora eu sei que não precisa, eu aceito meu corpo, sinto falta de alguma coisa as vezes, me incomoda bastante ter pelo no rosto, odeio ter pelo no rosto, é o que mais me incomoda na verdade.”

Davina em um dos seus trabalhos como modelo no desfile do curso de moda da UFN - Foto: Arquivo Pessoal.
Davina em um dos seus trabalhos como modelo no desfile do curso de moda da UFN - Foto: Arquivo Pessoal.

Quando Davina iniciou a transição, ela tinha como prioridade fazer terapia hormonal, mas agora não vê mais necessidade de tomar hormônio, pois gosta bastante do seu corpo. Porém, pretende avaliar na terapia com uma psicóloga e decidir se realmente quer ou não começar o processo de hormonização.

A pressão estética não atinge só as mulheres trans, mas os homens trans também se deparam com essa realidade, e foi uma das questões para Cauã. Em 2019, quando retificou o nome, sua aparência era diferente, tinha os cabelos compridos, ele gostava, mas muitas pessoas não gostavam. Frustrado com os questionamentos sobre seu cabelo, cortou. “Certamente, teve uma pressão pra deixar essa aparência. Os endócrinos diziam para eu fazer academia pra ficar mais musculoso. Mas eu sempre caminhei ou fiz algum tipo de esporte, então aquilo não era questão de saúde, eles estavam falando sobre aparência física. Isso é cobrado, para todas as pessoas trans é cobrado, para mulheres trans com certeza é pior”.

Em 2018, ele começou a fazer o tratamento da hormonização em Porto Alegre, sua cidade natal, no sistema privado, já que em Santa Maria ainda não existiam os ambulatórios pelo SUS que hoje auxiliam a população trans no processo de transição.

“Agora que tenho cabelo curto, barba e voz, eu tenho acesso a um respeito que nunca tive na vida. Nem antes e nem durante a transição. As pessoas parecem que me ouvem mais, é surreal”

Cauã compartilha as vantagens de se parecer com uma pessoa cis:

Entre o amor e a dor

Amar sempre foi algo complexo. Às vezes o amor não correspondido pode definir como uma pessoa vai ser daquele momento em diante. Assim como o amor muda um ser humano, a rejeição muda mais ainda. Cilene relata a sua realidade como mulher trans no mundo de relações afetivas e a dificuldade em encontrar o reconhecimento e aceitação que tanto anseia.

“Às vezes a pessoa tá com vergonha de estar do teu lado por ser quem tu é. O coração é um ponto muito fraco nosso. A gente está sempre procurando um amor, mesmo sabendo que aquele amor não vai ser correspondido e isso te frustra muito.Eu vivi quatro anos com um homem e sofri muito quando ele me deixou. Ele me trocou por uma mulher cis. Ele não estava errado, eu que estava errada de me entregar inteira”

Iniciativas de apoio à comunidade trans em Santa Maria

A importância da assistência à saúde física e mental

Utilizo o Sistema Único de Saúde (SUS), é um direito e acredito que devemos fortalecer o SUS”

Durante a transição, Marquita não teve apoio psicológico. Hoje em dia ela faz tratamento porque foi diagnosticada com Transtorno de Personalidade Borderline. Em Santa Maria, recentemente, dois ambulatórios para o público trans foram instaurados na cidade para dar auxílio a essa população: o Ambulatório Transcender e o Ambulatório Trans do Hospital Casa de Saúde.

“É muito importante esses espaços de saúde que a gente tem hoje, os ambulatórios trans, porque a saúde é fundamental e para nossa população mais ainda. Porque a nossa população não acessa a saúde facilmente, é importante ter acesso a esses locais”

O Ambulatório Trans do Hospital Casa de Saúde, inaugurado em 2022, oferece atendimento médico a pessoas que buscam iniciar ou prosseguir com a transição de gênero. O local especializado conta com atendimento clínico, psicológico, psiquiátrico e endócrino via SUS. O foco do ambulatório é dar atendimento clínico e psicossocial a pessoas que queiram fazer a transição com tratamento hormonal. Além de Santa Maria, o espaço atende também as 33 cidades da Região Central.

O Laboratório Transcender atendeu cerca de 65 pessoas trans em um ano de atendimento - Divulgação Prefeitura de Santa Maria Crédito: Marcelo Oliveira/PMSM.
O Laboratório Transcender atendeu cerca de 65 pessoas trans em um ano de atendimento - Divulgação Prefeitura de Santa Maria Crédito: Marcelo Oliveira/PMSM.

Destinado apenas aos residentes de Santa Maria, o Ambulatório Transcender nasceu em 2020 como um laboratório destinado à população T, mas ampliou os atendimentos a toda a população LGBTQIA+. O laboratório funciona junto à Policlínica de Saúde Mental, localizado na Rua dos Andradas, número 1.397. Os serviços oferecidos são: apoio psicológico, médico clínico e odontológico. Já os pacientes que desejam fazer a hormonização são encaminhados à Casa de Saúde. Em um ano de atendimento do ambulatório, 65 homens e mulheres trans e travestis foram acolhidos. É necessário reforçar que o atendimento é gratuito, via SUS e não é necessário agendar consulta ou ter encaminhamento de um posto de saúde, tudo para facilitar o acesso da população ao atendimento.

O ambulatório realiza uma busca ativa principalmente a pessoas Trans, Travestis e Transgêneros, para oferecer assistência. “A população T já tem historicamente uma dificuldade de acesso às Unidades Básicas de Saúde e, hoje, estamos fazendo um movimento de captação dessa população. No início, nós achamos que seria mais fácil eles aparecerem, mas não foi isso que aconteceu. A solução que encontramos é fazer visita domiciliar, vamos até as Unidades Básicas e conversamos com as agentes de saúde, elas já tem mais ou menos um mapa daquele território e das pessoas que têm interesse. A partir disso, a enfermeira vai até a casa, explica como funciona e oferece os serviços que disponibilizamos”, relata o psicólogo e coordenador do ambulatório Transcender, César Bridi, sobre a necessidade da busca ativa.

Bridi reforça que o atendimento é gratuito, público e acessível para todos e todas - Foto: Vitória Gonçalves.
Bridi reforça que o atendimento é gratuito, público e acessível para todos e todas - Foto: Vitória Gonçalves.

O Transcender também abre espaço para as pessoas que querem falar sobre questões de identidade. Ele tem grupos de afirmação de gênero para adultos – maiores de 18 anos – e grupos para adolescentes, dando oportunidade de se descobrir e se entender. Além do atendimento em grupo, dispõe de atendimento individual e para família, como conta Bridi: “Quando uma pessoa transiciona ou descobre sua orientação sexual, todos que estão no entorno precisam lidar com isso. A gente acolhe, explica, orienta os familiares e, caso necessário, encaminhamos para a psiquiatria da policlínica. Nós pensamos que, quando a pessoa vem pra cá, ela precisa se sentir protegida e acolhida.”

Outro espaço que acolhe vítimas de violência de gênero e tem como foco o público LGBTQIA+ e feminino é a Casa Verônica. O projeto é ligado ao Observatório de Direitos Humanos (ODH) e Pró-Reitoria de Extensão (PRE) da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). O local recebeu o nome Casa Verônica para homenagear e manter viva a luta e ativismo de Verônica Oliveira, conhecida como Mãe Loira. Ativista trans e referência na militância LGBTQIA+ na cidade, Verônica foi violentamente assassinada no ano de 2019 a facadas.

A Casa Verônica pretende promover rodas de conversa, eventos e oficinas, focalizadas na saúde mental e física do público alvo, assim como promover a inclusão de nome social, para fomentar políticas públicas voltadas para essas questões. Cauã, atualmente, faz parte da equipe e expõe a importância de existir um espaço como esse, devido a alta demanda: “É um projeto que poucas universidades têm até agora. Mas não é porque esses projetos são raros e escassos que há pouca demanda, a demanda é grande. As pessoas têm sede e fome de reconhecimento, de diálogo e de troca”.

Logo da Casa Verônica. Ilustração: Noam Wurzel/ Casa Verônica.

Logo da Casa Verônica

Ilustração: Noam Wurzel / Casa Verônica.

Os atendimentos ainda não começaram, pois a Casa Verônica está trabalhando na contratação dos profissionais, processo que envolve trâmites administrativos. Mas a Casa oferece orientações sobre os serviços disponíveis na universidade e na cidade e, conforme o caso, realiza encaminhamentos para a rede.


Reportagem produzida na disciplina de Jornalismo Investigativo, no 2º semestre de 2022, sob orientação da professora Glaíse Palma.

Quantas cores tem o arco-íris? E quantos gêneros e orientações sexuais existem? A resposta dessas perguntas é a mesma: tem a quantidade de todo um espectro de cores, que muitas vezes nem são visíveis a olho nu ou nem nomeadas. Com a intenção de promover o debate e a visibilidade LGBTQIAP+, o Coletivo Voe, formado por estudantes, pesquisadores e ativistas, se reúne em prol da defesa da diversidade sexual e de gênero, promovendo espaços de formação sobre gênero, corpo e sexualidades. Em nome do VOE, a convidada do oitavo episódio do ProvocArte é a Gabriela Quartiero, psicóloga, pesquisadora e ativista. 

Gabriela Quartiero, psicóloga, pesquisadora e ativista. Imagem: Alexsandro Pedrollo.

O Provoc[A]rte vai ao ar nesta terça-feira (27), às 19h, com reprise às 22h, na UFN TV, pelo canal 15 da NET, e reprisa no sábado, às 19h, e no domingo, às 19h30min. E também pode ser visto na TV Câmara, canal aberto 18.2, na sexta-feira, às 19h30, e no domingo, a partir das 20h.

Petrius Dias e Gabriela Quartiero. Imagem: Alexsandro Pedrollo.

O programa é produzido pelo Lab Seis, laboratório de produção audiovisual dos cursos de Jornalismo e Publicidade e Propaganda da Universidade Franciscana (UFN) e disponibilizado no canal do YouTube da UFNT TV. A equipe é formada por Beatriz Ardenghi e Petrius Dias no roteiro e apresentação, João Pedro Ribas na produção e na divulgação nas redes sociais, Gabriel Valcanover na edição, com suporte dos técnicos Alexsandro Pedrollo na gravação e Jonathan de Souza na finalização, e coordenação e direção da professora Neli Mombelli.

Texto: Petrius Dias.

Os personagens Wiccano e Hulking em Vingadores: a cruzada das crianças, ilustrados por Jim Cheung

No início deste mês, o prefeito da cidade do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, determinou que a história em quadrinhos Vingadores: a cruzada das crianças fosse recolhida da Bienal do Livro. O motivo, segundo ele, é que a HQ de super-heróis, em que dois personagens homens se beijam, tem “conteúdo sexual para menores”. Além disso, o prefeito ordenou que qualquer obra com abordagem LGBTQ+ fosse embalada em plástico preto e avisada como “conteúdo impróprio”.
Mas a tentativa de censura de Crivella não deu muito certo. A resposta veio do público que, no dia seguinte, em menos de meia-hora, esgotou todos os exemplares da HQ na Bienal do Rio de Janeiro. Quando os fiscais, mandados pelo prefeito, chegaram ao festival literário, nenhum exemplar foi encontrado. Em nota, a Bienal afirmou que o espaço é democrático e reconhece todos os tipos de literatura.
O ato de censura viralizou na internet. A imagem da HQ, com os dois personagens se beijando, era encontrada facilmente nos feeds das redes sociais. O youtuber Felipe Neto comprou cerca de 14 mil livros com temáticas LGBTQ+  e distribuiu de graça na Bienal. As obras distribuídas por Neto estavam em embalagem preta, com o aviso: “este livro é impróprio para pessoas atrasadas, retrógradas e preconceituosas”, uma forma de ironizar o pedido de Crivella. Além disso, a imagem do beijo estampou a capa de um dos maiores jornais do país, a Folha de São Paulo.
Ao limitar o conhecimento e o acesso a diversidade, a atitude de Crivella demonstra a censura explicita. Desde a ditadura militar livros não são censurados dessa maneira. O prefeito simplesmente decidiu, que o beijo entre os dois personagens na HQ, era inapropriado para menores de idade e que o conteúdo era sexual. Mas desde quando beijo é pornografia? Um beijo no livro não vai influenciar uma criança, e sim mostrar outras relações afetivas, as quais uma grande massa conservadora tenta esconder.
Em minha existência, convivi e fui “influenciado” por uma sociedade heteronormativa, assistindo muito mais do que um beijo entre pessoas cis-heterossexuais na televisão, por exemplo. Quem não lembra da banheira do Gugu na década de 1990? Um programa na tardes de domingo, que seria “para a família”, exibia homens e mulheres seminus a procura de um sabonete na banheira. E vejam só, mesmo assistindo a banheira do Gugu, não sou ou “virei” heterossexual.
Crivella, ao ordenar os fiscais a retirarem livros da Bienal, nos mostra o quão difícil é ser LGBTQ+, principalmente no último ano. Nosso amor, ou o nosso beijo não machuca ninguém. Além disso, não se faz política com religião. As atitudes de Crivella em censurar o nosso beijo, estão ligadas a suas ideologias, carregadas de preconceito e com o pensamento de que ainda vivemos nos tempos em que a homossexualidade era proibida.
Censurar livros com temática LGBTQ+ é um perigo a nossa democracia e liberdade. O conservadorismo nos assombra, e as minorias são as primeiras vítimas. Vale lembrar, que esse tipo de censura contra a diversidade não é primeira vez. Em um caso mais recente, no ano de 2017, a exposição Queermuseu foi censurada em Porto Alegre, respondendo a críticas de grupos que viram nas obras “apologia a pedofilia, zoofilia e blasfêmia”.
Mas por que o nosso beijo incomoda? Ele incomoda a partir do momento em que ocupamos espaço. O conservadorismo não quer que tenhamos direitos. Para eles, nosso lugar é e sempre será no armário. Romper com padrões heteronormativos é afrontar uma estrutura baseada na opressão das minorias. Um beijo gay incomoda, pois desestabiliza uma lógica de dominação não consentida, que coloca a homossexualidade como imoral. O ato de censurar, é assegurar que as LGBTQ+ não tenham liberdade. É limitar o conhecimento.
Muito mais que a censura, o ato de Crivella é a LGBTfobia escancarada, ou melhor, mascarada como “preocupação com as crianças e a família”. A atitude só comprova um pensamento retrógrado, no qual coloca as LGBTQ+ como pessoas que não são dignas do direito ao afeto. O problema não é o beijo em si, mas o fato de serem dois homens. Por mais que o Supremo Tribunal Federal nos assegure algum tipo de direito, a política conservadora sempre acha uma brecha para ferir tudo que se refere a diversidade. A todo instante tentam nos intimidar.
A repercussão internacional desse caso, talvez seja o reflexo de um sensibilização para/com o combate a LGBTfobia. Receber o apoio de inúmeras pessoas, só nos fortalece e mostra que não estamos sozinhos. Se a tentativa é nos colocar no armário, sentimos muito, mas não vai ser dessa vez. Nunca mais. Não podemos deixar espaço para o preconceito se materializar. Nosso beijo vai continuar rompendo barreiras. Vamos ocupar os livros, a televisão, as ruas e qualquer espaço que for nosso por direito.
Amor não deve ser censurado!

 

Deivid Pazatto é jornalista egresso da UFN, pós-graduando em Estudos de Gênero na UFSM e militante do movimento LGBTQ+. Foi repórter da Agência Central Sul e monitor do Laboratório de Produção Audiovisual (Laproa) durante a graduação.

Nos últimos dias, a comunidade LGBT passou por duas datas importantes no que confere o momento de reivindicarmos nossos direitos. Em 15 de maio, o dia do orgulho de ser travesti e transexual; já no dia 17, o dia internacional contra a LGTBfobia. Esse texto poderia ser uma reflexão sobre a importância dessas datas para a visibilidade da comunidade LGBT, mas, neste mês, outro assunto que envolve visibilidade e preconceito ganhou destaque: o ginasta olímpico Diego Hypólito se declarou homossexual. Mas o que tem demais nisso? O relato de alguém que sofreu homofobia no esporte e o impacto do preconceito na vida de um atleta.

Em uma entrevista especial para o site UOL, no início de maio, Hypólito contou sobre o seu processo de descoberta e aceitação como homossexual, acompanhado pelo medo e a culpa. O preconceito no esporte e das grandes marcas patrocinadoras levaram o ginasta a esconder e não aceitar a sua sexualidade por anos. “Eu tinha certeza que se um dia eu saísse do armário publicamente, perderia patrocínios e minha carreira seria prejudicada”, desabafa.

Após a declaração do ginasta, diversos sites de notícias publicaram trechos de sua entrevista. Instantaneamente, inúmeros comentários surgiram nas publicações. Entre apoio e admiração, um comentário, ou melhor, vários comentários que diziam: “ele foi o último a saber”, me chamaram a atenção. Durante anos, o ginasta foi muito questionado a respeito de sua sexualidade, e algumas pessoas até já “desconfiavam” ou “sabiam” que ele era/é homossexual. Entretanto, ele não foi o último a saber da sua sexualidade, mas as pessoas foram às últimas a entenderem que ele é mais uma vítima de homofobia no esporte.

Imagens: OpenClipart-Vectors/Pixabay

O preconceito no esporte é algo real e precisa ser combatido. O futebol é o exemplo mais forte do quanto se perpetua discriminação nesses espaços. O machismo e a LGBTfobia são muito presentes. Quem nunca ouviu, quando criança, que futebol era coisa de menino? Ou quando um juiz e jogadores são xingados de “viado” pela torcida? Em fevereiro deste ano, o jogador do Vasco, Felipe Bastos, usou palavrashomofóbicas para hostilizar jogadores e a torcida do Fluminense, com quem disputou a final da Taça Guanabara.

Casos como esses ganham maior destaque no futebol, pela forte influência que esse esporte tem no Brasil. O preconceito se perpetua em todas as modalidades, como no caso de Diego Hypólito. O esporte, de um modo geral, costuma ser hostil com a comunidade LGBT, e parte disso está enraizado em nossa cultura. Prova disso é utilizar termos pejorativos, de cunho LGBTfóbic, para agredir outra pessoa, como no exemplo já citado.

Enquanto o futebol é considerado “coisa de homem”, a ginástica é “coisa de mulher”. Esse reflexo de uma cultura machista, opressora e LGBTfóbica, atrapalha o crescimento do esporte no país. Muitos pais de meninos têm receio que seus filhos se arrisquem em acrobacias na ginástica, segundo uma entrevista do técnico Marcos Goto para o site UOL.

“Se meu filho fizer ginástica ele vai virar mulher”, relata. Em 2012, Goto era técnico do atleta Arthur Zanetti. Uma das apostas das olimpíadas daquele ano, Zanetti teve sua carreira desmoralizada após um vídeo íntimo vazado, com ocorreu com o também atleta Sérgio Sasaki. Exposto ao lado de outro homem, todo o seu trabalho foi colocado em xeque.

O preconceito que fez Hypólito esconder sua sexualidade por anos, e julgou o talento de Zanetti, também colocou em questionamento a participação de Tiffany Abreu como jogadora de vôlei. Em um caso recente, Tiffany, a primeira mulher trans a participar da Liga Feminina de Vôlei, foi vítima de transfobia. Durante um jogo, em março deste ano, após marcar um ponto para o seu time, o técnico do time do adversário, Bernardinho, foi flagrado pela transmissão da TV dizendo: “Um homem é f**da”. O insulto transfóbico não ficou restrito apenas a Bernardinho, mas também partiu de outras jogadoras. O desempenho de Tiffany foi criticado devido a fatores biológicos da atleta.

Além do preconceito, o anonimato da sexualidade no esporte abre uma brecha para casos de abuso. Em sua entrevista, Hypólito também relatou de abusos sofridos durante trotes por outros ginastas. “Já me deixaram pelado, junto com outros dois atletas, para escrever no nosso peito a frase “Eu”, “sou”, “gay”. Uma palavra em cada um para nos humilhar”. Em 2016, o técnico da seleção brasileira de ginástica, Fernando de Carvalho Lopes, foi acusado de abusar sexualmente de cerca de 40 atletas. Na ocasião, Hypólito prestou depoimento e relatou o bullying sofrido pela equipe do treinador que permitia ataques de cunho sexual.

O fato de Hypólito revelar sua sexualidade, apesar de não ter obrigação, é de extrema importância para a visibilidade e representatividade LGBT no meio esportivo. Ao lado do ginasta e de Tiffany, outros atletas se unem para formar uma rede na luta contra o preconceito. Ian Matos (saltos ornamentais), Marta (futebol) , Rafaela Silva (judô), Larissa França (vôlei), Mayssa Pessoa (handebol) entre outros, mostram o talento e o orgulho da comunidade LGBT e servem de inspiração para novos atletas. Precisamos expor os casos de LGBTfobia no esporte quantas vezes forem necessárias para que isso acabe. Basta!

No mês contra a LGBTfobia, mais uma data histórica…

Ontem, 23, o Supremo Tribunal Federal (STF) formou maioria para criminalizar a LGBTfobia no Brasil. Até agora, seis, dos 11 ministros, votaram a favor de enquadrar o discurso de ódio e a violência contra a população LGBT na Lei do Racismo (Lei 7.716/89). As duas ações em votação tratam da omissão do Congresso, que há 18 anos discute o tema, mas não define uma lei para punir os agressores.

O debate que ocorre no STF desde  fevereiro, já tinha os votos favoráveis dos ministros Celso de Mello, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes. Na tarde de ontem, a ministra Rosa Weber e o ministro Luiz Fux votaram a favor da criminalização. O julgamento foi suspenso e será retomado no dia 5 de junho para o voto dos outros cinco ministros. Essa é a terceira vez que a votação é suspensa, desde 13 de fevereiro, data em que a sessão foi iniciada. 

Em 18 anos de omissão do Congresso para criminalizar a LGBTfobia, de 2000 a 2018, 4.151 LGBT foram assassinados no país, segundo dados do Grupo Gay da Bahia. Assim que o julgamento for concluído, qualquer tipo de agressão ou discriminação contra lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros será crime no Brasil. A decisão do STF é uma grande vitória para uma população que vive em meio a governo conservador presidido por um LGBTfóbico.

Ver também: Não podemos esquecer de criminalizar a LGBTfobia

 

Deivid Pazatto é jornalista egresso da UFN. Foi repórter da Agência Central Sul e monitor do Laboratório de Produção Audiovisual (Laproa) durante a graduação. É militante do movimento LGBTQ+, aborda questões pertinentes sobre essa temática em seus textos.

O título desse texto poderia ser outro, direcionado apenas aos pais, mas sabemos que existem diferentes formações familiares. Por família, entende-se todo e qualquer grupo que conviva entre si sob um mesmo teto. Para além disso, a família é uma instituição que educa, orienta e influencia o comportamento social de cada indivíduo. Esse texto não aborda estruturas familiares, mas a importância do apoio familiar na vida de um LGBT+ e os reflexos de quando esses filhos são expulsos de casa.

O processo de descoberta de um LGBT+ é muito individual, mas um ponto em comum, é que desde pequenos a sociedade nos diz que pertencer a alguma dessas “letras” é errado. Se perceber LGBT+ é o primeiro passo para infinitas lutas que travamos dentro de nós. Um dos primeiros embates é o momento de “revelar” a sexualidade e/ou identidade de gênero à família. O medo da não aceitação aparece, cobranças são feitas e tudo parece desmoronar. Enquanto a vida nos ensina a sobreviver, a sociedade não faz o mesmo.

Medo. Essa é uma palavra muito presente na vida de um LGBT+. A rejeição familiar é uma das problemáticas que mais geram transtornos psicológicos nessas pessoas. Prova disso é o alto índice de suicídio na população LGBT+. Um estudo realizado na Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, com jovens entre 13 e 17 anos, concluiu que adolescentes lésbicas, gays e bissexuais são cinco vezes mais propensos a tentar suicídio do que heterossexuais. No Brasil, em 2018, o Grupo Gay da Bahia (GGB) registrou 100 suicídios de LGBT+. Os números foram coletados através de uma pesquisa feita pelo GGB, ainda assim, faltam dados oficiais para entendermos melhor a profundidade do problema.

Além de transtornos psicológicos, expulsar um filho LGBT+ de casa, muitas vezes, os coloca no mundo das drogas, na prostituição, na rua, provocando uma fragilidade gigante frente a uma sociedade que aponta o dedo a todo instante. Mas destaco os problemas emocionais, por ter sofrido isso durante a adolescência. O receio da rejeição familiar me fez, muitas vezes, rezar para que eu não fosse gay. Entre meus 12 e 15 anos, repetia essa conversa todas as noites antes de dormir. “Não quero que meu pais tenham vergonha de mim”. Meu maior medo era ser expulso de casa e não ter para onde ir; que as pessoas que eu mais amo deixassem de me amar.

Meus pais não me expulsaram de casa. Meu receio foi em vão até os 18 anos, quando eles souberam da minha sexualidade. Conto essa experiência, para conseguir expor um pouco do que é o medo da rejeição familiar enfrentado por um LGBT+. Minha história se torna pequena comparada a inúmeros casos de rejeição familiar que realmente acontecem. Mas ela poderia ter um final diferente, infeliz, devido aos problemas emocionais que me acompanharam no período da adolescência.

Esse medo não é só meu, mas também de outros LGBT+: receio da reação dos pais ao saberem que a filha é lésbica; incerteza sobre o que os avós pensarão sobre a bissexualidade de sua neta; medo que o pai nunca mais fale com o filho ao descobrir que ele é gay. Enquanto famílias rejeitam e expulsam seus filhos, outras criam uma rede de apoio. Há 10 anos, a ONG Mães Pela Diversidade, conscientiza pais e mães sobre a importância do apoio da família para com seus filhos. Presente em 23 estados brasileiros e formada por mães e pais de LGBT+, o grupo alerta sobre a LGBTfobia: “Meu filho não será estatística”.

A família é o nosso primeiro vínculo afetivo. Algumas pessoas dizem que é nosso “porto seguro”, mas o que fazer quando esse porto não está aberto para nós? Para onde vamos correr depois de uma tempestade provocada pela sociedade? A família não pode intimidar. Além de educar, ela tem o dever de acolher e dar amor. A sociedade já é muito cruel com a gente. Não precisamos de mais um mar tempestuoso que nos expulsa para fora dele.

Famílias, não expulsem seus filhos LGBT+ de casa. Ame-nos e nos respeite do jeito que somos. Não crie expectativas e nem projete um futuro para seus filhos. Tenham orgulho. Nós só queremos o seu amor.

 

Deivid Pazatto é jornalista egresso da UFN. Foi repórter da Agência Central Sul e monitor do Laboratório de Produção Audiovisual (Laproa) durante a graduação. É militante do movimento LGBTQ+, aborda questões pertinentes sobre essa temática em seus textos.

Ocorreu neste domingo, 18, no Largo da Locomotiva a 4ª Parada LGBT Alternativa de Santa Maria. Organizado pelo Coletivo Voe, o encontro reuniu os membros da sigla LGBT+, além de simpatizantes do movimento. Trouxe como tema anual a “Saúde Mental de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transgêneros e quaisquer outras identificações não heterossexuais ou não cisgêneras”.

Organizadores da parada LGBT levantam os braços, enquanto três deles seguram bandeira com as cores do arco-íris. Eles estão encima do palco de costas para o público. O público no fundo levanta os braços para a foto.
Membros do Coletivo Voe posam frente ao público da 4ª Parada LGBT. (Foto: Denzel Valiente)

A concentração do público começou às 15h, na Praça dos Bombeiros. Por volta das 16h, os integrantes saíram em passeata até o Largo da Locomotiva, na Avenida Presidente Vargas, onde ficaram reunidos, ao ar livre, em frente a um palco montado nos fundos da Biblioteca Pública aproximadamente até as 22h.

Para animar público, houve diversas apresentações, danças e discursos promovidos pelos integrantes do Coletivo Voe, assim como demais convidados, entre eles drags e transsexuais que manifestaram palavras de força, superação e resistência dos movimentos sociais para com o conservadorismo e o preconceito existentes na sociedade e em algumas famílias intolerantes, e também, palavras de amor e união.

A jornalista e integrante do Coletivo Voe, Carolina Bonoto, 28 anos,  comentou que apesar de Santa Maria possuir uma parada LGBT oficial promovida pela prefeitura, a mesma por muitas vezes não ouviu e nem integrou os movimentos sociais. Logo, o Voe, como movimento social, resolveu criar uma Parada LGBT construída por LGBTs para os integrantes da LGBTs. A organizadora completa sua fala dizendo acreditar “na importância de ocupar o espaço público, de se reconhecer na pessoa do lado e de conhecer a pessoa ao lado”.

Surgiu então a Parada LGBT Alternativa de Santa Maria, que chegou em 2018 a sua 4ª edição, e é promovida com trabalho e mobilização do Coletivo ao longo do ano todo para que possa ocorrer. Para a realização dessa edição, foi criado um financiamento coletivo online com R$ 1.144 arrecadados, para cobrir com os gastos do evento que não recebe nenhum tipo de apoio por parte da Prefeitura Municipal.

A Parada LGBT ainda contou com a venda de batata frita, hambúrguer, pizza, chope e bebidas em geral nos diversos food trucks que se instalaram ao redor do espaço.

Produzido para as disciplinas de Jornalismo I e Jornalismo Digital I sob a orientação dos professores Sione Gomes e Maurício Dias

 

Membros da Parada no Viaduto Evandro Behr.
Foto: Eduardo Biscayno de Prá

O Coletivo Voe organizou a 3ª Parada Alternativa do Orgulho LGBT em Santa Maria no dia 19 de novembro. A praça Saldanha Marinho foi o local de concentração dos participantes, que seguiram a rua do Acampamento, em seguida desceram a Avenida Presidente Vargas até o Largo da Locomotiva. Segundo a organização, mais de 3 mil pessoas participaram da parada.

A parada é construída com arrecadações obtidas pelo Voe, formado por estudantes, pesquisadores e ativistas. Há três anos o coletivo atua com pessoas jurídicas e físicas como apoiadores que organizam um evento diferente da parada LGBT da região centro, considerada, por eles, com viés político-partidário.

Ao ser questionado sobre os benefícios que a marcha traz para o meio LGBT, Henrique Hamester, integrante do Coletivo, ressalta: “Como em todo o mundo, as paradas LGBTs têm o intuito de trazer a visibilidade ao movimento. A sua parte política, reivindicações no meio político e social, assim como demostrar a cultura LGBT. Acredito que estes são os três pilares. Nos mostrar e dizer o que somos e o que fazemos, além de um momento de celebração onde podemos ser nós mesmos”.

A terceira edição foi maior que as anteriores, com um número maior de frequentadores e de atrações. Teve eventos diferentes, como a presença de DJs mulheres, apresentações de música e de dança, mostra fotográfica e tributo dedicado ao ativista Nei D’Ogum, importante militante da resistência popular.

A divulgação também foi mais intensa que as anteriores. O destaque foi o evento no Facebook, que chegou a ter 5 mil inscritos.

A militância representada pela bandeira. Foto: Caroline Freitas

As conquistas dos direitos LGBT estão em evidência nas discussões na sociedade e na política. Apesar disso, a comunidade ainda sofre com discriminação e intolerância. Neste ano, 117 pessoas foram assassinadas devido a crimes contra à orientação sexual no Brasil, o equivalente a uma morte a cada 25 horas, segundo relatório da ONG Grupo Gay, especializada em verificação de dados sobre violência homofóbica no país.

Assegurar direitos igualitários à população LGBT, pelo enfrentamento ao preconceito, direitos civis e tolerância, fazem parte da Militância Gay, que propõe nova realidade ao movimento.

Um dos primeiros atos da militância ocorreu em 28 de junho de 1970 em Stonewall, Nova York, quando um grupo LGBT caminhou pelas ruas do bairro em prol dos direitos homossexuais e resistência os maus tratos sofridos pela polícia. O ato histórico marcou a defesa dos direitos civis LGBT. A partir dessa data são realizados todos os anos diversas manifestações sociais, onde se busca promover uma política de igualdade e reconhecimento.

Junto desse movimento social nasceram entidades e ativistas voltados à defesa da comunidade LGBT, visando ao fim de criminalização da homossexualidade e do reconhecimento dos gêneros por meio de leis e políticas públicas.

 

Militância e ativismo em Santa Maria

Ativistas na 3ª Parada LGBT Alternativa de Santa Maria. Foto: Caroline Freitas

Com o tema “Ativismo e Resistência popular’’, Santa Maria realizou no dia 19 de novembro, a 3ª Parada do Orgulho LGBT Alternativa. Trouxe às ruas a histórica luta pelo reconhecimento das diferenças diante do avanço do conservadorismo.

Para o ativista independente Lucas Moreira, 27, que participa da parada desde a primeira edição, a importância do ativismo com diálogos diferenciados, onde todos são ouvidos é necessário na formação da militância santa-mariense.

“As manifestações por direitos na luta LGBT são importantes na construção do ativismo. Talvez seja a forma mais eficaz de chegar aos olhos de todos. O conservadorismo é grande aqui. Já sofremos como minoria que luta por direitos diante de uma crescente onda de posição contra direitos que deveriam ser comuns a todos.  Ouvir todos os lados do movimento é de extrema importância para a construção de uma militância real. Manifestações são um esforço que vale a pena para defender questões em que acreditamos e queremos”, argumenta.

Já o estudante Vitor Ferreira, 19, que cursa Psicologia na UFSM e acompanhou a parada deste ano, não acredita na militância e vê o ativismo atual como forma agressiva de impor respeito. “É preciso ressignificar a forma de lutar por nossos direitos. Já foi conquistado muito e atribuir uma forma agressiva e até mesmo apelativa não é o jeito de agir. Não acredito em ativistas, as lutas deixaram de ser por direitos e se tornaram um confronto de ideias contrárias a tudo que sociedade pensa como certo, sem foco. Não há busca por diálogo e entendimento. Hoje a militância se preocupa mais em chocar. Regredimos muito nesse ponto”, questiona.

A realização da parada é uma parceria entre ativistas independentes, organizações da sociedade civil e Coletivo Voe, que surgiu pela falta de representatividade na comunidade, construindo espaço de expressão e diálogo sobre diversidade sexual, em busca do diálogo igualitário e livre de todas as formas de opressão.

“É muito importante esse tipo de manifestação em Santa Maria, porque mostra que a gente existe. Não queremos nada além do que todo mundo tem, que é ser feliz, viver e constituir uma família, sem precisar sofrer tanto preconceito e ser agredido”, comenta Leonardo Almeida, 23, integrante do Coletivo Voe.

O coletivo trabalha nessa construção com intervenções, formações, palestras, visitas em escolas. “Somos chamados por professores para conversar sobre identidade de gênero. Sempre mostramos que a diferença é normal, que ser diferente é bom”. complementa Leonardo.

 

 

 

Bandeira do Orgulho Trans (Foto: divulgação)

A cada 25 horas, um LGBT (lésbicas, gays, bissexuais,  transexuais e travestis) é assassinado no Brasil. Os dados alarmantes, fazem do país o campeão mundial de crimes contra as minorias sexuais. O ano de 2016 registrou 343 homicídios contra essa população, que é vítima de LGBTfobia todos os dias. Os dados são do relatório de 2016 do Grupo Gay da Bahia (GGB), a mais antiga associação brasileira de defesa dos direitos LGBT. A pesquisa foi baseada em notícias publicadas na mídia, internet e informações pessoais.

O ano de 2016 foi marcado por várias atrocidades contra os LGBT’s. Em agosto a jovem travesti Brenda, foi espancada e jogada de cima de uma passarela no Pará. Em dezembro, o ambulante Luiz Carlos Ruas, foi assassinado no metrô de São Paulo, quando tentava defender um gay e uma travesti perseguidos por dois lutadores. Também no final do ano, Itaberly Lozano, 17 anos, foi espancado, esfaqueado e carbonizado pela própria mãe.

Essas são algumas das mortes registradas no ano passado. O antropólogo Luis Mott, responsável pelo site “Quem a homofobia matou hoje”, ressalta os números alarmantes, e diz que são apenas a ponta de um iceberg de violência e sangue. “A falta de estatísticas oficiais, diferentemente do que ocorre nos Estados Unidos, é prova da incompetência e homofobia governamental”.

O relatório divulgado pelo GGB, mostra que 2016 foi o ano mais violento desde a década de 1970. Além de enforcamento, pauladas, apedrejamento, muitas vítimas foram torturadas e  tiveram seus corpos queimados. São Paulo, Bahia e Rio de Janeiro são os estados que mais mataram LGBT’s no ano passado.


TRANSFOBIA

Apesar de gays corresponderem a 50% das vítimas, quando se trata de vulnerabilidade, travestis e transexuais são as que mais sofrem violência. O GGB afirma que proporcionalmente, essa parte da população são as mais vitimizadas. O risco de travestis e transexuais serem assassinadas, é 14 vezes maior que um homem gay. Uma pesquisa realizada pela rede europeia Transgender Europe (TGEU), confirma que o Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo. Só no ano de 2016, foram 144 travestis e transsexuais mortas no país, segundo a Rede Trans Brasil, que faz um monitoramento do número desses homicídios.
Apenas no intervalo de janeiro a maio de 2017, houve 81 assassinatos de pessoas trans no País. O dado é do monitoramento da Rede Trans Brasil. Em fevereiro desse ano, o caso da travesti Dandara chocou o país. O vídeo que ganhou repercussão nas redes sociais mostra a jovem sendo brutalmente assassinada a chutes e pauladas por um grupo de jovens no Ceará.

A exposição a situações de violência física faz parte do cotidiano dessas pessoas. Vezes agredidas, encontram no sistema de saúde e delegacias mais violência, onde não respeitam suas identidades de gênero. A violência verbal não fica apenas nesse meio, permeando também muitos espaços públicos.

Martha Souza, Doutora em Ciência, militante e pesquisadora nas questões de igualdade de gênero, trabalha há mais de 20 anos com travestis e transexuais, além de produzir artigos que abordam a temática. Ela ressalta a forma como essa população é assassinada cruelmente. “Uma morte de travesti, nunca é um tiro, uma facada, são pedaços arrancados”.  Martha, em seu artigo “Violência e sofrimento social no itinerário de travestis de Santa Maria”, publicado em 2015, fez um estudo com 49 travestis, onde todas relataram ter vivenciado agressões físicas e xingamentos, muitos iniciados no contexto familiar.

As histórias de exclusão social e discriminação são reafirmadas a todo instante pela população trans. Após serem expulsas de casa e sofrerem rejeição familiar, resta as travestis e transexuais a busca por um local onde sejam aceitas. Em Santa Maria, o Alojamento Verônica faz o trabalho de abrigar travestis e transexuais na cidade. “O perfil da maioria das trans que chegam até aqui, são meninas que sofreram justamente a rejeição da família”, conta Verônica Oliveira, administradora do local.
O pensionato que tem 10 anos de existência, já abrigou mais de mil travestis e transexuais, segundo Verônica, que também milita pela causa trans. O pensionato funciona como um hotel, onde dispõe de quartos e área de lazer para quem passa por ali.

A dificuldade para encontrar moradia, acaba tornando os pensionatos destinados a pessoas trans, um local exclusivo. Ali se criam novos laços e novas conjunturas de família. As situações de opressão e discriminação, acabam dando espaço a relações de afeto.

Alojamento Verônica abriga travestis e transexuais em Santa Maria (Foto: Juliana Brittes/ LABFEM).

A população trans vivencia a discriminação desde a descoberta da sexualidade, principalmente quando suas mudanças corporais começam a se tornar mais visíveis. A feminilização ou masculinização de seus corpos, no caso de homens trans, acabam afastando essas pessoas do núcleo familiar. A desestabilização com a família e a opressão da sociedade, acabam levando muitas travestis e transexuais ao suicídio.

O despreparo social acaba por marginalizar travestis e transsexuais, o que resulta também no desemprego de pessoas trans. Verônica, dona do pensionato, ressalta o não reconhecimento da identidade de gênero dessa população. “Algumas meninas trabalham de manicure, cabeleireira… muitas acabam trabalhando na noite”. O preconceito ainda é evidente quando transsexuais tentam se candidatar a uma vaga de emprego. Segundo uma estimativa da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), 90% da população trans se prostitui no país.

Martha, que também é professora do Centro Universitário Franciscano (Unifra), relata a  necessidade de pautar questões de gênero em todos ambientes. “A gente precisa se perguntar: quem é que incentiva isso? Somos nós, sociedade, no momento em que não discutimos isso numa escola ou faculdade”.
Os insultos instigados por uma sociedade culturalmente machista, acabam respingando no núcleo escolar. Travestis e transexuais, assim com toda a classe LGBT, acabam sofrendo suas primeiras discriminações ainda na infância. A escola, tem como espaço exercitar a cidadania e reconhecer a igualdade, mas não é o que se vê em muitas instituições.

VIOLÊNCIA INSTITUCIONAL

A maioria das pessoas trans no Brasil ainda vivem à margem da sociedade, sem acesso à educação, saúde e oportunidade de inclusão no mercado de trabalho. As delegacias especializadas de atendimento à mulher não são  preparadas para casos de violência contra travestis e transsexuais.
Após sofrerem agressões físicas e/ou verbais nas ruas, travestis e transexuais, passam por outras experiências de preconceito. As delegacias, locais onde essas pessoas deveriam ser amparadas, acabam por causar mais discriminação, devido ao despreparo dos “profissionais”.

Não bastasse o preconceito nas delegacias, após sofrerem agressão física nas ruas, travestis e transexuais, muitas vezes, precisam procurar um sistema de saúde, onde novamente sofrem discriminação. Pessoas trans acabam virando motivo de “chacota” nos espaços onde deveriam ser bem tratadas. Além disso, o desrespeito a identidade de gênero e ao nome social é recorrente causando constrangimento por quem passa pelos sistemas de saúde.
A acadêmica de Design de Moda, Maria Eva Bevilaqua, que é transexual, relata o caso de uma amiga que sofreu transfobia na Unidade de Pronto Atendimento de Santa Maria (UPA). “O nome social dela não foi respeitado, sendo tratada a todo instante no masculino”. Maria Eva ainda conta que após dizer que o médico seria filmado – devido péssimo atendimento – o profissional ameaçou não atender a paciente.

Uma das maiores lutas do movimento trans, além do tratamento e respeito à sua identidade de gênero, é o nome social. Em 2016, a então presidenta, Dilma Rousseff, assinou o decreto que permite transexuais e travestis a usarem seu nome social em todos os órgãos públicos. A obtenção da carteirinha social, demanda grande trabalho. São precisos laudos de psicólogos para comprovar para o Estado qual é o seu gênero.
A transfobia pode ser entendida como preconceito, discriminação, ou demais violências contra pessoas em função da sua identidade de gênero. No Brasil não há uma lei federal que ampare as agressões sofridas por essa população . O Projeto de Lei nº 122/2006 (PL 122), apresentado em 2006 na Câmara dos Deputados – que criminaliza a LGBTfobia – encontra-se arquivado no Congresso Nacional.
Estados como Paraíba, Piauí, São Paulo e Sergipe que visam à proteção de trans e homossexuais, contam com delegacias especializadas nesses crimes. Em março de 2017, o governo do Ceará autorizou o atendimento de travestis e transexuais nas delegacias das mulheres do estado. No Rio Grande do Sul, não existem delegacias especializadas em crimes de LGBTfobia.

ENTENDA AS DIFERENÇAS:

Transgênero
O termo é  uma criação social para englobar as travestis e transexuais.

Transexual

A identidade de gênero não corresponde ao sexo biológico. Não há relação direta com orientação sexual. O transexual pode ser tanto homossexual,  heterossexual ou bissexual.
Mulher Trans: biologicamente homem, mas se identifica com o gênero feminino;
Homem Trans: biologicamente mulher, mas se identifica com o gênero masculino.

Travesti
Pessoas que não se reconhecem como homens ou como mulheres, mas como integrantes de um terceiro gênero. Vivenciam e preferem ser tratadas em papéis femininos. Também não há relação com a orientação sexual.

 Reportagem produzida para a disciplina de Jornalismo Especializado III, do Curso de Jornalismo da Unifra, durante o primeiro semestre de 2017. Edição: Professora Carla Simone Doyle Torres.

“As gay, as bi, as trava e as sapatão tão tudo organizada pra fazer revolução!”. Entoando gritos de protesto e levantando cartazes, milhares de pessoas ocuparam as ruas de diversas cidades do Brasil contra a liminar concedida pelo juiz Waldemar Cláudio de Carvalho, da 14ª Vara do Distrito Federal. A decisão judicial permite que psicólogos ofereçam terapias de reversão sexual para LGBT’s.

Em Santa Maria, não foi diferente. Por volta das 14h30min, do dia 23 de setembro, manifestantes começaram a chegar na Praça Saldanha Marinho, o ponto de encontro para um ato público contra a “Cura Gay”. A manifestação foi organizada pelo Coletivo Voe, grupo de ativistas atuantes na cidade em defesa dos direitos LGBT’s.

Na praça, os manifestantes confeccionaram cartazes e pintaram seus rostos. As seis cores do arco-íris coloriram o espaço público e deram início a uma caminhada pelas principais ruas da cidade. Entre um grito e outro, eles pediam por respeito. O apoio a causa era mútuo e foi a partir daí que o estudante Henrique Pivetta Viero, 20 anos, teve a ideia de comunicar o Coletivo Voe para o ato público. “Após ler a notícia, fiquei indignado. Logo fui para as redes sociais e escrevi um texto de repúdio, onde recebi muito apoio de outros LGBT’s”, comenta.

E não foi só o Henrique que ficou tomado por indignação com tamanho retrocesso. A homossexualidade foi despatologizada pela Organização Mundial da Saúde em 1990. De lá pra cá, a população LGBT ganhou e ocupou espaço, mesmo rodeado por preconceito. Durante muito tempo sofreu represálias e ainda continua sendo oprimida. “O homossexual é estimulado a se esconder desde cedo. Quando descobrimos nossa identidade, a sociedade vem e diz: vocês não podem ser assim”, diz o estudante. Henrique já sentiu a mesma dor que muitxs outrxs meninxs sofreram. A sociedade o disse que era errado ser quem realmente ele era.

Mas quem é essa sociedade para querer nos curar ou dizer quem devemos ser? É a mesma que mata a cada 25 horas um LGBT? Que assassinou cruelmente 343 pessoas em 2016, entre elas Dandara e Itaberly? Reprimiu, espancou, apedrejou? Os dados são do Grupo Gay da Bahia, a associação mais antiga do Brasil que luta pelos direitos LGBT’s.

Essa mesma sociedade agora tenta nos curar e também tentou nos calar, com o fechamento da mostra Queer Museu, sobre diversidade sexual, exposta no Santander Cultural, em Porto Alegre. A única cura que queremos é a do preconceito, pois não vamos mais aceitar opressão, muito menos ficar dentro do armário. Ocupamos espaços e resistimos! Quando colocamos a cara no sol, em lugares “não apropriados para LGBT’s” (leia-se: cheio de conservadores), mostramos que existimos e que somos pertencentes a uma comunidade.

Temos nossa própria história, qualidades, defeitos e estamos logo ali. Somos seu vizinho, amigo, colega, irmão, filho. Estamos em todos os lugares. Não quero ser aceito, eu quero respeito! Mas em tempos TEMERosos, de tanto desamor e preconceito, ainda há esperança de dias melhores. “É importante ele crescer sabendo que as diferenças são naturais, e que existem vários tipos de expressões, sejam elas de gênero ou religiosa”, contou a professora Marta Nunes, que levou o seu filho, Francisco, de 8 anos, para participar do ato público. Se toda a família fosse como a de Marta, talvez não seríamos tantas vítimas nesse país.

Em 1969, a revolta de Stonewall, em Nova York, mostrou que temos força. A partir de uma série de represálias da polícia contra LGBT’s, a comunidade se libertou e enfrentou a opressão. Sabemos que somos poderosxs, e não vai ser a “Cura Gay” que vai tirar o nosso brilho. Estamos aí: na TV, no rádio, na internet. Estamos em todos os lugares. Isso se chama: re-pre-sen-ta-ti-vi-da-de.

Pabllo Vittar arrastou milhares de pessoas para cantarem suas músicas num palco secundário do Rock In Rio, um dos maiores festivais musicais do Brasil. Além disso, foi a primeira Drag Queen a subir no palco principal – como convidada da cantora Fergie -, levando o público a loucura. A história de descoberta e transição de um homem trans é contada na maior emissora de televisão do país. Liniker, Johnny Hooker, Linn da Quebrada… Uma nova geração LGBTQ+ que veio para derrubar padrões. Parece pouco? Pra gente, não! Cada espaço ocupado pode não ser uma grande revolução, mas é um empurrãozinho para que sejamos percebidos e representados. Temos brilho próprio e estamos cada vez mais poderosíssimxs. Aliás, o nosso rainbow é power!

Deivid Pazatto, acadêmico do 6º semestre do curso de Jornalismo do Centro Universitário Franciscano. Militante da causa LGBTQ.